Currículo, a Constituição da educação
O que é e qual a importância do currículo
para a constituição da escola? Cabe-nos refletir sobre a função da escola,
contemplando não só a normativa instituída, mas, sobretudo, assegurando as
condições materiais para que os alunos se desenvolvam na plenitude de sua
formação de acordo com os objetivos definidos no projeto político pedagógico da
escola, avalizado pelos alunos, lideranças comunitárias, pais de alunos e
demais representações presentes no conselho escolar sob a direção de uma gestão
democrática. O currículo, chamado também de grade curricular, nos tempos da
ditadura, é muito mais do que um conjunto de disciplinas ou de conteúdos, ele
se qualifica pela função, objetivos e metas definidos e aprovados pelo conselho
escolar de cada estabelecimento de ensino, predicando a escola uma identidade
afirmativa vinculada ao processo das práticas sociais pautado na competência e
habilidade dos formandos, em respeito à capacidade de cada um, bem como também
na valorização dos trabalhadores da educação, na perspectiva de assegurar um padrão escolar de qualidade de ensino, que
desperte nos alunos sua potencialidade para criatividade, inovação e trabalho
nos diversos campos do saber, das artes, ciência e cultura.
João Batista Araújo Oliveira (*)
O Ministério da Educação (MEC) anunciou, com
atraso considerável, que vai apresentar sua proposta de currículo. A
Constituição de 1988 promoveu avanços notáveis em várias áreas, apesar de
inúmeras disfunções criadas. Mas faltou uma visão de futuro mais clara e
pragmática. Resta assegurar que, da mesma forma, a iniciativa atual não aumente
ainda mais o nosso atraso.
A última decisão nessa área resultou nos
desastrados "parâmetros curriculares nacionais". A maioria das
iniciativas do MEC que envolvem questões de mérito tem sido sistematicamente
cativa de mecanismos e critérios corporativistas e de duvidosos consensos
forjados em espúrios mecanismos de mobilização. Tradicionais aliados do
ministério, inclusive internamente, têm aversão à ideia de currículo e mais
ainda de um currículo nacional. Documentos desse tipo, produzidos por alguns
Estados e municípios em anos recentes, continuam vítimas do pedagogismo. Isso é
o melhor que temos.
O assunto é sério demais para ser deixado
apenas para os educadores e especialistas. Nem pode ser apropriado pelo debate
eleitoral. O Brasil - especialmente suas elites - precisa estar preparado para
discutir abertamente a questão. Aqui esboçamos os contornos desse debate.
O que é um currículo? Um documento que diz o
que o professor deve ensinar, o que o aluno deve aprender e quando isso deve
ocorrer. Em outras palavras, conteúdo, objetivos (o termo da vez é expectativas
de aprendizagem), estrutura e sequência. Para que serve um currículo? Primeiro,
para assegurar direitos: o currículo especifica o que o aluno deve aprender. É
um instrumento de cidadania fundamental para garantir equidade e os direitos
das famílias. Segundo, para estabelecer padrões, ou seja, os níveis de
aprendizagem para cada etapa do ensino: atingir esses níveis é o dever, que
cabe ao aluno. Terceiro, para balizar outros instrumentos da política
educativa, como avaliações, formação docente e produção de livros didáticos,
instrumentos essenciais em qualquer sistema escolar. Os currículos, sozinhos,
não mudam a educação.
Por que ser de âmbito nacional? A experiência
dos países mais avançados em educação, sejam federativos ou não, indica a
importância de uma convergência. Depois do advento do Pisa, mesmo países
extremamente descentralizados, como Suíça, Alemanha ou EUA, têm promovido
importantes convergências em seus programas de ensino, até em caráter de
adesão. Num município, um currículo básico permitirá que alunos transitem por
diferentes escolas sem que se instaure o caos a que hoje submetemos nossas
crianças e seus professores.
Como saber se um currículo é bom? A condição é
que seja claro. Se o cidadão médio ler e não entender, não serve. Deve ser
parecido com edital de concursos: você lê, sabe o que cai no exame e sabe como
precisa se preparar. O currículo não é exercício parnasiano ou malabarismo
verbal.
Deve também levar em conta os benchmarks, as
experiências dos países que, usando currículos robustos, avançaram na educação.
É preciso cuidado para não confundir os currículos que os países adotam hoje,
depois de atingido o nível atual, com os currículos que os levaram a esse
patamar.
A proposta deve ser dinâmica e corresponder às
condições gerais de um sistema. O currículo não pode ser avaliado isoladamente
de outras políticas, em especial da condição dos professores. Hoje a Finlândia,
com os professores que tem, pode ter currículos mais genéricos do que há 15 ou
20 anos. A análise dos benchmarks sugere quatro outros critérios para avaliar
um currículo: foco, consistência, rigor e referentes externos.
Um currículo deve ter foco, concentrar-se no
primordial e só em disciplinas essenciais, cuidando de poucos temas a cada ano,
sedimentando a base disciplinar e evitando repetições. William Schmidt, que
esteve recentemente no Brasil, desenvolveu escalas comparativas que permitem
avaliar o grau de focalização de currículos de Matemática e Ciências.
Deve ter consistência, isto é, respeitar a
estrutura de cada disciplina. Isso se refere tanto aos conceitos essenciais que
devem permear um currículo quanto à organização do que deve ser ensinado em
cada etapa ou série. Por exemplo, um currículo de Língua Portuguesa considerará
as dimensões da leitura, escrita e expressão oral, levando em conta o
equilíbrio entre a estrutura e as funções da linguagem e contemplando o estudo
dos componentes da língua (ortografia, semântica, sintaxe, pragmática).
Um currículo deve ter rigor, ser organizado
numa sequência que evite repetições e promova avanços a cada ano letivo. Esses
avanços devem observar a relação entre disciplinas e a capacidade do aluno de
estabelecer conexões entre elas. Interdisciplinaridade e contexto não são
matérias de currículo, são consequência deste.
Um currículo deve ter referentes externos
claros. Um currículo de pré-escola deve especificar tudo o que a criança
precisa para enfrentar com sucesso os desafios posteriores do ensino
fundamental. Isso não significa tornar o pré uma escola antes da escola:
currículo não é proposta pedagógica.
Já o ensino fundamental deve preparar o
indivíduo para operar numa sociedade urbana pós-industrial. O Pisa não é um
currículo, mas contém sinalizações que sugerem o que é necessário para a
formação básica do cidadão do século 21. É uma boa baliza para o ensino
fundamental. Os currículos do ensino médio, por sua vez, devem ser
diversificados, contemplando diferentes opções profissionais e acadêmicas. Pelo
menos é assim que funciona no resto do mundo que cuida bem da educação e se
preocupa com o futuro de sua juventude.
Finalmente, o que um currículo não deve ser?
Um exercício de virtuose verbal, um manual de didática, a advocacia de teorias,
métodos e técnicas de ensino, uma vingança dos excluídos e muito menos um
panfleto ideológico ou uma camisa de força. Muito menos deve ser o resultado de
consensos espúrios.
O currículo definirá se queremos cidadãos
voltados para a periferia ou o centro, para o particular ou para o universal.
(*) Presidente do Instituto Alfa e Beto e articulador do Estadão.
Fonte:http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,curriculo-a-constituicao-da-educacao-,817570,0.htm
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