sábado, 24 de outubro de 2009

AS ARMADILHAS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS, SEGUNDO GIDDENS


Pedro Dias Leite (*)

Um dos sociólogos mais influentes da atualidade, Anthony Giddens, 71, afirma que a crise financeira global vai redefinir radicalmente a sociedade em que vivemos, avalia que "estamos no estágio inicial de descobrir o que seria um novo modelo de capitalismo responsável e global" e prevê uma convergência no debate sobre a grande recessão e os desafios da mudança climática.

"Em ambos os casos, estamos falando de um papel forte para o Estado e de mais regulação, de um planejamento de mais longo prazo que não tivemos no passado, de controlar mecanismos de mercado mais efetivamente do que nos últimos 30 anos pelo menos, de mais inovações tecnológicas."

Principal ideólogo da Terceira Via, a busca de um caminho alternativo entre o liberalismo radical e as tendências estatizantes tradicionais da social-democracia, Giddens agora volta sua atenção para o tema do aquecimento global, em livro lançado na semana passada: "The Politics of Climate Change" (A Política de Mudança Climática, Polity Press, 256 págs., 12,99, R$ 43).

O Ex-reitor da London School of Economics, lorde Giddens defende que os países ricos têm de arcar com 95% dos custos da luta contra o aquecimento global pelos próximos anos, pois "não é moralmente correto nem seria factível na prática impedir os países em desenvolvimento de se desenvolverem". Por outro lado, o sociólogo cobra o fim da "atitude passiva" dos países em desenvolvimento em relação ao tema e enxerga o Brasil exercendo um papel de liderança, como mediador entre EUA, China e União Europeia.

Giddens deu a entrevista à Folha no pub da Câmara dos Lordes, depois de uma pequena volta explicativa pelo local (a palavra "lobby" vem do sistema britânico, em que os parlamentares favoráveis e contrários são separados em antessalas distintas antes de votar, os lobbies). No final, foi para casa de metrô. A seguir, os principais trechos da entrevista (com recorte do NCPAM).

FOLHA - Em seu livro, o sr. lança o "paradoxo de Giddens": uma vez que os perigos do aquecimento global não são visíveis no dia a dia, apesar de parecerem terríveis, as pessoas não irão agir; contudo, esperar até que se tornem visíveis e sérios para então tomar uma atitude será tarde demais. Como lidar com isso?

ANTHONY GIDDENS - Eu aplico o paradoxo de Giddens especialmente aos países desenvolvidos, porque são eles que têm que tomar a liderança. Por exemplo, para alguém que caminha pelas ruas de Londres, as enchentes de Bangladesh não são algo que afete o dia a dia das pessoas. Para lidar com isso, é preciso romper com as estratégias do passado. As coisas que têm saído pré-Copenhague [em dezembro haverá uma conferência na capital dinamarquesa para definir o mundo pós-protocolo de Kyoto], com os cientistas dizendo que "é muito pior do que pensávamos", passam longe da realidade das pessoas nas ruas. Muitas questões que parecem apocalípticas, que saem nos jornais e na mídia, são iguais a filmes que as pessoas não conseguem distinguir da realidade. É bem difícil esperar que as pessoas comecem a agir com base nisso. Por isso proponho uma reorganização fundamental do pensamento, para focar muito mais nos investimentos, para ver os lados positivos do aquecimento global. Podemos criar uma genuína economia verde, quebrar a dependência do Oriente Médio, garantir segurança energética e levar a uma vida melhor por meio dessas transformações. Dizer para os empresários que eles podem se tornar mais competitivos. Não sou contra regulação ou metas para reduzir a emissão de carbono. Na verdade, sou a favor dessas coisas, mas não acho que elas possam mobilizar as pessoas. Olhe para o tipo de abordagem que o presidente [dos EUA, Barack] Obama produziu, é muito diferente de todos, é muito mais afirmativa. Não sabemos se vai ter sucesso, claro, porque estamos falando aqui em mudar o "estilo de vida americano". No entanto ele fala disso como um projeto inspirador, que tem muito mais ressonância.

FOLHA - O sr. fala que o movimento verde sequestrou o debate sobre mudança climática e que é preciso sair dessa armadilha. Como assim?

GIDDENS - O movimento verde começou da metade para o final do século 19, fortemente influenciado pela ideia romântica de uma crítica do industrialismo, a nostalgia de uma terra que não havia sido modificada pelas indústrias. Sua força motriz era a conservação, a proteção da natureza e do ambiente. Realmente deveríamos ter deixado a natureza em paz, só que agora é tarde demais, e maior intervenção na natureza será absolutamente necessária. A mudança climática é muito diferente das preocupações tradicionais dos verdes e, para lidar com ela, temos de nos livrar de alguns dos preconceitos que os verdes - não todos, mas alguns- têm, de não interferir muito na natureza, de um princípio da precaução. O caminho para lidar com a mudança climática deve ser de ousadia, inovação, o máximo uso da tecnologia. Não quero descartar completamente o movimento verde, pois tem um importante papel de trazer esses assuntos para a agenda, e isso tem valor. No entanto, se você olhar para o manifesto dos verdes globais, muito pouca coisa tem a ver com mudança climática. E um dos problemas é que alguns grupos se veem como operando fora da política, extremamente críticos das atividades das grandes corporações. Mas o vital agora para a mudança climática é trazer para o centro do debate algo que 60%, 70% da população possa compreender.

FOLHA - Num artigo recente, o sr. mencionou que a crise financeira global, seus desdobramentos e o desafio de como lidar com a mudança climática levaram ao fim do fim da história. Por quê?

GIDDENS - [Francis] Fukuyama inventou a versão moderna da frase do fim da história, e o que ele quis dizer foi que chegamos a uma fase da história em que não podemos ver nada diferente do mundo em que vivemos: de um lado, a democracia parlamentarista e, de outro, o sistema capitalista, com competição e mercados abertos. Acho que não se pode mais tomar essa posição como aceitável, pois uma sociedade de baixo carbono provavelmente mudará bastante o comportamento das pessoas, o modo como veem o mundo. Pode envolver uma crítica forte de viver num tipo de sociedade baseada no consumo, sem outros valores. O que quis dizer foi que temos de nos preparar para pensar novamente de modo muito radical lá na frente. É claro que, agora, temos de lidar com o mundo como o vemos. Mas sou a favor de um retorno parcial a certo utopismo. O mundo que criamos é insustentável, sabemos que não podemos continuar como estamos.

FOLHA - O sr. fala que as nações em desenvolvimento deveriam ser autorizadas a emitir mais carbono no curto prazo, mas isso não funciona. Os EUA e a União Europeia, com medo de perderem competitividade, já disseram que isso é inaceitável. Como resolver essa equação?

GIDDENS - Não podemos impedir os países em desenvolvimento de se desenvolverem. Não seria moralmente correto nem seria factível, na prática. Parte desse desenvolvimento tende a depender pesadamente de combustíveis fósseis e, logo, de emissões de carbono. É por isso que os países já industrializados têm de arcar com 95% do fardo pelos próximos 10, 15, 20 anos até, para reduzir as emissões. Por outro lado, é preciso que o mundo em desenvolvimento assuma um papel importante, não mais a posição passiva, de que isso "não tem nada a ver com a gente". Mas, no caminho, precisamos de avanços tecnológicos e de grandes áreas daquilo que chamo de "convergência econômica e convergência política", para que os países em desenvolvimento sigam um caminho diferente do que o que estão seguindo agora. Em primeiro lugar, estamos atrás de avanços tecnológicos que sejam capazes de levar os países em desenvolvimento a pular algumas etapas de desenvolvimento. Em segundo lugar, estamos procurando vários acordos bilaterais, não apenas a conferência de Copenhague, especialmente entre EUA e China, que produzem quase 50% das emissões. Idealmente, é necessário algum acordo entre os dois, como os EUA permitirem acesso a inovações tecnológicas, com a suspensão de patentes, em troca de algum tipo de concessão da China para os EUA. Mas isso é determinado politicamente. Se não há como repetir o modelo de desenvolvimento, temos de encontrar avanços. Até agora, não conseguimos. A China ainda está fazendo usinas de carvão. Os políticos se sentem muito confortáveis, prometendo cortar as emissões em 80% até 2050, mas não ficam nem um pouco felizes quando você diz que precisam começar agora. Existe muita retórica vazia nesse debate e temos de ver como superar isso para que os acordos sejam atingidos. Temos de olhar para o que pode ser feito, de modo a produzir uma combinação de competitividade e mudança tecnológica. Estou convencido de que países que seguirem o caminho tradicional de desenvolvimento industrial não serão competitivos no médio prazo.

FOLHA - Como o sr. vê o papel do Brasil nesse debate sobre o clima? O que o país deveria fazer?

GIDDENS - Vejo o Brasil como um negociador ou uma terceira parte nas negociações entre os EUA, a União Europeia e a China. Vejo o Brasil capaz de ter uma liderança entre os países de industrialização recente para levar os outros países a uma posição decente. O país pode ter um papel bastante importante, e seria desejável se de fato o exercesse. Mas isso também depende de uma liderança política forte.


(*) É Articulista da Folha de São Paulo.

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