terça-feira, 17 de junho de 2008

POR ONDE ANDA A TEORIA DA DEPENDÊNCIA?



* Breno Rodrigo de Messias Leite

Entre 1960 e 1990, a teoria da dependência desenvolvida por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (FHC&EF) formulou uma importante crítica à interpretação dos choques adversos de Raúl Prebisch e Celso Furtado (RP&CF). Por várias décadas as duas teorias estabeleceram um profundo debate acadêmico e político sobre o passado da América Latina e a necessidade de se construir um projeto alternativo ao status quo da estagnação e do subdesenvolvimento no continente.

De certo modo, a teoria da dependência é uma interpretação genuinamente latino-americana. Foi forjada teórica, metodológica e instrumentalmente para identificar os problemas endógenos e as externalidades estruturais inseridas na dinâmica do capitalismo mercantil-colonial próprio da América Latina. Além disso, a teoria da dependência emerge como um projeto para sua superação estrutural da situação de estagnação e dependência dos países que compartilham os mesmos paradoxos.

O economista Raúl Prebisch, líder da Cepal, desenvolveu ao lado de outros, dentre os quais destaco Celso Furtado, uma relevante crítica a idéia de “livre-comércio” de Adam Smith e David Ricardo. Para os economistas ingleses, as trocas internacionais e a divisão internacional do trabalho funcionariam de acordo com a “vocação natural” de cada país. Isto é, os países industrializados se especializariam em produzir e exportar produtos manufaturados; e, por outro lado, os países ricos em matéria-prima e recursos naturais ficariam com o pesado fardo de apenas extrair e exportar, e posteriormente importar os mesmos produtos, já manufaturados, criando assim uma estrutura de trocas comerciais “justas”, atendendo a vocação econômica de cada país.

RP&CF invertem esta interpretação dos economistas clássicos, tomando como referência o desenvolvimento da teoria keynesiana. Para RP&CF, a situação estava bastante clara: os países latino-americanos só conseguiriam superar suas condições estruturais de periferia a partir da intervenção do Estado no incentivo à industrialização primária, às políticas de incentivo a poupança interna, à acumulação capitalista associada ao excedente colonial, aos surtos inflacionários, à reforma agrária e à industrialização pesada, seguida de substituição de importações. Só através das transformações estruturais iniciadas pelos Estados nacionais é que se poderia lograr um projeto econômico alternativo de impulso ao desenvolvimento nacional.

Como contraposição a está interpretação dos cepalinos, já em meados da década de 1960, é escrito o livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de FHC&EF, que questiona, por sua vez, os fundamentos da teoria dos choques adversos. A noção básica da teoria da dependência elaborada por FHC&EF é que no contexto da divisão do trabalho os países de baixa industrialização, de concentração agrária, de sistema político oligárquico e de burguesia disforme tornam-se dependentes dos países industrializados, o que proporciona obstáculos estruturais ao desenvolvimento continental.

Para FHC&EF são as condições internas dos países que inviabilizam as transformações necessárias para uma guinada em direção ao nacional-desenvolvimentismo. E que somente a abertura para a inserção e integração das economias nacionais às dinâmicas internacionais poderia iniciar um processo de modernização endógena condicionando, portanto, a emergência dos grupos sociais reformadores no campo da política e da economia.

De forma mais precisa, pode-se dizer que “el concepto de dependencia pretende otorgar significado a una serie de hechos y situaciones que aparecen conjuntamente en un momento dado y se busca establecer por su intermedio las relaciones que hacen inteligibles las situaciones empíricas en función del modo de conexión entre los componentes estructurales internos y externos. Pero lo externo, en esa perspectiva, se expresa también como un modo perticular de relación entre grupos y clases sociales en el ambito des las naciones subdesarrolladas” (“O Modelo Político Brasilero”, FHC)

A proposta de FHC&EF era, portanto, uma tentativa de superar os horizontes unidimensionais do subdesenvolvimento e da estagnação, do modelo dual do centro-periferia, que observam apenas as externalidades deixando de lado as situações endógenas do continente e de cada país. E isso desperta outro ponto de discordância: enquanto FHC&EF analisam a América Latina a partir da situação das unidades nacionais, RP&CF partem da totalidade até se chegar as especificidades nacionais. Desse modo, de acordo com a teoria da dependência, as renovações políticas e econômicas de cada país ocorreriam na sua própria dinâmica, e não em consonância determinística com os outros países do continente.

No debate sobre a formação econômica e política da América Latina, a teoria da dependência destaca-se por ser capaz de explicar as especificidades de um modelo que se distanciava dos padrões europeus de interdependência entre passado feudal e presente capitalista. A América Latina não se desenvolveu a partir da trajetória européia, e sim nos marcos de sua modernização iniciada no século XVI.

Na América Latina a dinâmica foi única. Uma combinação de escravidão, espoliação dos recursos naturais, inexistência de um mercado interno conectado à acumulação originária, oligarquias agrárias e formação estatal patrimonialista e clientelista que criou uma trajetória dependente que inviabilizou uma inserção soberana na dinâmica da internacionalização do capital.

O diagnostico político da teoria da dependência cria as bases para o surgimento de um projeto político vinculado ao socialismo democrático e a social-democracia. Não há apenas uma interpretação “sociológica” dos dilemas do continente, e sim um esboço de um modelo alternativo ao contexto da época. O grande legado das reflexões de FHC&EF e RP&CF talvez tenha sido esse: desenvolver uma leitura do passado sem perder de vista os desafios do futuro.

Daí a necessidade de termos uma renovação criativa das teorias sociais de hoje. A derrocada agonizante e devastadora do ultra-liberalismo deixa o continente ausente de projetos globais. Estamos em uma nova fase que se caracteriza pela retomada do Estado com indutor do desenvolvimento nacional, criando aberturas para a participação do capital privado nacional e internacional.

A América Latina é um mosaico do que fomos e do que queremos ser. Mas sem projetos consistentes deixaremos tudo para trás.

* Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal do Pará (UFPA), bolsista da CAPES e colaborador do NCPAM.

Um comentário:

Anônimo disse...

Breno, muito boa a sua resenha da discussão sobre dependência. Creio que podemos ler, hoje, a teoria da dependência sob a óptica da globalização. Quando Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso escreveram, a discussão economica girava em torno do problema do "subdesenvolvimento" e este era visto como um subproduto do atraso, da natureza tardia do desenvolvimento capitalista no Brasil. O atraso se revelava de diferentes formas. Para Furtado, por exemplo, o processo de apropriação privada dos lucros e de socialização das perdas, era uma delas. Isso se dava por conta das formas de articulação entre a burguesia nacional, a burguesia internacional e o Estado nacional, que operavam no sentido de criar no país condições ótimas de acumulação sem a necessidade de que isso repercutisse sobre a melhoria das condições gerais de produção. Daí a idéia de que seria necessário, por um lado, fortalecer os centros decisórios nacionais, de modo a fazer frente aos internacionais, e, por outro lado, estimular a burguesia industrial.
FHC mostrou, contudo, que a burguesia nacional tinha como opções aliar-se às classes popuares de modo a criar um capitalismo nacional, ou aliar-se à burguesia estrangeira e aprofundar o capitalismo associado.
Historicamente e pensando nas alianças de classes que conduziam a dinâmica da economia nacional, isto é, que eram hegemônicas, dá pra ler isso pensando numa cronologia. Entre 1889-1930 predominou o capitalismo associado, em que latifundiários, setores importadores e exportadores se reunião em torno do "agrarismo" e forçavam o Estado a adotar políticas liberais. Entre 1930 e 1964, predominou a idéia de construção de um projeto de capitalismo nacional, baseado na articulação dos interesses da burguesia industrial com o proletariado urbano, algo que se traduziu na política de substituição de importações e na legislação trabalhista. Esse projeto, não se deve perder de vista, teve na crise internacional (crack de 1929 e II Guerra Mundial) importantes estímulo, pois conferiu maior autonomia relativa às forças sociais nacionais. O populismo talvez tenha sido seu maior emblema. O golpe militar, porém, reinaugurou o projeto de capitalismo associado, mostrando que a burguesia industrial e vastos setores da classe média preferiam o atar o destino nacional a destino norte-americano. A partir dos anos 1970, porém, esse quadro se modifcou: de novo, as crises internacionais (choque do petróleo e dívida externa) desafiaram a imaginação política das classes sociais, obrigando-as a encontrar soluções para o problema da circulação de capital.
Constrangidos os fluxos de capital e endividados os países da periferia, era necessário criar as condições políticas para reativar os fuxos e, portanto, a realização do capital.
O consenso de Washington, cristalizado em 1989, dava seus primeiros passos e o neoliberalismo, nascido na longínqua década de 1940, dava seu grito de independência.
O Estado brasileiro, que fora oligárquico (1889-1930), populista (1930-1964) e militarista (1964-1985), foi reformado e o problema da formação do mercado nacional e da centralização do poder decisório, como dizia o Celso Furtado, foi substituído pelo da integração competitiva da economia nacional no processo produtivo global. Tudo foi desregulamentado e privatizado, e os presidentes começaram a se revelar quase que apenas burocratas o porta vozes de agências multilaterais empenhadas na liberalização econômica, na adoção das "marke friendly policies".
Em pouco tem, assistimos uma completa inversão das preocupações originais que animaram Celso Furtado e mesmo FHC. De chofre, aceitou-se a transferência do poder decisório do Estado nacional para agências multilaterais ou para empresas transnacionais.
O dramático, no Brasil', é que tudo isso ocorreru pari passu com o proceso de redemocratização. Isto é, no momento mesmo em que falávaos e lutávamos pelo aumento da participação pública nos processos decisórios estatais, transferíamos o poder decisório para instâncias de poder transnacionais.
Talvez aí residam muitas de nossas angústias em relação aos impasses de nossa democracia. Talvez, também nisso se revelem muitos dos limites da democracia em sociedades organizadas de acordo com os interesses do "grande capital", para usar um termo de Ianni.
Bom, fiz esses comentários, algo desconexos, apenas para avançar no debate necessário, e que abres, sobre no que consiste pensar nu projeto nacional numa época marcada pela configuração do capitalismo global. Abraço, Marcelo