Ademir Ramos (*)
Todos os dias, ao amanhecer, aquela bela mulher cruzava a praça em direção a Igreja para participar dos ritos religiosos, quase sempre só, sozinha. O vigilante do lugar ficava a imaginar o que de mais puro tinha naquele gesto ou quem sabe o fogo que se guardava nas entranhas daquela alma cultuada por ele e desejada por todos. E assim, faça sol ou chuva, a belicosa cruzava os caminhos para se redimir da dor ou quem sabe do prazer que acalantava.
Além do vigilante, os gaviões dos arredores do largo também perseguiam com os olhos e pensamentos a bela mulher, de trajes finos, de perfil delgado, guardando para si, quem sabe, a suspeita de amar. O mistério rondava a cabeça dos homens e até mesmo das mulheres por não entenderem as razões de tamanho recolhimento. Seria, por acaso, um amor proibido, amor não correspondido ou quem sabe o voto mariano de pura devoção em louvor à padroeira da cidade.
Nesta rotina, o cotidiano deixava de ser monótono porque nas manhãs seguintes a dono de belo porte voltava a passar, a caminho da Igreja e a exalar seu perfume, que inebriava a todos. Sozinha em sua morada, guardada entre muros, continuava a encantar os pretendentes não por promessas, mas simplesmente pela ausência das respostas que todos gostariam de saber quanto à sua vida privada.
Contudo, numa certa manhã de verão, a tetéia da praça não deu ar de sua graça, deixando as pessoas do em torno a indagar, não mais sobre o que ela significava, mas o que poderia ter ocorrido para que faltasse ao seu dever matinal. Muda-se o foco, mas a trama é a mesma. Em destaque, não mais a bela da manhã, mas o cotidiano daquela gente que pouco olhava para si e para os seus, imaginando unicamente o presente e futuro daquela que nada mais era do que uma personagem a encarnar o amor em cólera.
A ausência da perseguida não fez bem nem aos homens e muito menos as mulheres porque embotou a fantasia dos amantes deixando órfãos da criatividade da alcova, provocando a inércia dos agentes a respeito dos apetites da sexualidade tanto na casa como na rua. Quanto mais distante se projetava o imaginário da apetitosa mulher das manhãs da praça, mas, muito mais mergulhado encontrava-se o vilarejo perdido na mesmice na repetição monótona da vida sem amor, sem desejo e o pior ainda, sem o poder criativo para amar.
A volta da bela mulher, depois de uma longa viagem, quebrou o encanto e todos se perceberam que na arte de amar é preciso se descobrir todos os dias e, que os simulacros são produtos podendo contribuir ou não para inaugurar novos processos que resultem em inovação na rotatória das curvas erógenas saciando os sedentos e nutrindo os afoitos de prazer, como se fosse o único a merecer o ágape movido pelos corpos a denunciar paixão com epíteto de amor prometido sem compromisso de suas promessas, o certo é que: na praça ou na Igreja, a fricção deve se transformar em luzes para dar sentido a vida.
(*) É professor, antropólogo e coordenador do NCPAM/UFAM.
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