quinta-feira, 8 de outubro de 2009
MEMÓRIA E EXPERIÊNCIA EM “HIROSHIMA MEU AMOR”
Khemerson Macedo*
Um dos temas recorrentes nas pesquisas do NCPAM diz respeito à questão da memória no processo de reconstituição histórica de determinada realidade social. Neste artigo, buscaremos analisar o tema da memória social a partir de um filme lançado em 1959 pelo diretor Francês Alain Resnais e que, como poderão perceber, apresenta um belo exemplo daquilo que buscamos nas nossas pesquisas etnográficas: como que determinados fatos moldam nossas experiências e como estas experiências são sentidas, vivenciadas e por último, compartilhadas pelos indivíduos. É o que buscaremos entender a partir da resenha deste filme em particular: Hiroshima Meu Amor.
Hiroshima Meu Amor é um daqueles filmes em que o diálogo nos revela mais do que as imagens vistas na tela. Concebida pela escritora francesa Marguerite Duras, a história nos apresenta a uma atriz francesa (Emmanuelle Riva) que está em Hiroshima rodando um filme sobre a paz. Durante as filmagens, acaba conhecendo um arquiteto japonês (Eiji Okada), com quem passa a noite e a faz relembrar seu primeiro amor, um soldado alemão que conheceu em Nevers, na França, durante a Segunda Guerra. Toda a ação de Hiroshima Meu Amor desenvolve-se a partir das lembranças que a protagonista mantém sobre este relacionamento proibido, à medida que vai se envolvendo cada vez mais com seu amante japonês.
Logo no início da projeção, somos levados a acreditar que o fio condutor da narrativa será a tragédia de Hiroshima, algo comprovado nas primeiras cenas, quando imagens de arquivo mostrando as conseqüências da bomba atômica são justapostas a planos que representam o casal em momentos íntimos de sexo. Curiosamente, durante conversa com o parceiro sobre a tragédia, a protagonista demonstra enorme sensibilidade em relação à temática e que, por comparação, contrasta com a própria percepção do amante sobre o fato, algo que será sutilmente explicado aos poucos, no transcorrer da trama. Após este primeiro ato, a memória coletiva da tragédia de Hiroshima dá lugar aos relatos da protagonista sobre suas experiências em sua cidade natal, quando se apaixonou por um soldado nazista, invertendo nossas perspectivas quanto à condução da narrativa e obrigando-nos a compreendermos melhor as motivações da protagonista que, neste filme, encontra-se atrelada às suas lembranças.
Um primeiro indício que temos quanto ao verdadeiro enredo deste filme pode ser verificado na cena em que a francesa contempla seu amante enquanto este dorme; enquanto a câmera executa um rápido close na mão do arquiteto, que está de bruços, logo uma imagem de outra mão, na mesma posição, só que pertencente a um soldado agonizante, corta o quadro, rapidamente, representando um lampejo da protagonista, que assim, logo se lembra de seu trágico amante alemão, quando esta ainda se encontrava em Nevers. Vale lembrar que imagens recorrentes desta pequena vila francesa aparecem repetidas vezes durante a projeção, em flashbacks cada vez mais freqüentes.
É neste ponto que começamos a compreender este filme único. Se neste filme, o diálogo tem papel primordial, é porque ele tem a função de mover a história adiante. Tudo o que precisamos saber de antemão sobre os protagonistas são passados ou no mínimo sugeridos a partir das conversas que eles mantêm. Desde o início fica claro que o foco do filme é a importância da memória e a necessidade e/ ou a inevitabilidade do esquecimento como processo de amadurecimento e autopreservação humana. Em casos extremos, como a tragédia de Hiroshima, ocorre este duplo processo, fruto dos traumas advindos da catástrofe coletiva. Surge a pergunta (embora esta esteja implícita no filme): o que fazer? Esquecer para não sofrer com os traumas ou lembrar para que os erros não se repitam?
Seja como for, a complexidade da questão é levada no filme, para o âmbito das experiências mais íntimas, uma vez que, a cada momento que a protagonista é levada a rememorar suas tragédias pessoais, o filme passa a entrecortar passado e presente, e o recurso utilizado para representar este processo são os constantes flashbacks que vão surgindo cada vez que sua memória é estimulada a partir de certas referências puramente sensoriais, como cheiros, texturas, paisagens, etc., como na seqüência em que as ruas de Hiroshima no tempo presente são exibidas paralelamente às ruelas de Nevers, no tempo passado, sugerindo ao telespectador uma constante rememoração, por parte da protagonista, reconstituindo-se, assim, suas experiências passadas.
Estabelecida esta premissa, passamos a entender que a cidade de Hiroshima importa no filme, como ponto de partida para a rememoração da protagonista que, ao se perceber perdidamente apaixonada novamente, surpreende-se por ter legado ao esquecimento a história de amor que teve com o soldado alemão durante a Segunda Guerra e que, por razões óbvias, foi obrigada a sufocar, ao passo que suas memórias sobre a tragédia de Hiroshima são vívidas como se esta tivesse sido uma testemunha ocular do fato.
Assim, temos um novo questionamento: porque uma experiência tão pessoal é deixada ao esquecimento, ao passo que um fato tão distante, geográfica e pessoalmente é sentida pela personagem como se fosse algo próximo, pessoal?
Deste questionamento, temos a possível explicação: A maneira que sentimos determinadas experiências define nossas lembranças das mesmas. Ao compartilhar suas lembranças com o novo parceiro, a protagonista tece um fio tênue entre realidade e ficção, onde sentimentos sentidos e compartilhados na época em que se deu o fato afloram e se confundem com os sentimentos vivenciados no presente, explicando as seqüências em que a personagem confunde seu novo amante com o antigo amor alemão. Desta interação, afloram-se também os traumas vivenciados por ela: O envolvimento com um nazista envergonhou seus pais perante Nevers obrigando-os, em nome da honra, encerrar a filha num porão escuro e isolado do mundo, o que talvez traduza o sentimento da protagonista por Hiroshima como um ato involuntário de catarse, pois, afinal de contas, ela foi apaixonada por um nazista que deveria ser “naturalmente” seu inimigo. Este sentimento dúbio sugere um conflito psicológico intenso que pode explicar o gradual esquecimento da moça a respeito deste período particular de sua vida.
Ao final do filme os protagonistas, que nunca citam seus nomes, exclamam, mutuamente: “Tu és Hiroshima” / “E tu és Nevers”, encerrando uma idéia de pertencimento a partir da auto-identificação com suas cidades de origem, onde cada personagem traz consigo sua história individual guardadas em suas respectivas memórias, prontas para serem lembradas e relatadas pelos sujeitos envolvidos, mediante referências pessoais e coletivas. No caso deste filme, a jornada percorrida pela protagonista não encerra com uma mensagem clara a respeito de sua experiência, mas revela desdobramentos que inevitavelmente hão de acontecer, como comprova o último plano do filme.
Fonte da imagens: http://cinemaeuropeu.blogspot.com/2009/01/hiroshima-meu-amor-final.html.
(*)Graduando de Ciências Sociais e coordenador de pesquisa do NCPAM/UFAM.
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