sexta-feira, 2 de outubro de 2009

AFIRMAÇÃO ÉTNICA E PLURALISMO CULTURAL



José Jorge de Carvalho *

A luta pelas cotas para negros e indígenas é um dos grandes movimentos políticos e intelectuais da presente década no Brasil. Ela acordou uma comunidade acadêmica bastante adormecida de polêmicas ideológicas e intelectuais para um debate intenso a ponto de que maior parte dos coletivos das áreas de ciências sociais, humanidades e educação se encontram agora divididos sobre o tema, como se pode aferir das assinaturas dos 4 Manifestos, dois contra e dois a favor das cotas, divulgados amplamente em 2006 e 2008. Mas o que acirra os ânimos dos contrários às ações afirmativas são as cotas para os negros.

As cotas para os indígenas não têm encontrado muita resistência, apesar de seu potencial até maior de questionamento do eurocentrismo acrítico e do produtivismo vazio e mercantilista instalados há tanto tempo no nosso meio universitário. Essa aceitação sem polêmica das cotas indígenas se dá por vários motivos: primeiro, as vagas que eles chegam a ocupar não alteram nem minimamente a porcentagem de brancos, que ainda conforma a esmagadora maioria dos universitários brasileiros; segundo, porque o propósito dos indígenas não é ocupar os mesmos espaços profissionais dos brancos (propósito evidente dos negros que, na visão dos anticotas, são mais facilmente identificados como competidores, ainda que inconfessos, dos brancos), mas preparar seus quadros acadêmicos para que possam se defender da avalanche destrutiva e genocida dos brancos sobre suas comunidades, suas culturas e suas formas de vida ao longo dos últimos 500 anos e reformular seus projetos civilizatórios específicos.

A demanda pelo ensino superior indígena vem crescendo sem parar na presente década e existe uma verdadeira efervescência na constituição de um campo acadêmico indígena, acompanhada pelo crescimento vertiginoso do número de secundaristas e de universitários pertencentes a quase uma centena de nações: estes passavam de pouco mais de 100 em 1997, 2000 em 2005 e já são agora mais de 6 mil jovens preparando-se em todas as áreas do campo científico, tecnológico e humanístico.

Com a aprovação das cotas em mais universidades recentemente, esse número se duplicará em poucos anos. Paralelamente ao sistema de cotas como vagas extras crescem também os cursos de licenciatura intercultural bilíngüe para formação de professores indígenas, sendo pioneira a Universidade Estadual do Mato Grosso e da Universidade Federal de Roraima, mas que já existem em quase uma dezena de universidades. Em todos esses casos, os acadêmicos indígenas são protagonistas da concepção curricular e pedagógica. Paulatinamente, acadêmicos indígenas vão ocupando espaços na gestão da educação, na docência universitária e na pesquisa.

Por tudo isso, o diálogo filosófico, epistemológico, ético, estético, espiritual e cosmológico colocado pela presença de indígenas no meio acadêmico branco, eurocêntrico, predominantemente capitalista e de matriz civilizatória judaico-cristã apenas começou. Até os parâmetros para avaliarmos o maior ou menor sucesso da política de cotas para os indígenas precisam ainda ser construídos. Será preciso perguntar e ponderar não apenas se a universidade cumpriu adequadamente seu dever de formar os licenciados e bacharéis indígenas, mas se a mesma universidade está se transformando, do ponto de vista epistêmico, com a circulação e o intercâmbio dos saberes trazidos pelos indígenas.

Além da experiência da inclusão, há que colocar em questão o sucesso do diálogo intercultural almejado pela política de cotas indígenas. Recentemente instalamos na UnB um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa e uma das suas tarefas será construir um observatório nacional de todas as experiências de cotas e de cursos interculturais indígenas e dois de seus pesquisadores são mestres indígenas. Serão as cotas indígenas monitoradas e teorizadas por acadêmicos indígenas.

Espera-se que os estudantes indígenas não se alienem de suas raízes culturais próprias, mas que se tornem profissionais e acadêmicos que superem os vícios de uma concepção objetificadora do saber que afeta todo o nosso sistema universitário. Idealmente, essa superação deveria estender-se também para os profissionais negros e brancos. Isso implica em um acolhimento completo, de mão dupla e não apenas instrumental. O diálogo deve ser generalizado, em uma dimensão que ainda não existiu no Brasil: dos indígenas com os negros e com os brancos, dos negros com os brancos e de todos entre si simultaneamente. Somente assim haveremos de cumprir o ideal das cotas: a inclusão de negros e indígenas e dos saberes dos negros e dos indígenas no ensino superior.

(*) É professor da Universidade de Brasília e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa cfr. http://www.seculosindigenasnobrasil.com/

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