OAB e a construção da sociedade
democrática brasileira
Não li uma declaração
sequer de algum conselheiro da Oab ou de qualquer outra entidade representativa
de classe em repúdio aos efeitos subversivos (do ponto de vista institucional e
político) advindos da edição, pela presidente Dilma Rousseff, do Decreto 8.243,
de 23 de maio de 2014, que cria a Política Nacional de Participação Social
(PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS).
Osíris Silva
(*)
Quando a
ditadura se impôs aqui, a Ordem dos Advogados do Brasil (Oab) representou uma
das mais importantes forças da
resistência democrática e da defesa das liberdades, ao lado de Cnbb
(confederação Nacional dos Bispos do Brasil), União Nacional dos Estudantes (Une),
das classes estudantis secundaristas e sindicalistas e de outras organizações
sociais e políticas.
Li diversos depoimentos de juristas renomados dando
conta de que “quando do desaparecimento de dissidentes políticos, da tortura
institucionalizada, dos assassinatos e da violência política sobressaíram-se
advogados da estatura de um Mário Simas, José Carlos Dias, Dalmo Dallari, Fabio
Comparato, Raymundo Faoro, Evandro Lins e Silva, Heráclito Fontoura e Sobral
Pinto abraçando a causa do restabelecimento da ordem democrática”.
Lamentavelmente, o espírito cultivado à época pela
classe dos advogados hoje praticamente esvaneceu-se, perdeu brilho, fulgor. Não
só por parte da Oab, mas também dos Conselhos Federais de Engenharia, de
Medicina, de Economia, de intelectuais, artistas, escritores e demais classes profissionais.
Percebe-se um certo desengajamento, enorme distanciamento
em relação ao foco fundamental daquela geração, que era a realidade brasileira.
Grande parte das energias de importante parcela dessa militância era dedicada à
compreensão e ao encontro de soluções para os graves e complexos problemas que
envolviam a conjuntura econômica, social e política do País. Hoje isso é
raridade.
A OAB, em particular, de acordo com
o ministro Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (Stf), “desempenha um
papel de representação da sociedade civil, histórica e culturalmente, que pode
se assemelhar àquele papel típico da imprensa. É bom que a Ordem dos Advogados
Brasil permaneça absolutamente desatrelada do Poder Público. Longe de ser
fiscalizada pelo Poder Público, ela deve fiscalizar com toda autonomia, com
toda independência, o Poder Público, tal como faz a imprensa."
Em artigo de 2007, o professor de
direito Carlos Alberto de Azevedo Campos, então vice-presidente da OAB-RJ, afirma:
É comum que a sociedade, e até mesmo os próprios advogados, vinculem a Ordem
dos Advogados do Brasil a um papel de mero promotor da defesa, representação e
disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.
Independentemente de a OAB cumprir
tão honrosa missão, salienta Azevedo Campos, “é ainda mais certo que nossa
ordem jurídica não lhe reservou apenas finalidades típicas dos órgãos de
fiscalização profissional; pelo contrário, tanto a legislação constitucional
quanto a infraconstitucional, historicamente, tem reservado à nossa entidade, e
também aos advogados que a compõem, o papel singular de defensores da Lei, da
Justiça, dos Direitos Humanos, da Ética, da Constituição Brasileira e de nosso
Estado Democrático de Direito”.
Afirma, adicionalmente: “nossa ordem
jurídica não inclui a OAB no lugar comum dos demais órgãos de fiscalização
profissional, pois sua função é ambivalente”. Efetivamente, “ao lado de sua
luta pelos interesses corporativos em favor da classe profissional que
representa (dos advogados), a OAB também possui uma finalidade institucional,
que se reveste de verdadeiro mandato constitucional, consubstanciado na proteção
do interesse público primário, da supremacia da Constituição, do primado dos
Direitos Humanos e na luta pela concreção dos ideais democráticos de tratar-se
a todos, indistintamente, como livres e iguais”.
Em 1978, quando a OAB realizava, em Curitiba, a VII
Conferência dos Advogados, presidida por Raymundo Faoro, a Ordem condenava o
arbítrio nos seguintes termos: “Essas agressões à dignidade das pessoas não se
justificam; ainda quando se dissimulam debaixo do pretexto da segurança
nacional. No Estado de Direito, a segurança nacional constitui meio para
garantir as liberdades públicas. Protege-se o Estado, para que este possa
garantir os direitos individuais”. Este espírito, na íntegra, foi transferido à
Constituição Federal de 1988.
Muitos recordam das reações da Oab aos grupos de
extremistas ligados ao regime ditatorial. A força da advocacia e da Ordem para
a restauração democrática incomodava seriamente esses mesmos grupos, que
chegaram a enviar carta-bomba à sede da OAB Nacional destinada ao Presidente,
Eduardo Seabra Fagundes, e ao vice, Sepúlveda Pertence, que se salvaram por se encontrarem
ausentes na ocasião. O artefato, entretanto, matou a secretária da Presidência, Lyda Monteiro
da Silva, quando abriu a correspondência.
O atentado ocorreu em 27 de agosto de 1980 e gerou forte comoção nacional, dado que os
brasileiros ainda tinham em mente a morte do estudante Edson Luis, no
Calabouço, no Rio, em 28 de março de 1968.
Entrementes, no que se transformou a
Oab nos dias de hoje? Praticamente, ao que se percebe, numa entidade em grande
medida simplesmente corporativista, que se distanciou em demasia de seu papel
histórico. Em particular do exercido nos tempos da ditadura, da Campanha das
Diretas Já, da redemocratização do País e do Fora Collor. Não se trata apenas de
opinião pessoal, mas extraída da Carta do Recife, divulgada pelo Colégio de
Presidentes, em 30 de maio último.
Com efeito, o Colégio de
Presidentes dos Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, reunido
na cidade do Recife, Estado de Pernambuco, nos dias 29 e 30 de maio de 2014,
após análise e discussão de temas de interesse da advocacia e da sociedade
brasileira, divulgou a Carta do Recife, cuja íntegra
pode ser lida no Google.
O documento é
bastante claro e não deixa dúvidas de que a Oab vem se preocupando quase que
exclusivamente em tratar e defender os interesses corporativos da classe. Isso
se pode deduzir do preâmbulo da Carta, que
assim fundamenta as reivindicações da classe: “Repúdio à criminalização da advocacia, honorários
dignos, funcionamento do judiciário em dois turnos, piso salarial ético para
advogados, defesa das prerrogativas, fixação de custas judiciais razoáveis e a
elevação das verbas orçamentárias destinadas do Poder Judiciário”. Praticamente
nada sobre a crise institucional do País, os desmandos governamentais, os
escândalos da Petrobrás, o avassalador crescimento da corrupção, a defesa do
Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mensalão, os descaminhos das obras da
Copa, e assim por diante.
A Oab, na companhia
das demais entidades representativas de classe, vem igualmente se omitindo na
discussão da conjuntura social e econômica, do incontrolável crescimento da
violência, dos protestos de rua da sociedade. Essas instituições vêm se
portando como se nada disso lhes dissesse respeito. Quando, ao contrário, diz sim,
e muito. No caso da Ao, tendo em vista a finalidade da entidade voltada ao zelo
e à preservação da ordem constitucional.
Chegam a ser
dramáticos a apatia e o distanciamento da Une e das forças sindicais no tocante
a esse cenário adverso. Milhões de reais em verbas inesgotáveis foram
suficientes para calar a voz dos estudantes e dos operários, cujas lideranças
ocupam cargos de confiança no governo dentro da estrutura reservada às elites
da militância.
Ideais, comprometimentos,
voz de protesto, são coisas do passado reservadas a um punhado de
representações que ainda saem às ruas engrossando as manifestações públicas. Os
jornais da época mostram onde os líderes se encontravam a cada instante, os de
hoje, no geral, mal os conhecem.
A propósito, não li uma
declaração sequer de algum conselheiro da Oab ou de qualquer outra entidade
representativa de classe em repúdio aos efeitos subversivos (do ponto de vista
institucional e político) advindos da edição, pela presidente Dilma Rousseff,
do Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que cria a Política Nacional de
Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS).
É evidente que o governo do PT, passando por cima do Congresso Nacional, cria, por esse ato de força, um sistema pretensamente destinado a promover a participação direta da sociedade civil em todos os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta, e também nas agências reguladoras, através de conselhos, comissões, conferências, ouvidorias, mesas de diálogo, etc.
Tudo isso tem, segundo o
decreto, o objetivo de "consolidar a participação social como método de
governo". Ora, a participação social numa democracia representativa, diz o
Estadão em Editorial, se dá através dos seus representantes no Congresso,
legitimamente eleitos. O que se constata, observa o jornal, é que a presidente Dilma
não concorda com o sistema representativo brasileiro, definido pela Assembleia
Constituinte de 1988, e quer, por decreto, pisoteando a Carta Magna Nacional instituir
a participação popular direta como outra
fonte de poder.
Na verdade, o Decreto 8.243/14 deflagra claro processo de sovietização do governo brasileiro. Se ao menos o sistema tivesse dado certo na Rússia ou em qualquer outro país onde foi implantado, ainda seria um caso a pensar. Mas, ao contrário, fracassou generalizadamente e ruiu de vez a partir do desmoronamento do Muro de Berlim em 1989.
Na verdade, o Decreto 8.243/14 deflagra claro processo de sovietização do governo brasileiro. Se ao menos o sistema tivesse dado certo na Rússia ou em qualquer outro país onde foi implantado, ainda seria um caso a pensar. Mas, ao contrário, fracassou generalizadamente e ruiu de vez a partir do desmoronamento do Muro de Berlim em 1989.
Nesse ritmo, o passo
seguinte, por certo, será a regulamentação/censura da mídia e assim por diante.
A democracia, com efeito, está seriamente ameaçada e a Oab, por sua
representação nacional e suas seccionais, inclusive a do Amazonas, não movem
uma palha para impedir que desastre desse porte e extensão, que se avizinha,
obtenha êxito.
(*) É articulista de a
crítica e do site www.carlosbranco.jor.br
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