PERIGO DA DEMOCRACIA
A emergência de uma força descontrolada e difusa, capaz de
colocar um governo de joelhos, deixou a sensação de que não há autoridade no
País
Ainda que a crise de abastecimento gerada pelo protesto dos
caminhoneiros se resolva totalmente nos próximos dias, o que parece improvável,
as imensas perdas econômicas resultantes dessa greve estão longe de ser
inteiramente contabilizadas. No entanto, talvez o maior prejuízo nem seja
econômico, mas sim democrático. A emergência de uma força descontrolada e
difusa, capaz de colocar um governo de joelhos em poucos dias, deixou aos
brasileiros a sensação de que não há autoridade no País – vence aquele que
grita mais alto.
Não à toa, o protesto dos caminhoneiros, que começou com uma
pauta específica de reivindicações para a categoria, como a redução do preço do
diesel, derivou em pouco tempo para um exercício do mais puro voluntarismo.
Ante a inação do poder público, grupos radicais de manifestantes sentiram-se
incentivados a deixar de lado as exigências de caráter econômico e passaram a
agir com o intuito deliberado de tornar o Brasil ingovernável.
Trata-se de pessoas que se consideram acima da lei e das
instituições e que desprezam profundamente a política tradicional – por elas
considerada irremediavelmente corrupta e incapaz de resolver os problemas do
País. Sua natureza despótica é evidente.
Essa gente, é claro, sempre existiu, mas numa democracia, ao
menos enquanto esta conserva seu vigor, não costuma haver muito espaço para que
o ideal cesarista se imponha sobre as liberdades e a ideia de alternância de
poder. O problema é que, depois que a cruzada anticorrupção no País se
converteu em cruzada contra todos os políticos e, no limite, contra a política,
movimentos como o dos caminhoneiros, incitados por inimigos declarados da
democracia, parecem ganhar “legitimidade” aos olhos da população. Afinal, se o
movimento está causando problemas para políticos no governo, para os quais de
saída está reservada a pecha de corruptos, então deve contar com apoio popular.
Ou seja, aceita-se que, em nome do saneamento da vida política no País,
direitos do conjunto da população sejam atropelados.
A coisa toda é ainda mais grave porque os liberticidas em
ação no País – fechando estradas e sabotando a circulação de caminhões para o
abastecimento de hospitais, mercados e postos de combustíveis, mesmo depois que
o governo atendeu a todas as suas reivindicações – escondem-se sob o
conveniente manto do anonimato. Diferentemente dos notórios políticos que se
locupletaram, os delinquentes travestidos de manifestantes não se deixam
conhecer, tornando seu crime de lesa-pátria ainda mais aviltante.
Contudo, nos tempos esquisitos em que vivemos, nenhuma dessas
ponderações parece arrefecer o ânimo dos que consideram ser válido estimular
meios ilegais, como os usados pelos caminhoneiros, para provocar um clima
propício para a volta dos militares ao poder, desta feita pela via democrática
do voto.
No raciocínio – por assim dizer – dessa gente, somente com os
militares no governo a ordem seria restabelecida. Seria, como é óbvio, um
terrível erro. Se os militares podem voltar ao poder pela via democrática, nada
garantiria que, nas circunstâncias, sua permanência no poder teria o mesmo
viés. Aqueles que dizem almejar o poder em nome da corporação militar são
declaradamente hostis à convivência democrática com a oposição, e já é possível
antecipar que um governo nascido com esse espírito certamente substituirá o
império da lei pelo arbítrio.
Não há como ser diferente, pois o que preside esse movimento
é uma visão discricionária do mundo e das relações políticas, sociais e econômicas.
Os próceres desse movimento e seus excitados seguidores pensam ter o remédio
para todos os males do País, a começar pela destruição da democracia – esse
modelo imperfeito, que demanda negociação com quem pensa diferente e respeito
irrestrito pelo pacto constitucional. A melhor maneira de enfrentar essa
ameaça, além de expô-la, é lutar para restaurar o prestígio da democracia. Para
isso, é preciso superar imediatamente a crise deflagrada pelos caminhoneiros e
por quem os apoia.
Fonte:https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,perigos-da-democracia,70002330214
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