PEMEDEBISMO E LULISMO
MARCELO COELHO
Na
“Ilustríssima” de hoje, comento “Imobilismo
em Movimento“, de Marcos Nobre, e “Os
Sentidos do Lulismo“, de André Singer.
Este livro, diz Marcos Nobre na abertura de seu “Imobilismo em Movimento — Da Abertura Democrática ao Governo Dilma” (ed. Companhia das Letras, 204 págs.) é dedicado “às Revoltas [de Junho de 2013]”. Assim mesmo, com maiúsculas: as Revoltas de Junho. Há outras maiúsculas subentendidas no ensaio analítico deste professor de Filosofia da USP e ex-articulista da Folha.
Mereceria maiúsculas, por exemplo, o conceito que fundamenta
toda a avaliação de Nobre a respeito do funcionamento político brasileiro.
Trata-se do que ele chama de “pemedebismo”, algo mais amplo e insidioso do que o mero “peemedebismo”, com dois “es”. Marcos Nobre não faz referência apenas ao conjunto de práticas e discursos do velho PMDB; praticamente todos os partidos se incluem nessa entidade, cujos intuitos e estratagemas justificariam, a rigor, que Nobre empregasse a caixa alta: o Pemedebismo.
Trata-se do que ele chama de “pemedebismo”, algo mais amplo e insidioso do que o mero “peemedebismo”, com dois “es”. Marcos Nobre não faz referência apenas ao conjunto de práticas e discursos do velho PMDB; praticamente todos os partidos se incluem nessa entidade, cujos intuitos e estratagemas justificariam, a rigor, que Nobre empregasse a caixa alta: o Pemedebismo.
Estamos diante de “uma cultura política que se estabeleceu
nos anos 1980 e que, mesmo se modificando ao longo do tempo, estruturou e
blindou o sistema político contra as forças sociais de transformação”.
Embora “Imobilismo em Movimento” seja, no geral, um livro muito legível e interessante, vale prestar atenção nessa frase, algo enrolada.
Uma “cultura política” blinda o “sistema político”? Uma coisa estaria agindo sobre a outra? Qual das duas? Ou seria o “sistema” que cria uma “cultura”?
Embora “Imobilismo em Movimento” seja, no geral, um livro muito legível e interessante, vale prestar atenção nessa frase, algo enrolada.
Uma “cultura política” blinda o “sistema político”? Uma coisa estaria agindo sobre a outra? Qual das duas? Ou seria o “sistema” que cria uma “cultura”?
Poderíamos entender o “pemedebismo” como um conjunto de
fenômenos conhecidos: fisiologia, fraqueza partidária, resistência aos
movimentos sociais.
Mas quais as causas, as origens, os porquês desse fenômeno?
Ou esse fenômeno é causa e origem de tudo? Por mais antiquado que possa
parecer, não conheço modo melhor para explicar essa “blindagem” do que o
recurso a conceitos de inspiração marxista, algo que o livro tende a evitar.
Se não quisermos dar às classes sociais o papel de agentes,
de responsáveis pelo surgimento do “pemedebismo”, seria preciso provar que o
“pemedebismo” sufocou não apenas as reivindicações da esquerda, mas também às
do empresariado industrial, do agronegócio, dos banqueiros. Será? Mas quando se
afirma que uma “cultura política” fechou o caminho para reivindicações sociais,
pressupõe-se que os setores financeiro, agroexportador e industrial,
provavelmente nessa ordem, andaram levando a melhor.
Em vez de apontar para esses setores, o que talvez lhe
valesse a crítica de maniqueísmo, Marcos Nobre prefere atribuir ao
“Pemedebismo” o papel de personagem principal de seu drama. Do lado oposto,
sufocada durante 20 anos, mas renascida com as Revoltas de Junho, estaria a
“Voz das Ruas”.
Só que acabamos em outro maniqueísmo, afinal, e um bocado
mais vago; ironicamente, o esquema de “Imobilismo em Movimento” lembra a
retórica do velho PMDB (o bom, o peemedebista com dois “es”) no tempo das lutas
“do povo” contra o “regime”.
Tudo corre o risco de parecer reclamação de torcedor: se
nosso time perdeu, o resultado não é legítimo. Como, no jogo da democratização,
os movimentos sociais foram derrotados, eis um sinal de que o sistema político
não é democrático o suficiente.
Não deixa de ser verdade. Há pouca participação popular,
muitos parlamentares se voltam apenas para o enriquecimento pessoal, campanhas
custam caríssimo, a manipulação dos marqueteiros substitui qualquer debate.
Lembro que as próprias classes dominantes estão longe de se
sentir satisfeitas com seus políticos; no mínimo, desejariam que estes
cobrassem menos pelo serviço. Pode ser que seus interesses não estejam sendo
atendidos plenamente; mas isso não quer dizer que não estejam sendo atendidos.
Estas críticas pontuais ao o livro de Marcos Nobre não fazem
justiça ao conjunto, que é principalmente uma reconstrução histórica tão aguda
quanto apaixonada das principais decisões de governo nos últimos vinte anos no
Brasil.
As teses básicas, e alguns trechos literais, de “Imobilismo
em Movimento” são retomadas em “Choque de Democracia”, livro eletrônico mais
curto, que Marcos Nobre escreveu em pleno entusiasmo com as manifestações de
junho.
Entusiasmo e apaixonamento são coisas admiravelmente expurgadas
de “Os Sentidos do Lulismo –Reforma Gradual e Pacto Conservador”, do cientista
político e articulista da Folha André Singer. Ex-porta-voz da Presidência no
primeiro mandato de Lula, Singer é capaz de analisar “a frio” a atuação dos
petistas no poder.
A principal tese do livro, demonstrada com estatísticas
eleitorais na dose certa, já é bastante conhecida a esta altura. Desde a
democratização, a política brasileira teve uma característica curiosa: quanto
menor a sua renda, mais o eleitor votava nos candidatos de direita. A simpatia
pela esquerda, e pelo PT em geral, sempre foi maior nos setores mais
instruídos, mais urbanizados e mais ricos da sociedade.
Uma recomposição, entretanto, ocorreu a partir da vitória de Lula em 2002. As políticas de aumento do salário mínimo, de bolsa-família e crédito consignado tiveram o condão de “popularizar”, pela primeira vez, a base eleitoral do metalúrgico de São Bernardo.
Ironicamente, isso se deu ao mesmo tempo em que o PT abandonava sua prática mais radical, aceitando compor-se com forças políticas atrasadas e oligárquicas. Não que André Singer use vocabulário tão carregado, mas foi esta a “pemedebização” de Lula e do PT, se quisermos falar como Marcos Nobre.
Com isso, e mais o mensalão, o PT perdeu a classe média, mas ganhou forte apoio no que André Singer – seguindo seu pai, o economista Paul Singer– chama de “subproletariado”. Na frase ufanista de Juarez Guimarães, que o autor cita aprovativamente, o partido de Lula se tornou “mais samba, mais negro, mais nordestino”. Seria o caso de dizer que saiu daí um maracatu do crioulo doido. O importante, e Singer faz bem em repetir números eloquentes a esse respeito, é que a coisa funcionou, em termos de redistribuição de renda e geração de empregos.
Foi, entretanto, um “reformismo fraco”, como o autor está pronto a admitir, em que as concessões iniciais à ortodoxia financeira foram sucedidas por uma espécie de “pacto produtivista” com as classes empresariais, numa conjuntura também favorecida pela disparada dos preços nos produtos de exportação.
Uma recomposição, entretanto, ocorreu a partir da vitória de Lula em 2002. As políticas de aumento do salário mínimo, de bolsa-família e crédito consignado tiveram o condão de “popularizar”, pela primeira vez, a base eleitoral do metalúrgico de São Bernardo.
Ironicamente, isso se deu ao mesmo tempo em que o PT abandonava sua prática mais radical, aceitando compor-se com forças políticas atrasadas e oligárquicas. Não que André Singer use vocabulário tão carregado, mas foi esta a “pemedebização” de Lula e do PT, se quisermos falar como Marcos Nobre.
Com isso, e mais o mensalão, o PT perdeu a classe média, mas ganhou forte apoio no que André Singer – seguindo seu pai, o economista Paul Singer– chama de “subproletariado”. Na frase ufanista de Juarez Guimarães, que o autor cita aprovativamente, o partido de Lula se tornou “mais samba, mais negro, mais nordestino”. Seria o caso de dizer que saiu daí um maracatu do crioulo doido. O importante, e Singer faz bem em repetir números eloquentes a esse respeito, é que a coisa funcionou, em termos de redistribuição de renda e geração de empregos.
Foi, entretanto, um “reformismo fraco”, como o autor está pronto a admitir, em que as concessões iniciais à ortodoxia financeira foram sucedidas por uma espécie de “pacto produtivista” com as classes empresariais, numa conjuntura também favorecida pela disparada dos preços nos produtos de exportação.
Todo esse percurso é exposto num tom de firme serenidade,
ainda que as concessões à direita feitas pelo lulismo sejam mencionadas com
pouco destaque.
A argumentação de Singer dá mais sinais de fraqueza a partir
da metade do livro. Em primeiro lugar, o autor apresenta uma versão um tanto
“sacrificial” das atitudes do PT. Foi preciso abandonar convicções face à
pressão conservadora, e se isso não fosse feito haveria o risco de ruptura
institucional.
Uma linha de raciocínio alternativa seria a de perguntar se a
partir de experiências concretas em municípios como Diadema, Ribeirão Preto e
São José dos Campos, o ideário do PT já não estava pronto para transformar-se
em simples carapaça, escondendo acordos corruptos com interesses dominantes locais.
Como o foco de Singer é o desempenho do partido nas urnas, há o perigo de sua
análise mascarar a questão da “representação de classe”. Um eleitorado pobre
pode ser conquistado graças a campanhas caríssimas. Como assinala o autor,
essas campanhas deixam de depender da militância. Passam (e isso o autor
assinala menos) a ser financiadas por grupos de outro tipo: bancos,
empreiteiras, grandes conglomerados.
Embora recorra ao modelo da luta de classes, neste sentido o livro faz o trabalho pela metade. Quem um político representa? Seus eleitores ou seus financiadores? O tom mais indignado de Marcos Nobre, e dos manifestantes de junho, faz falta aqui. Um acordo entre a Fiesp e centrais sindicais, uma aliança entre Lula e um empresário têxtil como José de Alencar, seriam de fato evidências significativas de um pacto entre classes? Qual a representatividade desses personagens? Seria mais notável do que as relações, digamos, entre José Dirceu e o dono da Embratel, Carlos Slim, de quem é consultor? Que seja. Ironicamente, a velha crítica petista ao populismo de Vargas, acusado de mediar os interesses de operários e patrões, é reinterpretada de uma ótica favorável ao petismo… ou de seja lá o que restou dele.
Para André Singer, algo resta. O “espírito do Sion”, como ele
denomina o esquerdismo presente na reunião em que o partido foi fundado,
sobrevive por exemplo na Fundação Perseu Abramo, instituto teórico do partido.
Feita a homenagem, imagino figuras como Antonio Palocci assentindo gravemente
com essa avaliação.
Assista o debate: http://www.youtube.com/watch?v=BUl6oX7ny-c
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