Fernando
Henrique Cardoso (*)
Já se disse tudo, ou quase tudo, sobre
os atos públicos em curso. Para quem acompanha as transformações das sociedades
contemporâneas não surpreende a forma repentina e espontânea das manifestações.
Em artigo publicado nesta coluna, há
dois meses, resumi estudos de Manuel Castells e de Moisés Naím sobre as
demonstrações na Islândia, na Tunísia, no Egito, na Espanha, na Itália e nos
Estados Unidos. As causas e os estopins que provocaram os protestos variaram:
em uns, a crise econômico-social deu ânimo à reação das massas; em outros, o
desemprego elevado e a opressão política foram os motivos subjacentes aos
protestos.
Tampouco as consequências foram
idênticas. Em algumas sociedades onde havia o propósito específico de derrubar
governos autoritários, o movimento conseguiu contagiar a sociedade inteira,
obtendo sucesso. Resolver uma crise econômico-social profunda, como nos países
europeus, torna-se mais difícil. Em certas circunstâncias, consegue-se até mesmo
alterar instituições políticas, como na Islândia. Em todos os casos
mencionados, os protestos afetaram a conjuntura política e, quando não
vitoriosos em seus propósitos imediatos, acentuaram a falta de legitimidade do
sistema de poder.
Os fatos que desencadeiam esses
protestos são variáveis e não necessariamente se prendem à tradicional
motivação da luta de classes. Mesmo em movimentos anteriores, como a
"revolução de maio" em Paris (1968), que se originou do protesto
estudantil "por um mundo melhor", tratava-se mais de uma reação de
jovens que alcançou setores médios da sociedade, sobretudo os ligados às áreas
da cultura, do entretenimento, da comunicação social e do ensino, embora
tivesse apoiado depois as reivindicações sindicais. Algo do mesmo tipo se deu
na luta pelas Diretas-Já. Embora antecedida pelas greves operárias, ela também
se desenvolveu a partir de setores médios e mesmo altos da sociedade,
aparecendo como um movimento "de todos". Não há, portanto, por que
estranhar ou desqualificar as mobilizações atuais por serem movidas por jovens,
sobretudo das classes médias e médias altas, nem, muito menos, de só por isso
considerá-las como vindas "da direita".
O mais plausível é que haja uma
mistura de motivos, desde os ligados à má qualidade de vida nas cidades
(transportes deficientes, insegurança, criminalidade), que afetam a maioria,
até os processos que atingem especialmente os mais pobres, como dificuldade de
acesso à educação e à saúde e, sobretudo, baixa qualidade de serviços públicos
nos bairros onde moram e dos transportes urbanos. Na linguagem atual das ruas,
é "padrão Fifa" para uns e padrão burocrático-governamental para a
maioria. Portanto, desigualdade social. E, no contexto, um grito parado no ar
contra a corrupção - as preferências dos manifestantes por Joaquim Barbosa
(ministro presidente do Supremo Tribunal Federal) não significam outra coisa. O
estopim foi o custo e a deficiência dos transportes públicos, com o complemento
sempre presente da reação policial acima do razoável. Mas se a fagulha provocou
fogo foi porque havia muita palha no paiol.
A novidade, em comparação com o que
ocorreu no passado brasileiro (nisso nosso movimento se assemelha aos europeus
e norte-africanos), é que a mobilização se deu pela internet, pelos twitters e
pelos celulares, sem intermediação de partidos ou organizações e,
consequentemente, sem líderes ostensivos, sem manifestos, panfletos, tribunas
ou tribunos. Correlatamente, os alvos dos protestos são difusos e não põem em
causa de imediato o poder constituído nem visam questões macroeconômicas, o que
não quer dizer que esses aspectos não permeiem a irritação popular.
Complicador de natureza imediatamente
política foi o modo como as autoridades federais reagiram. Um movimento que era
"local" - mexendo mais com os prefeitos e governadores - se tornou
nacional a partir do momento em que a presidenta chamou a si a questão e a
qualificou primordialmente, no dizer de Joaquim Barbosa, como uma questão de
falta de legitimidade. A tal ponto que o Planalto pensou em convocar uma
Constituinte e agora, diante da impossibilidade constitucional disso, pensa
resolver o impasse por meio de plebiscito. Impasse, portanto, que não veio das
ruas.
A partir daí o enredo virou outro: o
da relação entre Congresso Nacional, Poder Executivo e Judiciário e a disputa
para ver quem encaminha a solução do impasse institucional, ou seja, quem e
como se faz uma "reforma eleitoral e partidária". Assunto importante
e complexo, que, se apenas desviasse a atenção das ruas para os palácios do Planalto
Central e não desnudasse a fragilidade destes, talvez fosse bom golpe de
marketing. Mas, não. Os titubeios do Executivo e as manobras no Congresso não
resolvem a carestia, a baixa qualidade dos empregos criados, o encolhimento das
indústrias, os gargalos na infraestrutura, as barbeiragens na energia, e assim
por diante.
O foco nos aspectos políticos da
crise - sem que se negue a importância deles - antes agrava do que soluciona o
"mal-estar", criado pelos "malfeitos" na política econômica
e na gestão do governo. O afunilamento de tudo numa crise institucional (que,
embora em germe, não amadurecera na consciência das pessoas) pode aumentar a
crise, em lugar de superá-la.
A ver. Tudo dependerá da condução
política do processo em curso e da paciência das pessoas diante de suas
carências práticas, às quais o governo federal preferiu não dirigir
preferencialmente a atenção. E dependerá também da evolução da conjuntura
econômica. Esta revela a cada passo as insuficiências advindas do mau manejo da
gestão pública e da falta de uma estratégia econômica condizente com os
desafios de um mundo globalizado.
(*) É sociólogo de formação e
Presidente da República pelo voto popular.