terça-feira, 6 de outubro de 2009

ÁGUA DE LASTRO: “cientistas canadenses declararam que a presença do mexilhão-zebra alterou o pH da água potável dos grandes lagos".


WESLEY COLLYER *

Quando não estão completamente carregados, os navios dependem do uso de lastro para manter a estabilidade e a integridade estrutural. Até 1880 [08] utilizaram-se pedras ou areia para lastrear as embarcações. A partir daí, generalizou-se o uso de água e, até hoje, não se encontrou substituto melhor. Sua utilização pode assim ser resumida: os tanques ou porões são carregados com água do porto ou do litoral em que se encontram; o navio empreende a viagem e descarrega essa água no litoral ou dentro do porto de escala seguinte. Nesse "intercâmbio" de água de lastro – ou simplesmente lastro, para os operadores de navios – movimenta-se grandes quantidades de água entre diferentes regiões do globo: de seis a dez bilhões de toneladas a cada ano [09].

A água de lastro transportada e descarregada transfere microrganismos e espécies da fauna e da flora típicos de uma região para outra totalmente estranha, o que pode causar sérias ameaças ecológicas, econômicas e à saúde. Nela, podem estar presentes organismos exóticos, tóxicos, e até patogênicos, como o vibrião colérico. Essa possibilidade foi reconhecida não apenas pela Organização Marítima Internacional (IMO) [10], mas também pela Organização Mundial de Saúde [11]. Estima-se que o transporte de água de lastro movimente mais de sete mil espécies a cada dia em torno do globo. Estudo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária [12] (ANVISA), do Ministério da Saúde em navios nos portos brasileiros, constatou que "foi evidenciado transporte de [...] coliformes fecais (13%), Escherichia coli (5%), [...] Vibrio cholerae O1 (7%), [...]".

Diferentemente do que ocorre com outras formas de poluição marinha, que acontecem por acidente, como derramamento de óleo – ocorrência com grande visibilidade – a introdução de espécies transportadas pela água de lastro decorre de uma atividade que é inerente à própria operação do navio – e é invisível... Basta que o invasor seja pequeno suficiente para passar através dos filtros da rede e das bombas de lastro: micróbios, bactérias, ovos, cistos, larvas e até pequenos invertebrados de diversas espécies. Outros, em sua forma adulta, são transportados presos ao casco ou a qualquer outra superfície externa do navio.

Na poluição marinha por óleo ou por substâncias químicas, medidas de combate são tomadas de imediato e no mínimo as conseqüências são mitigadas; contudo, o dano ocasionado por organismos exóticos pode ser irreversível. Muitos deles não encontram no novo habitat inimigo naturais (predadores ou competidores pelos recursos) e, se tiverem boa capacidade para se adaptarem às novas condições, expandem-se rapidamente, podendo causar alterações na estrutura e no funcionamento da teia alimentar, o que pode levar à diminuição da abundância, da biomassa e até mesmo à eliminação de espécies nativas [13].

Como se sabe, a água da zona portuária ou costeira é mais rica em microrganismos do que a coletada em alto mar. O risco, portanto, de disseminação de espécies alienígenas potencialmente perigosas e daninhas é muito grande. Se os navios iniciarem o lastreamento (captação da água de lastro) em locais próximos àqueles em que são realizados despejos de esgotos, a possibilidade de captação de organismos patogênicos junto com a água de lastro aumenta consideravelmente.

Felizmente a maioria desses organismos não sobrevive à viagem, contudo, algumas espécies resistem, multiplicam-se e causam problemas como alteração no equilíbrio ecológico local, obstrução de redes de água potável e até interferência na navegação.

Informa o Biólogo Ariel Scheffer da Silva, do Instituto Ecoplan, que a IMO estima que até 1939, 497 espécies exóticas haviam sido introduzidas em ecossistemas de todo o mundo e que, apenas entre 1980 e 1998, esse número subiu para 2.214 espécies [14]. Mostram os estudos que a cada nove semanas, uma espécie marinha invade um novo ambiente em algum lugar do globo.

A transferência e introdução desses organismos marinhos exóticos em novos ambientes, trazidos por navios, na água de lastro ou incrustados no casco ou em outras superfícies externas, ameaça a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, e é tida como uma das quatro maiores ameaças aos oceanos. As outras são a poluição, a pesca excessiva e a destruição do habitat marinho [15]. Sem dúvida, a incrustação em cascos de navios é a responsável "pelo maior número de introduções marinhas ao longo do tempo", contudo, "a descarga de água de lastro é potencialmente a mais importante" [16]. Registre-se também que as espécies exóticas invasoras, de qualquer tipo e por qualquer vetor, "constituem a segunda causa mundial de perda de diversidade biológica" [17].

BIOINVASÃO

No Brasil, havia pouco interesse e, por conseqüência, pouca divulgação dos problemas associados à água de lastro, até que a "invasão" de um mexilhão chamou a atenção das autoridades e da comunidade científica.

O mexilhão dourado (Limnoperna fortunei) é um molusco de água doce e salobra de cerca de três centímetros de comprimento, originário dos rios asiáticos, principalmente da China. Na América do Sul, foi avistado pela primeira vez na desembocadura do Rio da Prata, na Argentina, em 1991, tendo lá chegado, certamente, através da água de lastro. Daí avançou pelos rios Paraná e Paraguai e alcançou o Pantanal. Seu primeiro registro no Brasil deu-se no Rio Grande do Sul, em 1999. Hoje já é encontrado, em grande quantidade, em vários rios do estado [18].

A invasão do mexilhão dourado, considerado voraz e agressivo, tem provocado impactos sócio-econômicos significativos em parte da população. O mexilhão interfere na reprodução de espécies nativas e causa prejuízos e desequilíbrio nos ecossistemas onde se instala. Por ter grande capacidade de adaptação, não encontrar inimigos naturais em nossas águas e ter alto pode de reprodução – uma única fêmea coloca milhares de larvas – adere e se fixa a qualquer superfície dura e forma crostas que podem cobrir áreas extensas, construindo colônias que obstruem completamente tubulações, filtros, sistemas de drenagens e canais de irrigação, o que exige interrupções mais freqüentes para conservação.

Em Itaipu, o mexilhão dourado alterou a rotina de manutenção das turbinas ao fazer reduzir o intervalo entre as paralisações, antecipando custos de quase US$ 1 milhão a cada dia de paralisação do sistema. O mexilhão também se incrusta em estruturas portuárias, força mudanças nas práticas de pesca de populações tradicionais e prejudica o sistema de refrigeração de pequenas embarcações, não raro, fundindo motores.

No Lago do Guaíba, o molusco mudou a rotina dos pescadores. A espécie rasga as redes, entope os aparelhos e causa prejuízos [19]. No Pantanal Mato-grossense, o mexilhão dourado tem sido encontrado na barriga de peixes.

Embora sejam escassos os estudos sobre os prejuízos econômicos e apesar de o fenômeno ser desconhecido pela absoluta maioria da população, a proliferação do mexilhão dourado em nossos rios preocupa o governo brasileiro. Em 2004 foi criado um "Plano de Ação Emergencial para o Controle do Mexilhão Dourado", que reuniu 19 órgãos do poder público, empresas privadas e organizações civis, através de uma Força-Tarefa Nacional sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente. Também foi criada uma página na internet para divulgar os problemas ocasionados pelo molusco.

O esforço conjunto de todos os que se preocupam com o meio ambiente é importante para que a praga seja controlada. No Rio Grande do Sul, o Ministério Público Federal impetrou Ação Civil Pública contra o Estado e o IBAMA, devido aos problemas acarretados pela invasão do molusco [20]. Em 17 de julho de 2006, a Justiça Federal determinou que o IBAMA e o governo gaúcho iniciassem o combate ao mexilhão no estado, o que prevê o mapeamento e o monitoramento da área de ocorrência do invasor, com identificação dos locais por meio de placas informativas [21]. Em novembro do mesmo ano, iniciou-se um trabalho de "educação ambiental por meio da capacitação de multiplicadores no estado e municípios, bem como entre setores da sociedade civil, com realização de barreiras conjuntas de fiscalização, vistorias em clubes náuticos e outras atividades que utilizem recursos hídricos" [22].

Uma outra espécie exótica, o siri Charybdis hellerii, originário dos oceanos Índico e Pacífico, chegaram ao Brasil provavelmente na água de lastro colhida no Caribe. Hoje ele está presente na baía de Todos os Santos (BA), e nas baías de Sepetiba e Guanabara (RJ). Este siri, sem valor comercial, está substituindo as populações de caranguejos que têm importância pesqueira e vem causando prejuízos à comunidade de pescadores.

Nos Estados Unidos, o invasor que mais preocupa é o mexilhão-zebra (Dreissena polymorpha), oriundo dos mares Cáspio e Negro, que já infesta cerca de 40% das águas continentais americanas, tendo aí chegado trazido por navios. Sua proliferação também é rápida, colonizando massivamente encanamentos e passagens de água. Estima-se que os gastos com medidas de controle, entre 1989 e 2000, tenham alcançado US$ 1 bilhão [23]. Os maiores prejuízos têm sido aos setores elétrico e industrial [24].

Em 18 de janeiro de 2007, cientistas canadenses declararam à imprensa que a presença do mexilhão-zebra alterou o pH da água potável dos Grandes Lagos. A afirmação tem por base estudo realizado na Universidade Ryerson, de Toronto (Canadá), publicado na edição de dezembro/2006 da revista "Science of the Total Environment". Informaram eles que o mexilhão criou condições favoráveis para o desenvolvimento de cianofíceas (algas azuis) e detalharam que as cianobactérias desprendem substâncias químicas que alteram o sabor da água, geram odor nauseante e podem, eventualmente, ser tóxicas para os seres humanos [25].

Em "contrapartida" à invasão do mexilhão-zebra, no Mar Cáspio, a água-viva norte-americana Mnemiopsis leidyi esgotou os estoques de plâncton, alterando a cadeia alimentar e o ecossistema. No Mar Negro e no Mar de Azov, contribuiu para o colapso de toda a pesca comercial na década de noventa, provocando grande impacto econômico e social ao esgotar os estoques do peixe kilka, nativo daquela área [26]. Também há registro de que nossa "carambola do mar" chegou ao Mar Negro [27]. No sul da Austrália, a alga marinha asiática Undaria pinnatifida desalojou comunidades nativas do solo oceânico.

Em diversos países, algas microscópicas exóticas têm provocado a "maré-vermelha", ou "floração excepcional de algas tóxicas" [28], que extermina a vida marinha ao reduzir drasticamente o oxigênio e, ao mesmo tempo, liberar toxinas, prejudicando também o turismo e a recreação. Tal fenômeno já ocorreu a alguns anos em Guaraqueçaba, no litoral do Paraná, causando mortandade de peixes e sérios problemas para a população local. Em alguns lugares, como na África do Sul, as "marés-vermelhas" contaminaram mariscos e fizeram as autoridades proibirem a pesca. Há relatos de que o consumo de mariscos envenenados causou formigamento e entorpecimento dos lábios, boca e dedos, além de dificuldade de respiração, paralisia e até a morte [29].

Há diversos outros exemplos de como espécies invasoras podem causar impactos indesejáveis para a saúde, para a ecologia dos ambientes hospedeiros e para a economia. Especialistas opinam que o impacto econômico global "ultrapassa dezenas de bilhões de euros por ano" [30] e a IMO considera que a bioinvasão continua "em ritmo alarmante, em muitos casos exponencialmente, com novas áreas sendo invadidas a todo momento" [31].

No Brasil, os números são crescentes: já foram identificadas cerca de 30 espécies aquáticas invasoras, tendo a água de lastro como vetor [32] e, com o constante incremento do tráfego marítimo, o problema tende a se agravar. Alguns especialistas acham mesmo que é irreversível. Para Robson Calixto [33], assessor do Programa de Gerenciamento Ambiental e Territorial do Ministério do Meio Ambiente, pode-se gerenciar e controlar o risco, mas a erradicação "é difícil".

Na tentativa de conter o problema, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) desenvolve, desde 2001, um projeto de pesquisa exploratória para coletar dados que informem a dimensão do risco apresentado pela água de lastro, que é um dos componentes da vigilância ambiental em saúde para o controle do cólera em áreas portuárias [34]. A ANVISA mantém 150 funcionários em 40 portos, monitorando e controlando a qualidade da água de lastro das embarcações, cujos responsáveis devem informar onde a mesma foi coletada e onde foi descarregada ou trocada. O estudo é realizado em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e financiado pela OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde).

(*) Ex-encarregado dos cálculos de sobreestadia da Petrobrás, professor universitário, advogado em Florianópolis (SC) e cursa o Programa de Mestrado em Ciência Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, co-autor,com Marco A. Collyer, do Dicionário de Comércio Marítimo, 3ª ed. Rio de Janeiro: Lutécia/Record, 2002, dentre outras obras.

NR: Os pesquisadores do NCPAM sentem-se no dever de publicar esse denso artigo do professor Colllyer com propósito de suprir as lacunas identificadas no corpo do EIA/RIMA referente à construção do Terminal Portuário das Lajes. Não sabemos se foi por ignorância ou por “desvio profissional ético”, que os doutos da Laje omitiram informações importantíssimas sobre os riscos de bioinvasão transportadas nas Águas de Lastros dos navios cargueiros internacionais, atividade diretamente vinculadas com a pretensa construção do Porto das Lajes nas imediações do monumental Encontro das Águas. Além desses danos a vista, na circunvizinhança do projeto até então barrado pela força do movimento socioambiental S.O.S. Encontro das Águas, o Governo do Estado do Amazonas está construindo uma Adutora de Água para abastecer os moradores da Zona Norte e Leste de Manaus, mais um agravante para se rasgar de vez a proposta de construção do Porto, nas condições impostas pelos empresários, garantindo-se dessa feita, o equilíbrio dos ecossistemas do meio ambiente, bem como a qualidade de vida da população do Amazonas. O texto na íntegra pode ser encontrado na http://jus2.uol.com.br/doutrina sob o título “Águas de Lastro, Bioinvasão e Resposta Internacional” (2007). No entanto, em nossa edição faremos postagem em série, por limitação de espaço, destacando inclusive a riquíssima bibliografia e as notas de referencias muito bem trabalhadas pelo autor, com toda preocupação em não ferir o texto em sua integridade significativa.

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