“VIVA O PT”
Conheça o que pensa o
cientista político Luiz Werneck Vianna sobre o caso Mensalão.
Após oito anos,
revelados mais de R$ 100 milhões movimentados fora das regras do jogo, foram
compiladas 50 mil páginas nos autos, 600 testemunhas on the record,
38 réus julgados, 25 condenados e muitas, muitas páginas impressas sobre a Ação
Penal 470, o mensalão. No simbólico 15 de novembro, dia da proclamação de nossa
República, José Dirceu, José Genoino e outros oito condenados se entregaram à
polícia federal. "Viva o PT", bradou, de punho cerrado, o
ex-presidente do partido. De 2005 para cá,
diversas críticas austeras e duelos intelectuais sobre os meandros da AP470
ocuparam o Aliás (Estadão). Entre as primeiríssimas delas, uma entrevista
marcante com o cientista político Luiz Werneck Vianna, professor da PUC-Rio
e autor de A Modernização sem o Moderno: Análises de Conjuntura na Era
Lula (Fundação Astrojildo Pereira, Contraponto, 2011), no dia 31/7/2005,
às vésperas do depoimento de José Dirceu no Conselho de Ética, um dos
momentos-chave dessa história. A convite do Aliás,
Werneck Vianna voltou para discutir os rumos políticos deste Brasil
pós-mensalão. O diabo, diz, é "essa volúpia pela eternização no
poder" – presente nos tempos de Lula, mas também em Collor e em Fernando
Henrique, ressalva. "A ideia de ganhar tudo e todos fez parte desse
projeto megalômano do PT, que pretendia permanecer no poder até o fim dos
tempos", diz o intelectual, com palavras pausadas, por vezes hesitante.
"Mas a história está aberta, sempre esteve", ressalva mais uma vez. E
como Dirceu e Genoino serão lembrados, professor? "Alguém sempre pode
dizer ‘a história me absolverá’. Bem, absolve alguns e outros não. A ver".
Que dimensão tem a figura do ex-ministro José Dirceu hoje? Em
entrevista ao Aliás, em 2005, o sr. o dizia ‘o homem com faro e
instinto de vida partidária. Não ligado aos movimentos sociais, mas um
especialista na política – o Maquiavel do Príncipe’. Ainda o vê assim?
Certamente. José Dirceu ficou ausente do poder imediato, mas
atuou nos bastidores. Esse tipo de atuação obviamente não lhe permitiu o
exercício de uma influência maior. Mas, ainda assim, continuam presentes os
traços principais, marcados na época em que ele teve a batuta na mão. Basta
notar a forma como a campanha de Dilma Rousseff foi conduzida, em 2010. E como
está sendo conduzida agora, pensando em 2014. Persistem as mesmas questões de
fundo.
Quais questões?
Essa volúpia pela eternização no poder. Antes do PT, essa
volúpia esteve presente em Collor e em Fernando Henrique. Mas realizar
reformas, em tempo largo, como era pretendido por Collor, Fernando Henrique e
Lula, implicou uma política que levou a muitas dificuldades. Certamente, Collor
não soube administrar isso, não estabeleceu um sistema de alianças capaz de
sustentar seu governo. Fernando Henrique, posteriormente, interpretou isso
muito bem, e em nenhum momento perdeu de vista a necessidade de ter maioria
governamental – à época, sua associação com o PFL provocou protestos inclusive
entre aliados mais íntimos, a começar por Ruth Cardoso, muito desgostosa com
esse tipo de aliança, entre outros dentro do próprio PSDB. Ficou esta lição:
governos pretensamente longos, que miram o horizonte muito à frente, necessitam
de sólidas alianças governamentais. Isto é, quem quer mudar precisa do apoio de
setores que não estão realmente preocupados com a mudança – aliás, de setores
até contestadores dos projetos mudancistas. Isso leva a um certo imobilismo na
política.
Mas nada mudou?
Há mudanças. Vimos mudanças significativas com Fernando
Henrique (como o Plano Real) e com Lula (como o Bolsa Família). A crítica da
esquerda agora parece querer sustentar que o PT deveria ter unido forças
próprias e aliados muito afins a seu projeto. Isso não permitiria esse
arremesso para a persistência no poder. Mas imaginou-se que, perdido o governo,
tudo estaria perdido. Não é verdade. É a questão ficou: o que a sociedade
ganhou com esse arranjo entre atraso e moderno, entre forças de mudança e
forças comprometidas com a conservação? E o que se perdeu? O que se pode
levantar, contrafactualmente, é que um governo com um projeto de mudança possa,
se tiver estratégias definidas, pensar num voo não longo, mas exemplar. Um voo
que avance até onde se pode avançar – e que, principalmente, corra o risco de
perder a próxima sucessão presidencial. Pense na vitória de Michelle Bachelet.
O caso chileno está nos ensinando que um voo não precisa ser transoceânico,
digamos assim, para realizar mudanças. Vale antes ter um projeto com objetivos
definidos, pois assim um governo poderia parar num determinado ponto e
continuar mais à frente, num processo mais avançado. É preciso ter perspectiva.
Todos perdemos perspectiva?
A política atual, como está, prejudica todos – e
principalmente a própria atividade política, que perdeu aura, imaginação,
ousadia. Ficou num canto, avançando milimetricamente onde podia. Onde não
podia, deixou tudo ao andar "natural" dos acontecimentos. O ponto é: perdeu-se
o impulso para as mudanças, com essa ideia de que era antes necessário garantir
estabilidade para um governo longo. Isso desarmou a sociedade. A política
aparece em lugares inesperados, fora de sua trama real e concreta, que seriam
as instituições e os partidos. Certamente há algo universal nisso, quer dizer,
acontece em diversos países. Mas no Brasil, essa falta de representação
política se tornou algo absurdo, em que as representações são meramente
nominais, como um poder de carimbo. O PT foi desarmado também, obrigado a todo
momento a respeitar as estratégias gerais para garantir sua permanência ad
eternum no poder, vide o caso das sucessões estaduais. Lula ainda é o
detentor da hegemonia do PT. Aí, por que fazer política, se há quem a faça em
nome de todos? Ao mesmo tempo, essa malha paralisa o próprio governante.
O sr. quer dizer que, certas vezes, perder (o governo) pode
ser ganhar (o projeto)?
Sim. Perder no presente, mas tendo tentado realizar seu
projeto, mobilizando bases e sociedade para seguir seus caminhos, poderia
significar uma vitória no futuro.
De tempos em tempos, assistimos a uma faxina ética após um
novo escândalo. Há cassações, impeachment, prisões, mas os esquemas se
reestruturam. Nossas instituições são fortes nesses momentos de crise?
Sim, continuam fortes. Estamos passando por um momento de
turbulência, pois lideranças políticas do partido hegemônico estão sendo
apenadas. Enquanto as ruas estão silenciosas, os principais interessados estão
se movimentando. O Judiciário tem desempenhado um papel fundamental, por ter
uma relação autônoma com os demais poderes. Autonomia essa que falta a outros
setores, como os movimentos sociais e étnicos, o movimento sindical e a UNE.
Não à toa, o que ocorreu por fora desses movimentos assumiu uma forma abstrusa,
os Anonymous e os Black Blocs.
Na ressaca das manifestações, a presidente Dilma Rousseff deu
os primeiros passos para uma reforma política, proposta antiga do PT. A reforma
é possível neste momento?
Possível é, não há nenhum obstáculo material. Há obstáculos
imateriais: a (falta) de vontade do legislador, comprometido com o estado de
coisas anterior. Se há uma grande movimentação social, como vimos, passando ao
largo da política e sem deixar rastros nem animar os partidos, sem vivificar os
movimentos, aí realmente se pode imaginar que temos uma situação difícil
adiante, que demandará muito tempo para encontrar uma saída razoável.
Desde 2005 foram feitas críticas às investigações de
corrupção a governos passados. Mas há indícios de que o esquema de Marcos
Valério também serviu ao PSDB. É justo que a corrupção fique circunscrita ao
PT?
Não. A corrupção é um mal endêmico no Brasil. Está presente
na nossa história "desde sempre". Mas agora a sociedade conhece
instrumentos novos, trazidos pela Carta de 1988, e operadores novos, como o
Ministério Público e a Polícia Federal, que exercem uma vigilância inédita.
A imprensa tratou o mensalão como o ‘maior escândalo de
corrupção do País’. Que papel tiveram a mídia e a opinião pública nesse
processo?
O papel da mídia foi importante, também por estar vinculada à
opinião pública. O mensalão – aliás, a Ação Penal 470, como procuro sempre
descrevê-la – foi um caso de corrupção política. Nas motivações dos autores
dessas infrações não esteve o impulso por aquisição de riqueza, mas aquisição
de poder. Esse foi um fato que a sociedade e os tribunais julgaram severamente,
na expressão de muitos dos ministros do STF: foram crimes contra a República,
isto é, crimes contra todos. E é explosiva essa relação entre o poder
judiciário, a opinião pública e a mídia, pois a alta visibilidade desses
processos deixa pouco espaço para o réu se defender. Mas isso não dá para
impedir, é o avanço da esfera pública no mundo. Que fazer? Fechar as portas dos
tribunais? Silenciar os jornais? É só ver o caso das biografias. Vamos ficar
com os vícios e as grandes virtudes disso, que é tornar públicas determinadas
cenas que realmente mereçam ser públicas, que não podem transcorrer nem em
segredo de Justiça nem em silêncio obsequioso da imprensa. Isso faz parte do
desenvolvimento de uma democracia de massas.
Muitos criticam as ordens de prisão, cumpridas no 15 de
novembro, dizendo que o tribunal é autoritário. Quão supremo é o STF?
É relativo, pois as decisões podem ser contestadas na Câmara,
no que se refere à perda de mandato dos condenados. O STF pode muito, mas não
pode tudo. No fundamental, o papel que a Justiça tem cumprido é um processo de
limpeza de território para que a democracia possa prosperar, para que não seja
poluída pelos que detêm poder político e econômico. Ainda há um longo caminho a
percorrer – e esse caminho não pode dispensar uma vida política mais rica, com
partidos mais vigorosos e movimentos sociais autônomos. Tudo isso ainda está
por acontecer.
Com biografias respeitáveis, o ex-ministro José Dirceu e o
deputado José Genoino saíram do banco dos réus e foram para a prisão. Como
serão lembrados na história?
Não sei. A história deles deve ser preservada. São figuras
importantíssimas para a história do PT, sobretudo José Dirceu, a meu ver, a
melhor cabeça política deles. Alguém sempre pode dizer "a história me
absolverá". Bem, absolve alguns e outros não. A ver, né? É preciso deixar
o tempo fluir. Mas o mensalão não é uma nódoa na vida republicana brasileira. O
julgamento foi uma conquista. A democracia avançou. Os limites estão dados para
o poder político: há leis – e o poder não pode tudo. Foi uma condenação justa,
mas não há o que comemorar. Eu fui um preso político, um perseguido político.
Não há razões para me regozijar com condenações dos outros. Esses, porém, são
políticos presos. Foram condenados por uma corte com ministros inclusive
indicados pelo PT.
Esse desfecho influenciará 2014?
Sim, certamente. Se favorecerá tal ou qual candidato, ainda
não dá para dizer. Os partidos não são antenas sensíveis para o que ocorre na
sociedade. São antenas para auscultar seus interesses imediatos e futuros. Se
Marina Silva ou Eduardo Campos poderão recuperar a política... é muito difícil,
penso. Também é difícil que isso se torne projeto de Aécio Neves. Mas quem vier
agora terá que ter claro que a sociedade quer mudanças no mundo real. Operar
mudanças implica dor e perdas – para ter outros ganhos. A ideia de ganhar tudo
e todos fez parte desse projeto megalômano do PT, que pretendia uma permanência
no poder até o fim da História do Brasil. Ora, a história está aberta, sempre
esteve. Pede por movimentos, novas ideias, novas gerações. É muito difícil
avançar, mas como diria o papa Francisco, bote fé. E assim vai, assim caminha a
humanidade.
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-poder-esse-sedutor,1099838,0.htm