terça-feira, 27 de outubro de 2009

É PRECISO RECONCEITUAR O JORNALISMO


Marcelo Salles(*)

Não faz mais nenhum sentido chamar de Jornalismo o que fazem as corporações de mídia. Quem se preocupa com o lucro em primeiro lugar não é uma instituição jornalística. Não pode ser. Quando uma empresa passa a ter como principal meta o lucro, essa empresa pode ser tudo, menos uma instituição jornalística. E aí não importa a quantidade de estrutura e dinheiro disponível, pois a prática jornalística é de outra natureza. Exemplo: eu posso passar uma semana no Complexo do Alemão com um lápis e um bloco de papel. Posso chegar até lá de ônibus. Posso bater o texto num computador barato. Mesmo assim, se a publicação para onde escrevo for jornalística, vou ter mais condições de me aproximar da realidade do que uma matéria veiculada pelas corporações de mídia.

Essas podem dispor de toda a grana do mundo, de carro com motorista, dos gravadores mais caros, das melhores rotativas, de alta tiragem e de toda a publicidade que o dinheiro pode comprar. No entanto, se não forem instituições jornalísticas, elas dificilmente se aproximarão da realidade da favela, isso quando não a distorcem completamente.

Existem outros exemplos para além da questão da favela. É o caso dos venenos produzidos pelas Monsantos da vida, que nunca são denunciados pelas corporações de mídia. Ou da retomada dos movimentos de libertação na América Latina, vistos como “ditatoriais”; a perseguição aos movimentos sociais e aos trabalhadores em geral; a eterna criminalização da política, de modo a manter as instituições públicas apequenadas frente ao poder privado. Enfim, você pode olhar sob qualquer ponto de vista que não vai enxergar Jornalismo.

Isso precisa ficar bem claro. Claro como a luz do dia. Para que as corporações pareçam ridículas quando proclamarem delírios do tipo: “somos democráticas”, “únicas com capacidade de fazer jornalismo”, “imparciais” e por aí vai. Fazer Jornalismo não tem esse mistério todo. Em síntese, é você contar uma história. Essa história deve ter alguns critérios que justifiquem sua publicação. Alguns deles aprendemos nas faculdades e são válidos; outros são ensinados, mas devem ser vistos com cautela. E outros simplesmente ignorados. Mas, no fundo, o importante é ser fiel ao juramento do jornalista profissional: “A Comunicação é uma missão social. Por isto, juro respeitar o público, combatendo todas as formas de preconceito e discriminação, valorizando os seres humanos em sua singularidade e na sua luta por dignidade”.

Essa frase, quase uma declaração de amor, não é minimamente observada pelas corporações de mídia. Vejamos: elas não têm espírito de missão, não respeitam nada, nem as leis, estimulam o preconceito, discriminam setores inteiros da sociedade, violam os direitos humanos e não sabem o significado da palavra “dignidade”.

Mas por que o Jornalismo é tão importante para uma sociedade? Porque hoje, devido ao avanço tecnológico dos meios de comunicação – são praticamente onipresentes nas sociedades contemporâneas –, a mídia assume uma posição privilegiada no tocante à produção de subjetividades. Ou seja, a mídia, mais do que outras instituições, adquire enorme poder de produzir e reproduzir modos de sentir, agir e viver. Claro que somos afetados por outras instituições poderosas, como Família, Escola, Forças Armadas, Igreja, entre outras, mas a mídia é a única que atravessa todas as outras.

Fica claro, portanto, que uma sociedade será melhor ou pior dependendo dos equipamentos midiáticos nela inseridas. Se forem instituições jornalísticas sólidas e competentes, mais informação, dignidade, mais direitos humanos, mais cidadania, mais respeito, mais democracia. Se forem corporações pautadas pelo lucro, ou seja, entidades não-jornalísticas, menos informação, menos dignidade, menos direitos humanos, menos cidadania, menos respeito, menos democracia.

É por isso que eu sempre digo aqui, neste modesto, porém Jornalístico espaço: as corporações de mídia precisam ser destruídas, para o bem da humanidade! Em seu lugar vamos construir instituições jornalísticas. Ponto.

(*) É jornalista e coordenador da Caros Amigos no Rio de Janeiro e editor do Fazendo Media (www.fazendomedia.com)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

TVUFAM: “NA TERRA DE AJURICABA”

A pauta do Programa nessa quarta-feira (28) é o regime ditatorial brasileiro na perspectiva da consolidação das instituições democráticas. O objetivo é informar a juventude a prática desse regime quanto à violação dos direitos humanos, o que resultou em centenas de mortes de jovens militantes que sonhavam com o Brasil livre e democrático.

O NCPAM também está na TV. Além da mídia eletrônica em formato de revista, que veiculamos todos os dias por meio do Blog, discutindo e avaliando a cultura política nacional a partir do Amazonas, agora também estamos na telinha da TVUFAM com o Programa “Na terra de Ajuricaba” todas as quartas às 19 horas, no canal 7 da NET Manaus, com apoio da pro- reitoria de extensão da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

O Programa é uma produção do NCPAM com apresentação do professor e antropólogo Ademir Ramos, seguindo as mesmas diretrizes de trabalho do Núcleo de Cultura Política do Amazonas, que já mereceu premiação nacional do júri acadêmico do concurso Top Blog, colando em sua página o selo TOP 3 da política nacional no segmento corporativo (leia-se UFAM).

O Programa é ao vivo, exigindo do apresentador e de seus entrevistados, respostas que possam elucidar as questões levantadas ou promover o intenso debate com foco na ciência, na cultura e política centrado no desenvolvimento local. Os primeiros Programas contaram com a participação de lideranças políticas partidárias, comunitárias, intelectuais e formuladores de políticas públicas e por último debatemos a produção da ciência e tecnologia na UFAM, tendo por base a Faculdade de Tecnologia, bem como a construção e ocupação do espaço urbano de Manaus, o Plano Diretor e a concepção de cidade que fundamenta suas propostas.

A pauta do Programa nessa quarta-feira (28) é o regime ditatorial brasileiro na perspectiva da consolidação das instituições democráticas. O objetivo é informar a juventude a prática desse regime quanto à violação dos direitos humanos, o que resultou em centenas de mortes de jovens militantes que sonhavam com o Brasil livre e democrático.

No processo das discussões, os convidados professor Nobre Leão e o militante da Ciência do Direito, Felix Valois, estarão narrando os confrontos vividos contra a ditadura no embate pelas liberdades democráticas e pelo valor dos direitos políticos no contexto do pluralismo político e ideológico.

O Programa dessa quarta-feira promete uma calorosa discussão entre os protagonistas dessa história porque viveram intensamente o presente, lutando contra a ditadura, sendo até hoje reconhecidos por sua competência acadêmica e por sua prática militante em respeito aos valores democráticos como processo em formação, a merecer da sociedade organizada participação efetiva enquanto instrumento de controle social sobre as práticas governamentais.


UMA BIOGRAFIA DO PRIMEIRO DESAPARECIDO POLÍTICO BRASILEIRO


Edileuza Pimenta e Edson Teixeira (*)

Virgilio Gomes da Silva: De Retirante a Guerrilheiro dedica-se a recuperar a trajetória pessoal e política desse homem cuja biografia transcende sua morte porque sua história faz parte das lutas históricas do povo brasileiro contra a miséria e a opressão. Virgilio começou vencendo a miséria. Retirante, saiu do sertão do Rio Grande do Norte nos anos 50 para tentar a vida em São Paulo, onde, por meio das lutas sindicais, adquiriu consciência política e tomou contato com as ideias do Partido Comunista Brasileiro.

Após a institucionalização da ditadura, processo iniciado a partir do golpe civil-militar de 1964, Virgilio passou a assumir posição destacada na luta contra a opressão, tornando-se um guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional, organização cujos fundadores e líderes foram Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. Menos de um mês após ter comandado uma das ações mais espetaculares da luta de resistência contra a ditadura, o seqüestro do embaixador americano, Virgilio, o "Jonas" da ALN, foi brutalmente assassinado sob torturas na sede da famigerada Operação Bandeirantes, em 29 de setembro de 1969, e se tornou o primeiro desaparecido político brasileiro.

Esse livro surge em um contexto bastante significativo, em que se lembra os 30 anos da luta pela Anistia e os 40 anos da morte do biografado, e integra uma luta pela Memória, pela Verdade e pela Justiça, da qual fazem parte a abertura dos arquivos, a punição dos torturadores e a localização dos corpos dos desaparecidos.
A abertura dos arquivos permitirá a toda a sociedade conhecer o seu passado recente, a verdadeira dimensão do que foi a ditadura civil-militar inaugurada com o golpe de 1964 e que produziu milhares de perseguidos, entre presos, torturados, exilados, mortos e desaparecidos. A punição dos torturadores também deve estar na ordem do dia, principalmente se considerarmos que outros países da América Latina, como Chile e Argentina, estão avançados nesse aspecto, pois, além de terem revogado suas leis de auto-anistia, instituíram Comissões de Verdade a fim de esclarecerem seqüestros, torturas, mortes e desaparecimentos de opositores da ditadura.

A localização dos corpos dos desaparecidos é uma luta de décadas e, no caso de Virgilio, desde 2004 está comprovado que ele estava sob tutela do Estado e em suas dependências quando foi assassinado. Um laudo de pesquisa datiloscópica e um exame de corpo de delito foram encontrados pelo jornalista Mário Magalhães no Arquivo Público do Estado de São Paulo, acervo do DOPS, desmascarando a falsa versão dos torturadores de que Virgilio, nome de guerra Jonas, se encontrava foragido.

Mais recentemente, no último 30 de agosto, quando o livro já estava praticamente pronto, veio à tona uma nova informação, o que prolongou um pouco o nosso trabalho: o jornalista Bernardo Mello Franco divulgou material mantido sob sigilo há quarenta anos, de fonte não revelada, em que o Exército assume a responsabilidade pela morte de Jonas. Trata-se de uma informação circular em que é dito que Virgilio "reagiu violentamente desde o momento de sua prisão, vindo a falecer em conseqüência dos ferimentos recebidos, antes mesmo de prestar declarações".

A expressão "ferimentos recebidos" é um eufemismo de tortura. Diante de mais essa evidência, a família de Virgilio Gomes da Silva, no exato dia em que se completaram quarenta anos de seu assassinato, junto ao Grupo Tortura Nunca Mais e o Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo e Região, entre outras entidades, protocolou duas representações no Ministério Público Federal em São Paulo: uma na área criminal e outra na área cível, que possuem como objetivos a responsabilização da União na morte do militante, para que seja informada a localização do corpo e os restos mortais sejam entregues à família, e investigação que procurará verificar se alguns dos executores de Virgilio ainda hoje exercem cargo público.

Os autores de Virgilio Gomes da Silva: De retirante a guerrilheiro procuraram recuperar a trajetória de vida desse militante tendo em vista o fato de que é necessário interpretar a opção política de Virgilio pela luta armada considerando o contexto histórico e certas matrizes teóricas daquele mesmo período, que destacavam, entre outros temas, a legitimidade do uso da violência revolucionária do oprimido contra o opressor e o direito de resistência à tirania. Mesmo considerando que se tratam de uma mestra e de um doutor em história (que se conheceram há alguns anos, apresentados por seus respectivos orientadores por estudarem um tema em comum, a Ação Libertadora Nacional, evitaram resvalar no academicismo, por entenderem que é possível, sim, fazer um livro com rigor histórico e de pesquisa, mas que seja, ao mesmo tempo, popular.

A partir desse trabalho, o leitor saberá que “Jonas” não desceu de paraquedas para comandar a ação do seqüestro do embaixador americano (sobre a qual também fazemos uma reflexão teórica), como bem lembrou um dos companheiros de Virgilio na ALN, Manoel Cyrillo de Oliveira Netto, cuja apresentação, feita para o livro, reproduzimos abaixo:

"Soube da morte do Jonas de cabeça pra baixo, pendurado em um pau-de-arara, na Operação Bandeirantes. Diante de paredes e pisos manchados pelo seu sangue, entre dezenas e dezenas de perguntas e afirmações simultâneas, em meio a muita pancada, chutes e choques, registrei a triste notícia: - Tá vendo este sangue, é do Jonas, é o sangue de um brasileiro, o filho da puta tá morto! Na véspera de minha prisão, no dia 29 de setembro de 69, o Estado brasileiro havia assassinado o companheiro Virgílio naquela mesma câmera de tortura. Hoje, o Virgílio está mais vivo do que nunca. Cresceu. Perpetuou-se. Fez história. Diferentemente, os seus algozes, os vivos e os mortos, estão encurralados em uma câmera do inferno, sofrem, torturam-se - são uns pobres-diabos. Ao longo da narrativa, descobriremos a bela trajetória pessoal e política do Virgílio, um cidadão que não desceu de páraquedas para comandar a ação de captura do embaixador Elbrick. Também nos depararemos com capítulos e episódios duros e cruéis, retratos do que era a vida do país naquela época. E, no final, o resultado será gratificante e saberemos melhor prezar o esforço e a resistência do Virgílio, um brasileiro".

(*) São historiadores e autores de Virgilio Gomes da Silva: De Retirante a Guerrilheiro http://carosamigos.terra.com.br/

domingo, 25 de outubro de 2009

ONDE O HOMEM SENTE-SE UM INTRUSO


No sábado passado (24) participamos de um evento cultural no Parque Residencial Ouro Negro, na Zona Leste de Manaus, onde os moradores estão se mobilizando para legalizar o condomínio, apostando na força da organização social como instrumento capaz de garantir as famílias segurança e tranqüilidade, exigindo do Estado presença efetiva para combater a bandidagem e demais forma de violência, que tanto ameaça a integridade física dos moradores. O Parque Residencial Ouro Negro à esquerda e ao fundo faz limite com o Campus da Universidade Federal do Amazonas, a direita limita-se também com o Bairro do Coroado, sofrendo onda de pressão, que ameaça invadir a área verde do Condomínio. O empreendimento existe há mais de 20 anos e foi financiado pela Caixa Econômica Federal. No entanto, os moradores reclamam que receberam as casas em péssimas condições e até hoje não tiveram nenhuma assistência da Agência Financiadora, o que faz com que os pretensos proprietários se organizem para exigir da Caixa as garantias contratuais, devendo ser feito por meio do Ministério Público Federal. Apesar dos problemas levantados pelos moradores quanto à segurança, saneamento básico, educação social e espírito de pertencimento comunitário, o lugar é de rara beleza, bom de viver e morar em paz com a floresta, o que muito orgulha os moradores do Ouro Negro. Caso contrário, o homem realmente seria um intruso, que deveria ser combatido para se proteger e garantir o verde que tanta felicidade e saúde nos trazem.
Foto: NCPAM

HISTÓRIA DE MANAUS CONTADA DE PONTA CABEÇA

Por desvio de conduta de seus governantes algozes, a cidade de Manaus, capital do Amazonas, o maior estado da federação brasileira, concentra uma densa população traduzida em mais de dois milhões de habitantes. Nesse território circunscrito entre o Rio e a Floresta vivem homens e mulheres; crianças e jovens; negros, brancos e índios que misturados geraram novas matrizes culturais capazes de seduzir o mundo pela sua beleza e especificidade.

No passado, os povos indígenas com sua diversidade lingüística e cultural dominavam todo o cenário, mas não operavam politicamente controlando a força dos instrumentos de Estado, ficando sob a direção dos colonizadores e de uma nobreza provinciana subalterna, que até hoje se faz de morta para usufruir dos favores oriundos de Brasília ou dos interesses privados, particulares. Os colonizadores, tudo fizeram para desarticular a força dos povos indígenas nessa região, recorrendo sobremaneira às forças da Igreja e do braço armado do Estado por meio das tropas do sertão abrigada no Forte São José do Rio Negro fundado em 1669, em área estratégica desse território.

Mesmo assim, os povos indígenas resistiram e conseguiram varar o século se afirmando como povo determinado culturalmente frente às invasões coloniais e aventureiras que até hoje ocorrem em seus territórios. Contudo, Manaus não é mais somente uma cidade indígena, é também uma cidade caracterizada por sua diversidade de cultura oriunda de um processo migratório centrada na produção da indústria eletrônica implementada no Pólo Industrial, que foi inaugurado pela Zona Franca de Manaus, a partir de 1967.
No entanto, os que manejam os aparelhos do Estado e gerenciam a força do capital da indústria eletrônica, quando querem se afirmar frente aos nativos fazem questão de dizerem que não são manauaras, mas manauenses.

Essa semântica identitária do mandonismo local tem raízes coloniais. Pois, Manauaras, são os filhos da terra dos Manaós (Manaus) - designação lingüística do universo da Língua Geral Amazônica – por sinal, ainda muito falada na Região do Rio Negro. Enquanto, Manauense agrega o sufixo da língua portuguesa colonial, que até hoje sofre para exercer o domínio em todo o Estado devido o enfrentamento com as culturas indígenas locais.

A dominação se faz de diversas formas seja lingüística, histórica, geográfica etc. É o caso lendário do aniversário de Manaus – 24 de outubro -, que os burocratas da história positiva e lusitana do Estado do Amazonas resolveram decretar a origem da cidade sob a fundação do Forte São do Rio Negro - aparelho repressivo colonial promotor da guerra justa e redução dos povos indígenas nesse território -, negando de uma vez a tradição, a cultura e a história desses povos. Para eles, historiadores da corte palaciana, esses povos não tem história, tem somente etnografia. Dizem também que os povos indígenas não fazem Arte, mas sim artesanato. No entanto, para o trabalho escravo eram os fortes e robustos capazes de produzir a riqueza dessa elite provinciana aliada com aventureiros aptos à rapinagem e ao saque do patrimônio dos Manauaras.

Portanto, para os filhos dessa terra - nativo e adotado, que conhece e ama o Amazonas como sua pátria - nunca, jamais - devem aceitar o imperativo neocolonial da fundação da história do Amazonas ancorado na Fortaleza do Rio Negro (1669), tal façanha assemelha-se ao totalitarismo que reconta a história de ponta cabeça, a partir da criação dos seus heróis militares e ditatoriais, tentando apagar a memória do povo, que é o principal protagonista das lutas sociais.

No entanto, superado a insensatez das elites, a memória subversiva popular se manifesta na altivez de sua gente, gritando para o mundo ouvir, que essa terra tem dono e não aceita mais o império da desigualdade e exclusão social, permitindo que outros falem por eles. É hora de se resgatar a voz e se afirmar de forma soberano, garantindo a sustentabilidade e a integridade de seu patrimônio cultural, científico e ambiental para essa e futuras gerações.


Foto: Truduz vida, beleza e muita preocupação quanto ao futuro das crianças da Amazônia. Saiba também que Manuas é toda cortada por igarapé ( são braços do Rio Negro), por sinal pouco respeitado no conjunto das políticas públicas.

sábado, 24 de outubro de 2009

AS ARMADILHAS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS, SEGUNDO GIDDENS


Pedro Dias Leite (*)

Um dos sociólogos mais influentes da atualidade, Anthony Giddens, 71, afirma que a crise financeira global vai redefinir radicalmente a sociedade em que vivemos, avalia que "estamos no estágio inicial de descobrir o que seria um novo modelo de capitalismo responsável e global" e prevê uma convergência no debate sobre a grande recessão e os desafios da mudança climática.

"Em ambos os casos, estamos falando de um papel forte para o Estado e de mais regulação, de um planejamento de mais longo prazo que não tivemos no passado, de controlar mecanismos de mercado mais efetivamente do que nos últimos 30 anos pelo menos, de mais inovações tecnológicas."

Principal ideólogo da Terceira Via, a busca de um caminho alternativo entre o liberalismo radical e as tendências estatizantes tradicionais da social-democracia, Giddens agora volta sua atenção para o tema do aquecimento global, em livro lançado na semana passada: "The Politics of Climate Change" (A Política de Mudança Climática, Polity Press, 256 págs., 12,99, R$ 43).

O Ex-reitor da London School of Economics, lorde Giddens defende que os países ricos têm de arcar com 95% dos custos da luta contra o aquecimento global pelos próximos anos, pois "não é moralmente correto nem seria factível na prática impedir os países em desenvolvimento de se desenvolverem". Por outro lado, o sociólogo cobra o fim da "atitude passiva" dos países em desenvolvimento em relação ao tema e enxerga o Brasil exercendo um papel de liderança, como mediador entre EUA, China e União Europeia.

Giddens deu a entrevista à Folha no pub da Câmara dos Lordes, depois de uma pequena volta explicativa pelo local (a palavra "lobby" vem do sistema britânico, em que os parlamentares favoráveis e contrários são separados em antessalas distintas antes de votar, os lobbies). No final, foi para casa de metrô. A seguir, os principais trechos da entrevista (com recorte do NCPAM).

FOLHA - Em seu livro, o sr. lança o "paradoxo de Giddens": uma vez que os perigos do aquecimento global não são visíveis no dia a dia, apesar de parecerem terríveis, as pessoas não irão agir; contudo, esperar até que se tornem visíveis e sérios para então tomar uma atitude será tarde demais. Como lidar com isso?

ANTHONY GIDDENS - Eu aplico o paradoxo de Giddens especialmente aos países desenvolvidos, porque são eles que têm que tomar a liderança. Por exemplo, para alguém que caminha pelas ruas de Londres, as enchentes de Bangladesh não são algo que afete o dia a dia das pessoas. Para lidar com isso, é preciso romper com as estratégias do passado. As coisas que têm saído pré-Copenhague [em dezembro haverá uma conferência na capital dinamarquesa para definir o mundo pós-protocolo de Kyoto], com os cientistas dizendo que "é muito pior do que pensávamos", passam longe da realidade das pessoas nas ruas. Muitas questões que parecem apocalípticas, que saem nos jornais e na mídia, são iguais a filmes que as pessoas não conseguem distinguir da realidade. É bem difícil esperar que as pessoas comecem a agir com base nisso. Por isso proponho uma reorganização fundamental do pensamento, para focar muito mais nos investimentos, para ver os lados positivos do aquecimento global. Podemos criar uma genuína economia verde, quebrar a dependência do Oriente Médio, garantir segurança energética e levar a uma vida melhor por meio dessas transformações. Dizer para os empresários que eles podem se tornar mais competitivos. Não sou contra regulação ou metas para reduzir a emissão de carbono. Na verdade, sou a favor dessas coisas, mas não acho que elas possam mobilizar as pessoas. Olhe para o tipo de abordagem que o presidente [dos EUA, Barack] Obama produziu, é muito diferente de todos, é muito mais afirmativa. Não sabemos se vai ter sucesso, claro, porque estamos falando aqui em mudar o "estilo de vida americano". No entanto ele fala disso como um projeto inspirador, que tem muito mais ressonância.

FOLHA - O sr. fala que o movimento verde sequestrou o debate sobre mudança climática e que é preciso sair dessa armadilha. Como assim?

GIDDENS - O movimento verde começou da metade para o final do século 19, fortemente influenciado pela ideia romântica de uma crítica do industrialismo, a nostalgia de uma terra que não havia sido modificada pelas indústrias. Sua força motriz era a conservação, a proteção da natureza e do ambiente. Realmente deveríamos ter deixado a natureza em paz, só que agora é tarde demais, e maior intervenção na natureza será absolutamente necessária. A mudança climática é muito diferente das preocupações tradicionais dos verdes e, para lidar com ela, temos de nos livrar de alguns dos preconceitos que os verdes - não todos, mas alguns- têm, de não interferir muito na natureza, de um princípio da precaução. O caminho para lidar com a mudança climática deve ser de ousadia, inovação, o máximo uso da tecnologia. Não quero descartar completamente o movimento verde, pois tem um importante papel de trazer esses assuntos para a agenda, e isso tem valor. No entanto, se você olhar para o manifesto dos verdes globais, muito pouca coisa tem a ver com mudança climática. E um dos problemas é que alguns grupos se veem como operando fora da política, extremamente críticos das atividades das grandes corporações. Mas o vital agora para a mudança climática é trazer para o centro do debate algo que 60%, 70% da população possa compreender.

FOLHA - Num artigo recente, o sr. mencionou que a crise financeira global, seus desdobramentos e o desafio de como lidar com a mudança climática levaram ao fim do fim da história. Por quê?

GIDDENS - [Francis] Fukuyama inventou a versão moderna da frase do fim da história, e o que ele quis dizer foi que chegamos a uma fase da história em que não podemos ver nada diferente do mundo em que vivemos: de um lado, a democracia parlamentarista e, de outro, o sistema capitalista, com competição e mercados abertos. Acho que não se pode mais tomar essa posição como aceitável, pois uma sociedade de baixo carbono provavelmente mudará bastante o comportamento das pessoas, o modo como veem o mundo. Pode envolver uma crítica forte de viver num tipo de sociedade baseada no consumo, sem outros valores. O que quis dizer foi que temos de nos preparar para pensar novamente de modo muito radical lá na frente. É claro que, agora, temos de lidar com o mundo como o vemos. Mas sou a favor de um retorno parcial a certo utopismo. O mundo que criamos é insustentável, sabemos que não podemos continuar como estamos.

FOLHA - O sr. fala que as nações em desenvolvimento deveriam ser autorizadas a emitir mais carbono no curto prazo, mas isso não funciona. Os EUA e a União Europeia, com medo de perderem competitividade, já disseram que isso é inaceitável. Como resolver essa equação?

GIDDENS - Não podemos impedir os países em desenvolvimento de se desenvolverem. Não seria moralmente correto nem seria factível, na prática. Parte desse desenvolvimento tende a depender pesadamente de combustíveis fósseis e, logo, de emissões de carbono. É por isso que os países já industrializados têm de arcar com 95% do fardo pelos próximos 10, 15, 20 anos até, para reduzir as emissões. Por outro lado, é preciso que o mundo em desenvolvimento assuma um papel importante, não mais a posição passiva, de que isso "não tem nada a ver com a gente". Mas, no caminho, precisamos de avanços tecnológicos e de grandes áreas daquilo que chamo de "convergência econômica e convergência política", para que os países em desenvolvimento sigam um caminho diferente do que o que estão seguindo agora. Em primeiro lugar, estamos atrás de avanços tecnológicos que sejam capazes de levar os países em desenvolvimento a pular algumas etapas de desenvolvimento. Em segundo lugar, estamos procurando vários acordos bilaterais, não apenas a conferência de Copenhague, especialmente entre EUA e China, que produzem quase 50% das emissões. Idealmente, é necessário algum acordo entre os dois, como os EUA permitirem acesso a inovações tecnológicas, com a suspensão de patentes, em troca de algum tipo de concessão da China para os EUA. Mas isso é determinado politicamente. Se não há como repetir o modelo de desenvolvimento, temos de encontrar avanços. Até agora, não conseguimos. A China ainda está fazendo usinas de carvão. Os políticos se sentem muito confortáveis, prometendo cortar as emissões em 80% até 2050, mas não ficam nem um pouco felizes quando você diz que precisam começar agora. Existe muita retórica vazia nesse debate e temos de ver como superar isso para que os acordos sejam atingidos. Temos de olhar para o que pode ser feito, de modo a produzir uma combinação de competitividade e mudança tecnológica. Estou convencido de que países que seguirem o caminho tradicional de desenvolvimento industrial não serão competitivos no médio prazo.

FOLHA - Como o sr. vê o papel do Brasil nesse debate sobre o clima? O que o país deveria fazer?

GIDDENS - Vejo o Brasil como um negociador ou uma terceira parte nas negociações entre os EUA, a União Europeia e a China. Vejo o Brasil capaz de ter uma liderança entre os países de industrialização recente para levar os outros países a uma posição decente. O país pode ter um papel bastante importante, e seria desejável se de fato o exercesse. Mas isso também depende de uma liderança política forte.


(*) É Articulista da Folha de São Paulo.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

ENTREVISTA COM TOM ZÉ SOBRE A IV MOSTRA ETNOGRÁFICA

Ao longo dos últimos anos, a Mostra Amazônica do Filme Etnográfico tem se mostrado com um espaço de exibição e discussão de documentários cujos temas dizem respeito ao homem amazônico e suas mais diferentes formas de representação do cotidiano. Neste ano, o evento, em sua quarta edição, tem como principal tema de discussão acadêmica a filmografia do documentarista britânico Adrian Cowell. Para compreender melhor este evento, o NCPAM entrevistou com exclusividade um dos organizadores da Mostra Etnográfica, o professor de comunicação social Antonio José Vale da Costa, o Tom Zé, pesquisador do NAVI (Núcleo de Antropologia Visual) e coordenador do projeto Cine & Vídeo Tarumã na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). De forma sincera e corajosa, Tom Zé enumera nesta entrevista os principais pontos positivos e negativos do evento e nos explica sua percepção sobre a importância da Mostra.

NCPAM: Para o senhor, qual a importância da Mostra Amazônica do Filme Etnográfico e como essa experiência vem se refletindo nas produções locais?

TOM ZÉ: Penso que todo e qualquer incentivo à produção de audiovisuais no Amazonas tem importância. A Mostra nasceu com a possibilidade de ser mais um instrumento de exibição da produção amazônica de um determinado tipo (ou gênero?) de cinema, o etnográfico. Esse cinema, basicamente composto de documentários, não tem ainda uma unanimidade em sua concepção narrativa. Não há um consenso exato do que seja um filme etnográfico. O que a experiência está revelando é que ele é um cinema que fala o homem amazônico em suas relações sociais. E também uma certa construção diegética em sua realização, que deixa de lado o formato tradicional do documentário, aquele mais parecido com o institucional. O Regulamento da Mostra espelha um pouco essa caracterização. Mas a Mostra tem se revelado também como incentivadora de produções locais com esse formato. Ou seja, acredito que tenha sido a divulgação de obras pela Mostra que tenha alertado alguns realizadores locais para esse cinema mais respeitoso e valorativo com o homem amazônico.(Veja cartaz sobre uma das atividades do Tom ZÉ para promover a cultura cinematográfica no Amazonas).

NCPAM: Como se pensa todo o processo de mobilização e articulação de pesquisadores, realizadores, críticos e parceiros institucionais para a organização, divulgação e realização da Mostra Etnográfica e como ficam estes contatos pós-Mostra?

TOM ZÉ: Bom, aí a coisa complica um pouco. Não conseguimos, no NAVI, imprimir um padrão profissional de organização das mostras depois de quatro edições. Primeiro, pela inexistência de uma equipe verdadeiramente integrada para tal. Segundo, pelas dificuldades mesmas de apoio e parcerias institucionais em Manaus; de uma forma ou de outra, apenas a Secretaria de Estado da Cultura tem se mantido parceira fiel da Mostra. Terceiro, pela desorganização dos realizadores locais de cinema. Quarto, por uma incompreensível não participação de pesquisadores, antropólogos e representantes das etnias/população na concretização do evento, a não ser de forma esporádica; não há uma continuidade sistematizada. Então, as dificuldades são enormes e as edições só se efetivam pela determinação e a obstinação de alguns membros. Não sei até quando isto pode continuar assim... Após as Mostras, tentamos reativar os contatos iniciais, principalmente com os países/Estados que nos cercam, mas nem sempre as respostas ocorrem. Com os realizadores de Manaus, realizamos uma mostra no interior da Ufam/Uninorte/UEA, com a presença deles para interagir com a platéia universitária.

NCPAM: Em cada edição da Mostra, a organização do evento convida determinado cineasta cuja produção baseia-se ou no mínimo dialoga com a temática amazônica. Nesta perspectiva, ocorre uma aproximação deste realizador com o público local mediante Mostra Paralela, Fóruns e Palestras. Qual o balanço que o senhor faz desta experiência ao longo destas quatro edições?

TOM ZÉ: Creio que essa marca é positiva. Mas a cada edição essa possibilidade se reduz pelas características da própria Mostra: amazônica e etnográfica. Nesta última, tanto as dificuldades de apoio financeiro como as de se encontrar um cineasta com essas características, contribuiu para uma redução dos eventos paralelos; apenas a Mostra de Adrian Cowell será exibida e duas mesas-redondas estão programadas. Qualquer possibilidade de se trazer alguém que produza audiovisuais sobre a Amazônia ou ajude a pensar criticamente essa produção é importante. Por outro lado, percebo que quando isto foi viabilizado pelas mostras anteriores, ou os horários foram inibidores de maior fluxo de pessoas ou nosso público ainda se encontra tímido/não se apercebeu da importância de nós mesmos discutirmos esses olhares audiovisuais amazônicos.

NCPAM: A Mostra Etnográfica ao longo das suas últimas edições sempre traz uma discussão norteadora, paralelo à sua Mostra Competitiva. Neste sentido, várias concepções, estéticas e modelos foram discutidos e sistematizados das mais diferentes formas. Desta forma, como que estas discussões contribuem para a reflexão acerca da antropologia visual?

TOM ZÉ: Acho que deveriam contribuir bem mais do que efetivamente fazem, pelos motivos já expostos. Ainda não existiu uma oportunidade mais sistemática de fazer essa discussão acontecer sobre antropologia visual. São momentos esporádicos, sazonais, breves, em que isso ocorre.

NCPAM: Ao longo dos anos, a quantidade de filmes exibidos, além das produções paralelas que sempre são veiculadas no período da Mostra, só tem crescido. Assim, qual a sua perspectiva para este ano, não só em relação à qualidade dos filmes selecionados, mas também em relação às discussões acadêmicas que serão pautadas para este ano?

TOM ZÉ: Como já frisei, há um limitador para se exibir toda a produção que chega até o NAVI – o tempo da Mostra Competitiva e a qualidade estética e temática das obras. Este ano também não fugiu à regra e existem filmes produzidos por pessoas da região e de outros estados brasileiros. A ausência mais sentida foi de obras de países amazônicos, o que é lamentável e reflete uma necessidade de intensificar essa integração. Também teremos apenas duas mesas-redondas integradas à Mostra Adrian Cowell no Teatro Gebes Medeiros e Palácio da Justiça. Também no ICHL/Ufam e Uninorte acontecerão exibições e comentários de filmes realizados pelo cineasta britânico que filmou a Amazônia nas décadas de 70 e 80. Nesse sentido, esses são os espaços possíveis de troca de experiências e discussões acadêmicas durante a Mostra. Depois dessa data, no próximo período letivo da Ufam/Uninorte, serão proporcionados os eventos de exibição das obras amazonenses, com a presença dos diretores.

Nota da Redação: informamos aos nossos leitores que o NCPAM, com o objetivo de divulgar e contribuir para as discussões a respeito da antropologia visual fará a cobertura da IV Mostra Amazônica do Filme Etnográfico, que acontecerá entre os dias 27 a 31 de outubro deste ano. Para saber mais sobre a Mostra, acesse: www.mostraetnografica.ufam.edu.br