segunda-feira, 5 de outubro de 2009

ARTE DE AMAR


Erich Fromm *

A dificuldade do problema é acentuada pelo fato de que a maioria das pessoas de hoje, e, portanto muito leitores deste livro (Arte de Amar. Belo Horizonte: Itatiaia, s/d), espera receber prescrições sobre “como fazê-lo” e isso, em nosso caso, significa ser ensinado a amar. Receio que quem quer que chegue a este último capítulo (A Prática do Amor) com tal espírito fique gravemente decepcionado.

Amar é uma experiência pessoal que cada qual só pode ter por si e para si; de fato, quase não há quem não tenha tido tal experiência pessoal que cada qual só pode ter por si e para si; de fato, quase não há quem não tenha tido tal experiência, de modo rudimentar pelo menos, como criança, adolescente, ou adulto.

O que a discussão da prática do amor pode fazer é discutir as pressas as premissas da arte de amar, o meio de rumar para ela, por assim dizer, e a prática dessas premissas e marchas. Os passos para a meta só podem ser praticados por quem os vai dar e a discussão termina antes que se dê o passo decisivo. Contudo, acredito que a discussão dos meios de chegar à arte pode ser útil para o seu domínio – pelo menos para aqueles que se libertaram de esperar “prescrições”.

A prática de qualquer arte tem certos requisitos gerais, inteiramente independentes de lidarmos com arte da carpintaria, da medicina ou a arte de amar. Antes de tudo, a prática de uma arte exige disciplina. Nunca serei bom em coisa alguma, se não a fizer de modo disciplinado; tudo que eu só puder fazer quando “estiver disposto” pode ser uma diversão bonita ou aprazível, mas nunca me tornarei mestre nessa arte.

O problema, porém, não é só o da disciplina na prática da arte particular (digamos, praticando-a certo número de horas todos os dias), mas é o da disciplina na vida inteira da pessoa. Pode-se pensar que nada é mais fácil, para o homem moderno, do que aprender disciplina. Não passa ele oito horas por dia maneira mais disciplinada, num trabalho que é estritamente rotinizado?

O fato, entretanto, é que o homem moderno tem excessivamente pouca autodisciplina fora da esfera do trabalho. Quando não trabalha, quer ficar ocioso, espreguiçar-se ou, para usar uma palavra mais bonita, “repousar”. Este próprio desejo de ociosidade é, em grande parte, uma reação contra a rotinização da vida. Precisamente por ser forçado, durante oito horas diárias, a gastar energia para fins que não são os seus próprios, de maneira que não são as suas, mas lhe são prescritas pelo ritmo do trabalho, o homem se rebela e sua rebelião toma a forma de uma auto-complacência infantil. Em acréscimo, na batalha contra o autoritarismo, ele se tornou desconfiado de que qualquer disciplina, da imposta pela autoridade irracional assim como da disciplina racional imposta por ele mesmo. Sem tal disciplina, contudo, a vida se torna estilhaçada, caótica e falha de concentração.

Dificilmente seria necessário provar que a concentração é condição necessária para o domínio de uma arte. Quem quer que já tenha tentado aprender uma arte sabe disso. Todavia, mais ainda do que a auto-disciplina, a concentração é rara em nossa cultura. Pelo contrário, nossa cultura leva a um modo de vida desconcentrado e difuso, que em qualquer outra parte mal tem paralelo. Fazem-se muitas coisas ao mesmo tempo: lê-se, ouve-se rádio, fala-se, fuma, bebe-se, come-se.

Somos o consumidor de boca aberta, ávida, pronto a tragar tudo: filmes, bebidas, conhecimentos. Esta falta de concentração facilmente se mostra em nossa dificuldade de ficar sós conosco mesmos. Sentar-se quieto, sem falar, fumar, ler, beber, é impossível para a maioria das pessoas. Ficam nervosas e inquietas, precisam fazer alguma coisa com a boca ou as mãos. (Fumar é um dos sintomas dessa falta de concentração; ocupa as mãos, a boca, os olhos e o nariz).

Terceiro fator é a paciência. Mais uma vez, quem quer que já tenha tentado dominar uma arte sabe que a paciência é necessária, se se quer alcançar alguma coisa. Quem anda atrás de resultados rápidos nunca aprende uma arte. Contudo para o homem moderno, a paciência é prática tão difícil quanto à disciplina e a concentração.

Todo o nosso sistema industrial incentiva exatamente o oposto: a rapidez. Todas as nossas máquinas são planejadas para rapidez: o automóvel e o aeroplano levam-nos rapidamente a nosso destino – quanto mais depressa, melhor.

A máquina que pode produzir a mesma quantidade na metade do tempo é duas vezes melhor que a mais antiga e mais vagarosa. Sem dúvida, há para isso importantes razões econômicas. Mas, como em muitos outros aspectos, os valores humanos tornaram-se determinados por valores econômicos. O que é bom para as máquinas deve ser bom para os homens – assim diz a lógica. O homem moderno pensa que perde alguma coisa – o tempo – quando não faz as coisas rapidamente; todavia, ele não sabe o que fazer com o tempo que ganha - a não ser matá-lo.

Afinal, a condição do aprendizado de qualquer arte é uma preocupação suprema com o domínio dela. Se a arte não for coisa de suprema importância, o aprendiz nunca a aprenderá. Ficará no máximo, como um bom amador, mas nunca se tornará um mestre. Esta condição é tão necessária para a arte de amar como para qualquer outra arte. Parece, entretanto, que a proporção entre mestres e amadores pesa mais fortemente em favor dos amadores da arte de amar do que no caso das outras artes.

Ainda um ponto deve ser tratado com relação às condições gerais de aprendizado de uma arte. Não se deve começar a aprender uma arte diretamente, mas, por assim dizer, indiretamente.

Deve-se aprender grande número de outras coisas – às vezes aparentemente desconexas – antes de começar com a arte propriamente dita. Um aprendiz de carpintaria começa aprendendo a aplainar madeira; um aprendiz da arte de tocar piano começa praticando escalas; um aprendiz da arte de atirar com arco e flecha começa fazendo exercícios respiratórios. (Zen in the Art of Archery, E. Herrigel, Londres, Routledge, 1954).

Se alguém quer tornar-se mestre em alguma arte, deve ter a vida inteira devotada a ela, ou pelo menos relacionada com ela. A própria pessoa se torna um instrumento para a prática da arte e deve ser conservada em condições adequadas, de acordo com as funções específicas que tem a desempenhar.

Com relação à arte de amar, isto significa que quem aspire a tornar-se mestre nessa arte deve começar por praticar a disciplina, a concentração e a paciência, em todas as fases da vida.

(*) Psicanalista alemão (23/3/1900 – 18/3/1980), com doutorado na Universidade de Heidelberg, nesse campo promoveu um intenso diálogo entre o Marxismo e a Psicanálise. Sua prática intelectual contrariava o totalitarismo e formas de alienação social. The Art of Loving (A Arte de Amar), data de 1956, com ecos na modernidade.

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