domingo, 8 de junho de 2014

OAB  e a construção da sociedade democrática brasileira



Não li uma declaração sequer de algum conselheiro da Oab ou de qualquer outra entidade representativa de classe em repúdio aos efeitos subversivos (do ponto de vista institucional e político) advindos da edição, pela presidente Dilma Rousseff, do Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS).

Osíris Silva (*)

Quando a ditadura se impôs aqui, a Ordem dos Advogados do Brasil (Oab) representou uma das mais importantes  forças da resistência democrática e da defesa das liberdades, ao lado de Cnbb (confederação Nacional dos Bispos do Brasil), União Nacional dos Estudantes (Une), das classes estudantis secundaristas e sindicalistas e de outras organizações sociais e políticas.

Li diversos depoimentos de juristas renomados dando conta de que “quando do desaparecimento de dissidentes políticos, da tortura institucionalizada, dos assassinatos e da violência política sobressaíram-se advogados da estatura de um Mário Simas, José Carlos Dias, Dalmo Dallari, Fabio Comparato, Raymundo Faoro, Evandro Lins e Silva, Heráclito Fontoura e Sobral Pinto abraçando a causa do restabelecimento da ordem democrática”.

Lamentavelmente, o espírito cultivado à época pela classe dos advogados hoje praticamente esvaneceu-se, perdeu brilho, fulgor. Não só por parte da Oab, mas também dos Conselhos Federais de Engenharia, de Medicina, de Economia, de intelectuais, artistas, escritores  e demais classes profissionais.

Percebe-se um certo desengajamento, enorme distanciamento em relação ao foco fundamental daquela geração, que era a realidade brasileira. Grande parte das energias de importante parcela dessa militância era dedicada à compreensão e ao encontro de soluções para os graves e complexos problemas que envolviam a conjuntura econômica, social e política do País. Hoje isso é raridade.

A OAB, em particular, de acordo com o ministro Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (Stf), “desempenha um papel de representação da sociedade civil, histórica e culturalmente, que pode se assemelhar àquele papel típico da imprensa. É bom que a Ordem dos Advogados Brasil permaneça absolutamente desatrelada do Poder Público. Longe de ser fiscalizada pelo Poder Público, ela deve fiscalizar com toda autonomia, com toda independência, o Poder Público, tal como faz a imprensa."

Em artigo de 2007, o professor de direito Carlos Alberto de Azevedo Campos, então vice-presidente da OAB-RJ, afirma: É comum que a sociedade, e até mesmo os próprios advogados, vinculem a Ordem dos Advogados do Brasil a um papel de mero promotor da defesa, representação e disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.

Independentemente de a OAB cumprir tão honrosa missão, salienta Azevedo Campos, “é ainda mais certo que nossa ordem jurídica não lhe reservou apenas finalidades típicas dos órgãos de fiscalização profissional; pelo contrário, tanto a legislação constitucional quanto a infraconstitucional, historicamente, tem reservado à nossa entidade, e também aos advogados que a compõem, o papel singular de defensores da Lei, da Justiça, dos Direitos Humanos, da Ética, da Constituição Brasileira e de nosso Estado Democrático de Direito”.

Afirma, adicionalmente: “nossa ordem jurídica não inclui a OAB no lugar comum dos demais órgãos de fiscalização profissional, pois sua função é ambivalente”. Efetivamente, “ao lado de sua luta pelos interesses corporativos em favor da classe profissional que representa (dos advogados), a OAB também possui uma finalidade institucional, que se reveste de verdadeiro mandato constitucional, consubstanciado na proteção do interesse público primário, da supremacia da Constituição, do primado dos Direitos Humanos e na luta pela concreção dos ideais democráticos de tratar-se a todos, indistintamente, como livres e iguais”.

Em 1978, quando a OAB realizava, em Curitiba, a VII Conferência dos Advogados, presidida por Raymundo Faoro, a Ordem condenava o arbítrio nos seguintes termos: “Essas agressões à dignidade das pessoas não se justificam; ainda quando se dissimulam debaixo do pretexto da segurança nacional. No Estado de Direito, a segurança nacional constitui meio para garantir as liberdades públicas. Protege-se o Estado, para que este possa garantir os direitos individuais”. Este espírito, na íntegra, foi transferido à Constituição Federal de 1988.

Muitos recordam das reações da Oab aos grupos de extremistas ligados ao regime ditatorial. A força da advocacia e da Ordem para a restauração democrática incomodava seriamente esses mesmos grupos, que chegaram a enviar carta-bomba à sede da OAB Nacional destinada ao Presidente, Eduardo Seabra Fagundes, e ao vice, Sepúlveda Pertence, que se salvaram por se encontrarem ausentes na ocasião. O artefato, entretanto,  matou a secretária da Presidência, Lyda Monteiro da Silva, quando abriu a correspondência.

O atentado ocorreu em 27 de agosto de 1980  e gerou forte comoção nacional, dado que os brasileiros ainda tinham em mente a morte do estudante Edson Luis, no Calabouço, no Rio, em 28 de março de 1968.

Entrementes, no que se transformou a Oab nos dias de hoje? Praticamente, ao que se percebe, numa entidade em grande medida simplesmente corporativista, que se distanciou em demasia de seu papel histórico. Em particular do exercido nos tempos da ditadura, da Campanha das Diretas Já, da redemocratização do País e do Fora Collor. Não se trata apenas de opinião pessoal, mas extraída da Carta do Recife, divulgada pelo Colégio de Presidentes, em 30 de maio último.

Com efeito, o Colégio de Presidentes dos Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, reunido na cidade do Recife, Estado de Pernambuco, nos dias 29 e 30 de maio de 2014, após análise e discussão de temas de interesse da advocacia e da sociedade brasileira, divulgou a Carta do Recife, cuja íntegra pode ser lida no Google.
O documento é bastante claro e não deixa dúvidas de que a Oab vem se preocupando quase que exclusivamente em tratar e defender os interesses corporativos da classe. Isso se pode deduzir do  preâmbulo da Carta, que assim fundamenta as reivindicações da classe:  “Repúdio à criminalização da advocacia, honorários dignos, funcionamento do judiciário em dois turnos, piso salarial ético para advogados, defesa das prerrogativas, fixação de custas judiciais razoáveis e a elevação das verbas orçamentárias destinadas do Poder Judiciário”. Praticamente nada sobre a crise institucional do País, os desmandos governamentais, os escândalos da Petrobrás, o avassalador crescimento da corrupção, a defesa do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mensalão, os descaminhos das obras da Copa, e assim por diante.
A Oab, na companhia das demais entidades representativas de classe, vem igualmente se omitindo na discussão da conjuntura social e econômica, do incontrolável crescimento da violência, dos protestos de rua da sociedade. Essas instituições vêm se portando como se nada disso lhes dissesse respeito. Quando, ao contrário, diz sim, e muito. No caso da Ao, tendo em vista a finalidade da entidade voltada ao zelo e à  preservação da ordem constitucional.
Chegam a ser dramáticos a apatia e o distanciamento da Une e das forças sindicais no tocante a esse cenário adverso. Milhões de reais em verbas inesgotáveis foram suficientes para calar a voz dos estudantes e dos operários, cujas lideranças ocupam cargos de confiança no governo dentro da estrutura reservada às elites da militância.
Ideais, comprometimentos, voz de protesto, são coisas do passado reservadas a um punhado de representações que ainda saem às ruas engrossando as manifestações públicas. Os jornais da época mostram onde os líderes se encontravam a cada instante, os de hoje, no geral, mal os conhecem.

A propósito, não li uma declaração sequer de algum conselheiro da Oab ou de qualquer outra entidade representativa de classe em repúdio aos efeitos subversivos (do ponto de vista institucional e político) advindos da edição, pela presidente Dilma Rousseff, do Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS).

É evidente que o governo do PT, passando por cima do Congresso Nacional, cria, por esse ato de força, um sistema pretensamente destinado a promover a participação direta da sociedade civil em todos os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta, e também nas agências reguladoras, através de conselhos, comissões, conferências, ouvidorias, mesas de diálogo, etc.

Tudo isso tem, segundo o decreto, o objetivo de "consolidar a participação social como método de governo". Ora, a participação social numa democracia representativa, diz o Estadão em Editorial, se dá através dos seus representantes no Congresso, legitimamente eleitos. O que se constata, observa o jornal, é que a presidente Dilma não concorda com o sistema representativo brasileiro, definido pela Assembleia Constituinte de 1988, e quer, por decreto, pisoteando a Carta Magna Nacional instituir a participação  popular direta como outra fonte de poder.

Na verdade, o Decreto 8.243/14 deflagra claro processo de sovietização do governo brasileiro. Se ao menos o sistema tivesse dado certo na Rússia ou em qualquer outro país onde foi implantado, ainda seria um caso a pensar. Mas, ao contrário, fracassou generalizadamente e ruiu de vez a partir do desmoronamento do Muro de Berlim em 1989.

Nesse ritmo, o passo seguinte, por certo, será a regulamentação/censura da mídia e assim por diante. A democracia, com efeito, está seriamente ameaçada e a Oab, por sua representação nacional e suas seccionais, inclusive a do Amazonas, não movem uma palha para impedir que desastre desse porte e extensão, que se avizinha, obtenha êxito.

(*) É articulista de a crítica e do site www.carlosbranco.jor.br

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