Participação popular e
facções
ROBERTO
ROMANO (*)
Com os conselhos populares pretendidos pelo governo,
pela enésima vez a Presidência da República legisla e usa a mão felina do
Congresso para pegar as castanhas que a fortalecem. O Executivo abusa das
normas e das medidas provisórias. Todas essas medidas propiciam
"negociações" que rendem cargos aos partidos, mas privilegiam o
Executivo. Propostas corretas podem ser viciadas. Sim, a participação popular é
alvo democrático. O problema reside no modo e na dose.
Alguns doutrinadores exageram as prerrogativas oficiais,
outros acentuam a soberania popular. Fernando Bianchini (Democracia
Representativa sob a Crítica de Schmitt e Democracia Participativa na Apologia
de Tocqueville, 2014) mostra que Tocqueville não ataca, nos moldes de Carl
Schmitt, o Estado parlamentar. Ele quer diminuir a distância entre cidadãos e
legisladores. O movimento, no entanto, deve brotar "de baixo para
cima", e não ser imposto pelo Executivo. Tal é o defeito do decreto
assinado por Dilma Rousseff.
O diploma finge que a sociedade não é dividida.
Nela não existiriam interesses contraditórios de grupos políticos organizados.
Partidos e interesses vários não manobrariam esses grupos, só aparentemente
autônomos. Só anjos ignoram que os "movimentos não
institucionalizados" têm líderes, ideólogos, agenciadores. Dilma busca um
Estado nas dobras do Estado. Ninguém, em movimentos desprovidos de instituição,
assume responsabilidade oficial, ou seja, diante do povo soberano, pelos erros
nas decisões. O caso de um deputado paulista, popular graças aos recursos de
campanha, é importante. O político recebeu um mandato das urnas e guarda
relações enigmáticas com "movimentos não institucionalizados", os
perueiros que têm elos "não institucionais" com... setores que operam
na margem da lei.
Bem diverso era o orçamento participativo, fechado
ao ser eleito Luiz Inácio da Silva. Ali os movimentos discutiam com os
administradores públicos. Eles decidiam prioridades na aplicação do orçamento.
Toda a assembleia se responsabilizava pelas decisões. Mesmo assim, existiam
"donos" de movimentos. Certa feita, na assembleia (de Porto Alegre),
um grupo abriu uma faixa: "A comunidade de (invento o nome) Pedro Leopoldo
saúda os participantes". Perguntei ao meu cicerone: "Onde é Pedro
Leopoldo?". Pergunta errada, corrige ele: "Quem é Pedro
Leopoldo?". Era o dono do grupo. Líderes referiam-se aos movimentos com o
possessivo: "o meu". Comento: "Estranha forma de indicar a
comunidade". Replica o acompanhante: eles se pensam proprietários da
coisa. A Secretaria da Educação de Porto Alegre, para diminuir filas na
matrícula escolar, distribuiu fichas de agendamento. Líderes comunitários
exigiam que fossem eles a levar as fichas aos genitores. É a lógica do
"favor não institucionalizado".
Sim, o Congresso brasileiro afasta-se da cidadania.
Antes de junho (de 2013), nele se discutiram a aprovação da PEC 37, que feria o
Ministério Público, mudanças que atenuariam a Lei de Improbidade
Administrativa, aleijões na Lei da Ficha Limpa, etc. O problema não está só no
Congresso, mas no Estado brasileiro. Fosse o Supremo Tribunal Federal
"apenas" uma Corte constitucional, as questões contidas no decreto em
pauta já estariam encaminhadas. Ente que tudo julga, e a todos, ele se afoga em
processos decididos sem a tranquilidade necessária. Ademais, ele decide com
base numa Constituição que é triste colcha de retalhos, dadas as inúmeras
emendas, várias oriundas de imposições do Executivo (como a da reeleição).
É grave a distância entre o Estado e os eleitores.
Seria importante diminuir o gap que desmoraliza os Poderes. Mas o proposto
agora é a imposição de movimentos sociais como operadores do Executivo,
negando-se o fato de que na democracia o poder exige responsabilidade pública.
Segundo H. Guaino, "as ONGs começam a constituir um contrapoder, mas não têm
legitimidade política. Elas não expressam o direito dos povos: um debate na
internet não equivale a eleição legislativa ou referendo". As ONGs não têm
legitimidade política. E os movimentos que seguem líderes anônimos, com
interesses idem?
Hobbes alerta contra as assembleias
"populares": antes das reuniões os líderes tudo decidem mantendo
"em separado reuniões secretas com alguns poucos, em que combinam o que
irão propor na assembleia-geral, a ordem dos assuntos, as pessoas que agirão em
primeiro lugar e sobre a habilidade com que irão cooptar os mais poderosos da
facção para o seu lado, e aqueles cujo partido tem maior popularidade (...). E,
assim, às vezes eles oprimem a república (commonwealth) quando não há outra
facção para se opor à sua. Mas na maior parte das vezes eles causam uma guerra
civil" (De Cive, 12).
Hobbes conhecia a falência da democracia em Atenas
e observou a Revolução Inglesa, enterrada na ditadura pessoal de Cromwell, mas
dirigida por líderes anônimos. A democracia exige responsabilidade de pessoas
concretas, nega força hegemônica ao Executivo com seus braços, os pretensos
"movimentos não institucionalizados". O decreto presidencial lembra
um texto a ser lido pelos imprudentes: Estado, Movimento, Povo, de Carl
Schmitt (1). O poder, segundo o jurista, se dividiria em três setores: o povo
inerte que diz "sim" ou "não" plebiscitariamente e segue o
partido, que, por sua vez, segue o líder (princípio da Führung), mantendo o
Estado. Schmitt deseja conselhos de líderes, eleitos ou escolhidos pelo
Führer...
No despotismo dos que imperam sem responsabilidade
pública, decidem as facções. Com seu decreto, o próprio governo se transforma
em facção, esquece um compromisso com o povo na sua totalidade soberana. De um
lado, a Secretaria da Presidência e, de outro, os almejados tentáculos do
Executivo. Se houvesse algo democrático no decreto, ele seria discutido
amplamente com a sociedade, depois enviado ao Legislativo. O resto é
propaganda.
(*)
ÉPROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, É AUTOR DE 'O CALDEIRÃO DE
MEDEIA' (PERSPECTIVA).
Fonte:
http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,participacao-popular-e-faccoes-imp-,1511097
DA EDITORIA DO NCPAM:
(1)O texto busca no pensamento de Carl Schmitt –intelectual alemão envolvido na ideologia nacional-socialista e relativamente pouco conhecido no contexto brasileiro– a crítica feita à democracia liberal-burguesa e ao sistema parlamentar-representativo, para dele extrair uma contribuição ao atual debate sobre movimentos sociais. A proposta do autor é que os movimentos sociais, ao assumirem o confronto permanente entre as temáticas legalmente confirmadas e as demandas utópicas, podem reinvindicar a voz daqueles que atualmente vêm sendo ignorados pela política cotidiana institucionalizada e recuperar o verdadeiro espaço do Político. A argumentação inicia com algumas colocações acerca do contexto histórico que originou a preocupação teórica de Carl Schmitt. Numa segunda parte, são apresentados os aspectos centrais de um texto do mesmo autor publicado em 1933 sob o título Staat, Bewegung, Volk (Estado, movimento, povo), a partir do qual são articuladas questões sistemáticas ligadas aos movimentos sociais enquanto indicadores de falhas da democracia liberal. Por fim, é reconstruído o fio condutor da argumentação desenvolvida por Schmitt, para extrair dela as observações mais importantes que contribuem para esclarecer melhor o marco conceitual- sistemático dos atuais debates sobre os movimentos sociais.
Texto na integra:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/43/1623
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