A Ação Civil Publica destinada a acompanhar o tratamento dispensado pelas autoridades administrativas quanto à garantia dos Direitos dos imigrantes haitianos em território brasileiro é assinada pelo Procurador da República Anselmo Henrique Cordeiro Lopes.. Para a consecução da Ação, o Ministério Público Federal do Acre (MPF/AC) realizou diligência tanto nos municípios de Brasileia, Assis Brasil e Epitaciolândia como também na cidade peruana de Inãpari, onde constatou as condições desumanas em que se encontram estes homens, mulheres e crianças. Realizou também Audiências Públicas para dar visibilidade aos fatos e instruir Ação que requer de imediato as providências cabíveis quanto à validação do Direito dos haitianos como refugiados, bem como: “cesse todo e qualquer impedimento para o ingresso no território nacional de migrantes de nacionalidade haitiana”. Feito isso, espera-se o pronunciamento da Justiça Federal e que a Justiça seja feita contra a xenofobia, a discriminação e a intolerância.
Conheça os Termos da Ação
O Ministério Público Federal, em 25 de novembro de 2011, realizou diligência in loco para verificar a real situação dos cidadãos haitianos que se encontravam em Brasileia e Epitaciolândia. Após tal visita a campo, produziu-se o relatório de diligência de fls. 211/216, no qual foram registradas, basicamente, as seguintes constatações:
1) Já entraram no território nacional pelo Estado do Acre (Municípios de Brasileia e Assis Brasil) aproximadamente 1.300 haitianos;
2) Tais indivíduos, ao ingressar no território nacional, após requererem a concessão de refúgio na Polícia Federal, acabam se fixando por longos períodos no Município de Brasileia;
3) Os imigrantes fixam-se por longos períodos no Município de Brasileia em razão da demora na expedição da documentação pertinente (CPF e Carteira de Trabalho);
4) Aos haitianos inicialmente alocados em ginásios esportivos de Epitaciolândia e Brasileia (dada a grande quantidade de pessoas) foi disponibilizada pelo governo local hospedagem em hotel (Hotel Brasileia);
5) O aludido hotel se encontra superlotado com, aproximadamente, 10 pessoas por quarto, sendo muitas pessoas obrigadas a se acomodar em colchonetes em meio às bagagens que se acumulam nas áreas comuns do hotel, excedendo em muito a capacidade do hotel, que pode suportar normalmente apenas 100 indivíduos;
6) O Governo do Estado do Acre vem arcando sozinho com os gastos referentes à ajuda humanitária aos haitianos (refeições diárias, assistência médica etc.), tendo sido omisso o Governo Federal quanto ao auxílio de sua competência;
7) Entre os haitianos instalados na cidade de Brasileia, há mulheres grávidas e crianças;
8) As crianças e as mulheres grávidas necessitam de cuidados especiais, não tendo os Municípios de Brasileia e de Epitaciolândia a estrutura mínima adequada para a prestação suficiente dos serviços de saúde requeridos;
9) Segundo declarações prestadas por agente da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Acre, a água para consumo utilizada pelos haitianos não é de boa qualidade, bem como não há recipientes adequados para seu armazenamento (garrafas de água sanitária, por exemplo, são reaproveitadas para tanto), sendo também precárias as instalações sanitárias do hotel;
10) Existem vários imigrantes acometidos de enfermidades como AIDS, hepatite e outras doenças sexualmente transmissíveis;
11) Em virtude da ausência de distribuição periódica e em quantidade suficiente de material de limpeza pessoal e preservativos, o risco de transmissão de doenças entre os haitianos (e destes para brasileiros) é potencializado;
12) O serviço de saúde disponibilizado aos haitianos é prestado no posto de saúde do Município de Brasileia, porém este não comporta o crescente número de indivíduos que solicitam atendimento, dada a falta de estrutura mínima, inclusive de recursos humanos;
13) Relativamente aos pedidos de refúgio, essenciais para que os haitianos possam seguir para outras localidades no país em busca de emprego, a quantidade de atendimentos realizados pela Polícia Federal não vinha sendo satisfatória, pois são feitos, em média, somente 8 atendimentos por dia, sendo que, dada a quantidade de imigrantes que aguardam a liberação da documentação (CPF e Carteira de Trabalho – CTPS) e os que chegam diariamente ao Município, seriam necessários, pelo menos, 20 atendimentos diários;
14) A demora na conclusão das providências administrativas que autorizam a emissão de CPF e Carteira de Trabalho gerava frustração e acúmulo na quantidade de estrangeiros que, sendo obrigados a permanecer na ociosidade, aglomeram-se no Município de Brasileia, ficando este e o Estado do Acre com o ônus de prestar o auxílio humanitário aos imigrantes.
Além dessas constatações, como se não bastasse, informações publicadas recentemente pela imprensa local (fls. 261 e 265) noticiaram que os imigrantes haitianos vêm sofrendo, por parte de bolivianos, inclusive de agentes militares (com maior frequência, em postos policiais da Bolívia), extorsão, roubos e até abusos sexuais contra mulheres (incluindo- se, nesse último caso, crianças e adolescentes).
Diante disso, o Ministério Público Federal expediu, no final de 2011, a Recomendação n. 20/2011 PRAC/PRDC/AHCL (fls. 275/280), recomendando à União:
1) Por meio da Presidência da República, do Ministério da Defesa, Secretaria Especial de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Saúde, que assuma, imediatamente, mediante disponibilização de verbas, de recursos humanos e de infraestrutura adequada, a assistência humanitária aos refugiados haitianos que se encontram nos Municípios de Brasileia, Assis Brasil e Epitaciolândia, prestando-lhes, com a colaboração dos órgãos estaduais e municipais acreanos: a) abrigo adequado; b) alimentação adequada; c) água potável; d) vestuário e materiais de higiene pessoal; e) assistência médica, com especial atenção às crianças e às gestantes; f) os demais serviços com vistas ao tratamento digno que deve ser dispensado à pessoa humana, nos termos das regras que regem o Brasil na ordem internacional;
2) Por meio do Ministério da Justiça e da Diretoria-Geral do Departamento de Polícia Federal, que proceda ao monitoramento de crianças, mulheres e gestantes imigrantes haitianas, que derem entrada no território nacional, com vistas a implementar efetivo respeito aos seus direitos, resguardando suas integridades física e psicológica, fiscalizando e reprimindo a ação de agentes autores de eventuais abusos sexuais, tráfico de órgãos e tráfico de pessoas;
3) Por meio do Ministério das Relações Exteriores, que implemente, por meio dos acessos diplomáticos e instrumentos de cooperação jurídica internacional, medidas efetivas a fim de que os governos estrangeiros fiscalizem seus agentes públicos com o fito de evitar o cometimento de delitos em detrimento dos imigrantes haitianos que se encaminham para o Brasil.
Apesar de devidamente notificados, transcorreu in albis o prazo concedido aos órgãos recomendados para que se manifestassem acerca do acatamento ou não da referida recomendação. Mesmo sendo novamente oficiados para que apresentem resposta oficial à recomendação, os órgãos recomendados não enviaram resposta escrita ao documento ministerial.
Rasgando a Carta dos Direitos Humanos
Simultaneamente, chegou ao conhecimento do Ministério Público Federal, por meio de matérias jornalísticas divulgadas a partir do último dia 17 de janeiro (fl. 333), que o Governo Federal decidiu assumir o apoio humanitário dos haitianos que se encontram no Acre, mas alterou sua política de recebimento dos haitianos, passando a condicionar a entrada de novos imigrantes haitianos no País à apresentação de visto, negando a estes a possibilidade de pedido de refúgio. A partir de agora, então, o haitiano que ingressar no Brasil sem o visto seria ameaçado de deportação. Paralelo a isso, como medida mitigadora, o Brasil poderia expedir “vistos humanitários” aos haitianos que se encontram no Haiti, até o limite de 1.200 vistos por ano (ou 100 vistos por mês).
Consta das notícias, ainda, que a Polícia Federal teria orientado a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos a não prestar apoio humanitário (comida e abrigo) a novos imigrantes haitianos que ingressassem “ilegalmente” (sem possuir visto) no Brasil, devendo o fato ser imediatamente comunicado à autoridade policial.
Com efeito, as medida anunciadas pela imprensa se confirmaram com a publicação da Resolução Normativa n. 97, de 12 de janeiro de 2012, editada pelo Conselho Nacional de Imigração – CNIG – (fl. 337, publicada no D.O.U de 13/01/2012). Extrai-se do texto de seus artigos 1º e 2º que:
Art. 1º Ao nacional do Haiti poderá ser concedido o visto permanente previsto no art. 16 da Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980, por razões humanitárias, condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos, nos termo do art. 18 da mesma Lei, circunstância que constará da Cédula de Identidade do Estrangeiro.
Parágrafo único. Considera-se razões humanitárias, para efeito desta Resolução Normativa, aquelas resultantes de agravamento de condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010.
Art. 2º O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada do Brasil em Porto Príncipe.
Parágrafo único. Poderão ser concedidos até 1.200 (mil e duzentos) vistos por ano, correspondendo a uma média de 100 (cem) concessões por mês, sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas nas disposições legais do País. [...].
Demais disso, diversas notícias divulgadas pela imprensa local entre os dias 18 e 20 de janeiro de 2012 (fls. 338/350) informaram que a Polícia Federal promoveu o fechamento da fronteira, impedindo, com isso, a entrada no País de mais de 100 imigrantes haitianos, que, exaustos da viagem e sem perspectiva de obter abrigo e alimentação, estariam encurralados sobre a ponte que liga o município de Assis Brasil e a cidade peruana de Inãpari, proibidos de ingressar no Brasil e de retornar ao Peru.
Ciente desse contexto de tensão, marcado por um clima de crise humanitária e impasse diplomático, em 19 de janeiro de 2012, o Ministério Público Federal destacou equipe de servidores até o local, com o fito de diligenciar e avaliar as reais circunstâncias em que se encontram os haitianos na região da fronteira entre o Brasil e o Peru.
Verificou-se, consoante está registrado no relatório de diligência realizado por equipe de servidores ministeriais (fls. 352/354), que, no último dia 17, aproximadamente 120 imigrantes haitianos, entre adultos e crianças, foram efetivamente impedidos de ingressar no território brasileiro por agentes da Polícia Federal, razão pela qual foram compelidos a retornar à cidade peruana de Iñapari, onde permanecem acomodados precariamente num pequeno coreto de uma praça situada na área central da cidade, sujeitos a todas as intempéries, sem perspectiva de obter abrigo e alimentação adequados, além de amargurarem a indefinição sobre sua situação jurídica perante o Estado Brasileiro.
Cerca de 120 haitianos estão vivendo em um coreto de praça na cidade de Iñapari. Ainda de acordo com o citado relatório, em reunião realizada em solo peruano, autoridades locais externaram grande preocupação com a situação, ponderando que:
1) A diminuta Iñapari (cidade peruana com cerca de 1.200 habitantes) não tem os recursos materiais e humanos necessários para prover as necessidades básicas dos aproximadamente 120 haitianos que lá se encontram
2) Há notícias de que por volta de outros 100 haitianos estariam chegando à fronteira entre o Brasil e o Peru;
3) Há o temor justificado de que algum surto de doença ocorra por conta das precárias e indignas condições sanitárias em que se encontram os haitianos, assim como também há o temor de ocorrência de saques, caso faltem alimentos;
4) Não é política do Peru impedir que as pessoas se dirijam a outros países, pois impedir que os haitianos sigam seu caminho constituiria grave ofensa aos direitos humanos;
5) O impasse consiste no fato dos haitianos não terem condições materiais de voltar ao seu País e não quererem ficar no Peru;
6) Os haitianos, quando saíram de seu país, não tinham conhecimento de que iriam ser impedidos de entrar no Brasil.
Como podemos perceber da narrativa dos fatos, até o final de 2011, o grande problema retratado pelo Ministério Público Federal em seu inquérito civil era a falta de assistência humanitária aos refugiados haitianos pela União e a demora na expedição dos documentos legais. Com a alteração da política humanitária promovida pelo Governo Federal a partir de janeiro de 2012, determinou-se um corte temporal que discrimina a população haitiana entre aqueles que conseguiram ingressar no território brasileiro até 12 de janeiro de2012 e aqueles não haviam, naquele momento, logrado o ingresso.
Para os primeiros, o Estado brasileiro prometeu o auxílio humanitário (moradia provisória, comida, água e serviços básicos de saúde) e a legalização de suas permanências no Brasil e, para os demais, determinou-se um endurecimento de tratamento, com fiscalização das fronteiras para impedir o ingresso de novos haitianos, com ameaças de deportação e com a limitação da expedição de vistos para haitianos, até o limite anual de 1.200 vistos. É essa a realidade com a qual nos deparamos agora.
Conforme se pode concluir, a proteção jurídica dos migrantes haitianos que já se encontram no Brasil decorre meramente de dois fatos: (i) sua natureza de pessoa humana e (ii) o fato de se encontrarem em território nacional. Logo, a princípio, é indiferente, para a proteção dos direitos humanos dos haitianos, que sejam eles reconhecidos oficialmente como refugiados ou não. Tal reconhecimento somente ganha relevância para o haitiano que ainda não se encontra no território nacional, ou seja, para aquele que se encontra fora de nossas fronteiras e está pleiteando a entrada no país na condição de refugiado. A proteção do refugiado, antes de tudo, deve-se a sua condição de ser humano, e não somente de refugiado.
Vejamos, nesse sentido, recente precedente do Supremo Tribunal Federal:
A comunidade internacional, em 28 de julho de 1951, imbuída do propósito de consolidar e de valorizar o processo de afirmação histórica dos direitos fundamentais da pessoa humana, celebrou, no âmbito do Direito das Gentes, um pacto de alta significação ético-jurídica, destinado a conferir proteção real e efetiva àqueles, que, arbitrariamente perseguidos por razões de gênero, de orientação sexual e de ordem étnica, cultural, confessional ou ideológica, buscam, no Estado de refúgio, acesso ao amparo que lhes é negado, de modo abusivo e excludente, em seu Estado de origem. Na verdade, a celebração da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados — a que o Brasil aderiu em 1952 — resultou da necessidade de reafirmar o princípio de que todas as pessoas, sem qualquer distinção, devem gozar dos direitos básicos reconhecidos na Carta das Nações Unidas e proclamados na Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana. Esse estatuto internacional representou um notável esforço dos Povos e das Nações na busca solidária de soluções consensuais destinadas a superar antagonismos históricos e a neutralizar realidades opressivas que negavam, muitas vezes, ao refugiado — vítima de preconceitos, da discriminação, do arbítrio e da intolerância — o acesso a uma prerrogativa básica, consistente no reconhecimento, em seu favor, do direito a ter direitos. (Ext 783-QO-QO, Rel. p/ o ac. Min. Ellen Gracie, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 28/11/2001, DJ de 14/11/2003 –).
A garantia do refúgio e da proteção dos refugiados é contemporânea ao início da construção moderna de estrutura jurídica e institucional para a proteção de direitos humanos. Até o início do século passado, entendia-se que a maior ameaça para o respeito dos seres humanos e de seus direitos humanos básicos residia nas situações de conflito militar e de distúrbio político. Dessa forma, para amparar as pessoas ameaçadas por essas situações especiais, concebeu-se o chamado Direito Humanitário (para as situações de guerra e conflitos armados) e o Direito Internacional dos Refugiados (DIR, para pessoas ameaçadas em razão de ameaça do poder político). Concebia-se, nesse momento histórico, que as graves ameaças aos direitos humanos decorriam dessas circunstâncias.
O Requerimento do MPF
Em razão de todo o exposto, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL:
1) A antecipação da tutela jurisdicional, com a cominação de astreintes ou de outras medidas efetivadoras vislumbradas pelo juízo, a fim de determinar à União que:
1.1) Reconheça, para todos os fins legais, a condição jurídica de refugiados de todos migrantes de nacionalidade haitiana que se encontram no Brasil ou se dirigem a este país;
1.2) Cesse todo e qualquer impedimento para o ingresso no território nacional de migrantes de nacionalidade haitiana;
1.3) Cesse toda e qualquer ameaça de deportação dos haitianos que se encontram no Brasil em busca de refúgio;
1.4) Preste imediatamente auxílio humanitário (água, alimentação, moradia provisória e serviços básicos de saúde) aos refugiados haitianos que se encontram no Brasil, até que estes obtenham vínculos empregatícios e possam custear a própria subsistência e de suas famílias;< 2) A citação da União, na forma da lei, para, querendo, contestar a presente ação, com as advertências de praxe, inclusive quanto à confissão da matéria de fato, em caso de revelia;
3) A prolação da sentença de procedência da ação, convertendo-se em definitiva a antecipação de tutela requerida, obrigando a União ao cumprimento definitivo das obrigações dispostas nos itens 1.1 a 1.4 do pedido.
Requer-se também a produção de todas as provas em direito admitidas.
Para fins de instrução, segue, em anexo, o inquérito civil nº 1.10.00.000134/2011-90 3, instaurado na Procuradoria da República no Acre.