domingo, 21 de setembro de 2008

LENDO FREUD PARA SE CONHECER


Ademir Ramos*


Alguns leitores deste trabalho** podem ainda ter a impressão de que já ouviram, de modo demasiado freqüente, a fórmula sobre a luta entre Eros e o instinto de morte. Ela foi não só empregada para caracterizar o processo de civilização que a humanidade sofre, mas também vinculada ao desenvolvimento do indivíduo, e, além disso, dela se disse que revelou o segredo da vida orgânica em geral.

Acho que não podemos deixar de penetrar nas relações existentes entre esses três processos. A repetição da mesma fórmula se justifica pela consideração de que tanto o processo da civilização humana quanto o do desenvolvimento do indivíduo são também processos vitais – o que equivale a dizer que devem partilhar a mesma característica mais geral da vida.

Por outro lado, as provas da presença dessa característica geral, pela razão mesma de sua natureza geral, fracassaram em nos ajudar a estabelecer diferenciação – entre os processos -, enquanto não for reduzida por limitações especiais.

Só podemos ficar satisfeitos, por tanto, afirmando que o processo civilizatório constitui uma modificação, que o processo vital experimenta sob a influência de uma tarefa que lhe é atribuída por Eros e incentivada por Ananké – pelas exigências da realidade -, e que essa tarefa é a de unir indivíduos isolados numa comunidade ligada por vínculos libidinais.

Quando, porém, examinamos a relação existente entre o processo desenvolvimental ou educativo dos seres humanos individuais, devemos concluir, sem muita hesitação, que os dois apresentam uma natureza muito semelhante, caso não sejam o mesmo processo aplicado a tipos deferentes de objeto.

O processo da civilização da espécie humana é, naturalmente, uma abstração de ordem mais elevada do que a do desenvolvimento do indivíduo, sendo, portanto, de mais difícil apreensão em termos concretos; tampouco devemos perseguir as analogias entre a um extremo obsessivo.

Contudo, diante da semelhança entre os objetivos dos dois processos – num dos casos, a integração de um indivíduo isolado num grupo humano; no outro, a criação de um grupo unificado a partir de muitos indivíduos -, não podemos surpreender-nos com a similaridade entre os meios empregados e os fenômenos resultantes.

Em vista de sua excepcional importância, não devemos adiar mais a menção de determinado aspecto que estabelece a distinção entre os processos.

No processo de desenvolvimento do indivíduo, o programa do princípio do prazer, que consiste em encontrar a satisfação da felicidade, é mantido como objetivo principal. A integração numa comunidade humana, ou a adaptação a ela, aparece como uma condição dificilmente evitável, que tem de ser preenchida antes que esse objetivo de felicidade possa ser alcançado. Talvez fosse preferível que isso pudesse ser feito sem essa concepção.

Em outras palavras, o desenvolvimento do indivíduo nos parece ser um produto da interação entre duas premências, a premência no sentido da felicidade, que geralmente chamamos de “egoísta”, e a premência no sentido da união com os outros da comunidade, que chamamos de “altruísta”. Nenhuma dessas descrições desce muito abaixo da superfície.

No processo de desenvolvimento individual, como dissemos, a ênfase principal recai sobretudo na premência egoísta – ou a premência no sentido da felicidade - , ao passo que a outra premência, que pode ser descrita como “cultural”, geralmente se contenta com a função de impor restrições.

No processo civilizatório, porém, os eventos se passam de modo diferente. Aqui, de longe, o que mais importa é o objetivo de criar uma unidade a partir dos seres humanos individuais. É verdade que o objetivo da felicidade ainda se encontra aí, mas relegado ao segundo plano. Quase parece que a criação de uma grande comunidade humana seria mais bem sucedida se não se tivesse de prestar atenção à felicidade do indivíduo.

Assim pode-se esperar que o processo desenvolvimental do indivíduo apresente aspectos especiais, próprios dele, que não são reproduzidos no processo da civilização humana. É apenas na medida em que está em união com a comunidade como objetivo seu, que o primeiro desses processos precisa coincidir com o segundo.

Assim como um planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda em torno de seu próprio eixo, assim também o indivíduo humano participa do curso do desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo, que persegue o seu próprio caminho na vida.


* * O trabalho referente é “O Mal-Estar na Civilização” de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago editora, 1974. Publicada, originalmente, em Londres em 1930.

* Coordenador Geral do NCPAM, Antropólogo e professor da UFAM.

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