domingo, 7 de setembro de 2008

UM POUCO DA HISTÓRIA DA RAPOSA SERRA DO SOL


Maria Rachel Coelho*

A demarcação das Terras Indígenas da Raposa e da Serra do Sol tem sido inviabilizada reiteradamente por autoridades do Congresso Nacional e da Assembléia Legislativa do Estado de Roraima. As mesmas que apoiaram a invasão dos arrozeiros em 1994, que se instalaram na área, premiados com a isenção de impostos para respaldar um lucrativo negócio com ações na justiça contra os direitos indígenas.

As terras dos povos Macuxi, Wapixana, Ingaricó, Taurepang, Patamona da Raposa e da Serra do Sol foram invadidas na década de 70 e os índios submetidos à situação de escravos nas fazendas de gado, alvos de toda sorte de violência e discriminação. Muito parecido com a forma utilizada durante o período colonial, quando, para justificar a chamada “guerra justa”, se acusava os índios de praticarem delitos, toda vez que existia o interesse de avançar sobre suas terras e de buscar mão-de-obra escrava.

Em 1995, foi criado artificialmente o Município de Uiramutã totalmente situado dentro da Raposa, Município que o Estado só conseguiu criar baixando o quorum eleitoral no segundo plebiscito, com sede na aldeia Uiramutã, invadida por garimpeiros. Na tentativa de consolidar esse Município, os militares construíram um quartel inaugurado em 2002. Uma vez instalado o Município começaram a espalhar a notícia mentirosa de que a demarcação da Raposa criaria um grave problema social, pois milhares de pessoas seriam desalojadas da sede municipal quando não passavam de 115 não-índios, na maioria funcionários municipais.

Em 2004, o governo Lula, hesitou em homologar a portaria demarcatória de 1998. Desde os primeiros dias de seu governo, em Janeiro de 2003, o assassinato do Macuxi Aldo da Silva Mota ilustrara claramente a gravidade do conflito fundiário travado com os poderes político-econômicos de Roraima misturados a interesses oligárquico-coronel-clientelistas locais. O corpo foi enterrado numa fazenda de forma absurda, dentro da TI, e o laudo do IML de Boa Vista atestou “causa natural indeterminada”, mesmo depois do IML de Brasília ter confirmado que o Macuxi fora executado com tiros nas costas e braços erguidos. Mas nem mandantes e executores, nem o legista falsário sofreram conseqüências desses atos criminosos.

No final de 2003, frente à maciça mobilização indígena, Lula anunciou que iria homologar a TI. Ao mesmo tempo a operação “Praga do Egito” prendia vários políticos roraimenses pelo “escândalo dos gafanhotos”, um gigantesco desvio de recursos estaduais por funcionários fantasma. Ainda com “gafanhotos” atrás das grades, em Janeiro de 2004, ameaçado de morte, o administrador da FUNAI deixou o Estado poucas horas antes de um protesto dos arrozeiros da RSS contra declarações do Ministro da Justiça. Eles cercaram Boa Vista em estado de sítio por uma semana, aterrorizando aliados da causa indígena, invadindo a FUNAI e o INCRA e ameaçando a Diocese. O “movimento pró-Roraima” pichava carros e muros da capital com “Fora Funai”, “Xô Ong’s”, “Fora Diocese”. Enquanto isso, em pleno carnaval, o funcionário da FUNAI Valdes Xerente era morto por garimpeiros na TI Yanomami.

O Governo Federal negociava uma solução com representantes e aliados de interesses ilegais quando, então, o STF teve sua 1ª participação nessa história. Julgando uma ação popular contra a demarcação da TIRSS, movida pelo ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RR, que, por sua vez, foi um dos réus (suspeito mandante), em 2000, do processo que ficou conhecido por “chacina do Cauamé”, mas que terminou com a absolvição de todos pela Justiça Estadual, que entendeu ter havido um “suicídio coletivo” de 7 jovens, e fundamentou como “fatos novos” a ocorrência de conflitos na TI, como a invasão da Escola Indígena de Surumu, o bloqueio de estradas e outros incidentes. O STF, então, na ação popular, suspendeu liminarmente a demarcação, abrindo espaço para novos atos de violência anti-indígena, seqüestro de religiosos e funcionários da FUNAI, destruição de aldeias próximas às frentes de expansão das lavouras de arroz.

Em Abril de 2005 um acordo entre Supremo e Governo viabiliza a homologação da TI em área contínua, mesmo que com alguns “ajustes” como a permanência do Município de Uiramutã e dupla afetação do PARNA Monte Roraima e recortes mínimos (sede do Município, estradas e linhas elétricas), marcando formalmente o fim provisório do conflito. Na homologação o governo sancionou um ano como prazo máximo para retirar os ocupantes não-índios. Depois de mais de duas décadas de luta, os índios imaginaram ter paz, apesar da violência dos invasores prosseguir. Queimaram pontes, incendiaram o Hospital e Centro Indígena de Formação de Surumu, entre outros atos e ameaças. A ação do governo federal, embora lenta, honrava o compromisso assumido: entre cerca de 350 ocupantes, a grande maioria era indenizada e deixava a área, e apenas meia dúzia de arrozeiros resistiam em cumprir as determinações da lei. 

O governo se obstinava em buscar negociar uma saída pacífica, passavam dois anos do prazo determinado, e diminuía a confiança dos índios na vontade ou capacidade do governo em retirar os últimos invasores. Após o adiamento das duas primeiras operações de retirada (Upatakón I e II), no início de Março de 2008 os índios voltavam a pressionar o governo para levar realmente a frente a anunciada operação Upatakón III.

Os arrozeiros, cujo líder, Prefeito de Pacaraima cassado por crimes eleitorais, reassume entretanto o cargo por decisão judicial. Com a certeza do apoio do Prefeito Quartiero para reconstruir com recursos públicos, em ações de resistência armada à Policia Federal o arrozeiro Quartiero destrói novamente pontes e estradas.  

Este ano,, em pleno Abril, mês dos índios, o Governo de RR, desta vez, representado por um procurador, hoje preso pela “Operação Arcanjo”, suspeito de envolvimento com redes de pedofilia, junto a um deputado federal, candidato a prefeito em Boa Vista, pleiteia perante o STF a suspensão da Upatakón III. A decisão do STF, em conceder liminar em favor de criminosos comuns, políticos e ambientais, impedindo o cumprimento de uma ação da polícia federal, deixa a todos surpresos e perplexos.

Em 5 de maio, o arrozeiro-prefeito Quartiero manda jagunços atirarem bombas em indígenas que pacificamente construiram malocas de madeira e palha em suas terras. A versão que Quartiero divulga à imprensa, é a de que seus funcionários teriam reagido às flechadas dos índios, o que só se desmente graças às únicas armas em mãos dos índios: máquinas fotográficas e filmadoras. Com as imagens do ataque no youtube e na mídia, e o Ministro da Justiça em RR, Quartiero é preso (temporariamente) pela PF, um arsenal de guerrilha flagrado no meio de seus maquinários agrícolas, e os arrozeiros multados pelo IBAMA. 

Apesar das barbaridades éticas e políticas do conflito, alimentadas por uma desinformação sensacionalista e declarações subversivas de alguns militares, um “surto anti-indígena” se espalha pelo país. Pior, voltam a tona, em declarações de intelectuais, políticos e até de Ministros, inclusive do STF, afetando totalmente a imparcialidade exigida para o julgamento da causa. Teses absurdas como a ameaça à soberania nacional para que grileiros continuem engordando seus patrimônios, destruindo a Amazônia com subsídios governamentais, resistindo armados à polícia federal, assessorados por militares bolivarianos, e hasteando a bandeira da Venezuela na área.

Argumentos antigos continuam sendo usados como a “falta de terras” para o Estado. Com 224.300 km2, 90% do Estado de São Paulo, Roraima tem 419.000 habitantes, menos que um bairro da capital São Paulo e 76% da população é urbana. A que vive do campo soma apenas 100.000, com mais da metade (55.000) indígena. Não há diferenças na densidade rural média entre áreas indígenas (0,43 hab./ km2) e não indígenas (0,46 hab./ km2). Com 1,09 hab./ km2 a RSS é entre as áreas rurais mais povoadas, desmentindo a tese do vazio demográfico em faixa de fronteira, a não ser que a tese considere os índios não-humanos. Fora das áreas indígenas, 28.000 km2 aptos para agricultura estão inutilizados. O que não falta em Roraima é terra para não-índios, o Governo Estadual se queixa da falta de terras, mas não desenvolve as áreas disponíveis.

O que também não falta é representação política. Como 40 milhões de paulistas, 400.000 roraimenses elegem 3 senadores: o voto de 1 roraimense vale o de 10.000 paulistas, pois em São Paulo um senador é eleito com 1 milhão de votos, em Roraima com 10.000, a compra é mais fácil. Talvez isso explique a política ser a principal fonte de renda do Estado, e as verbas federais a de quase 90% das estaduais. Pelo “pacto federativo” que os políticos roraimenses denunciam estar sendo violado pela demarcação da TIRSS, os contribuintes brasileiros financiam clientelismo da administração estadual (o primeiro concurso público foi em 2004), corrupção, desvio de dinheiro público e compra de votos (como mostram o escândalo dos gafanhotos, governadores e prefeitos cassados), assim como subsídios e isenções de impostos concedidos a meia dúzia de arrozeiros, invasores de terras indígenas e destruidores do meio ambiente.

Quando defende a produção de arroz na economia estadual, o governo de RR omite dados como estes, que reduzem o mérito empreendedor de quem produz em terras da União, sem pagar impostos, com insumos subsidiados, e descumprindo normas ambientais.

As evidências da sistemática aliança entre abusos de poder político-econômico e impunidade em torno da causa anti-indígena, já abundantes no passado, parece continuar ainda hoje. No dia 27 de agosto passado ao sairmos do STF fomos surpreendidos com um boato de que o julgamento seria estrategicamente “empurrado” para o final de 2009.

Está nas mãos do STF o poder de decidir a favor ou contra os povos indígenas; a favor da maioria da população que vive em Roraima e desta vez o julgamento assume proporções politicamente históricas, porque está legitimando implicitamente formas, violentas e não-violentas, de luta social além das conseqüências futuras que terá, em reafirmar ou reverter um rumo civilizatório de expansão dos direitos humanos, entre eles o direito à diferença, como alicerces da democracia e do Estado de Direito.

Até aqui só se viu métodos violentos subversivos, de desafio ao estado de direito, que não só ficaram impunes, mas que foram politicamente legitimados e fortalecidos pelo Judiciário.

O recado que, ao suspender a Upatakón III frente à reação violenta dos arrozeiros, o STF enviou às partes sociais em conflito, contradiz a posse de sua nova presidência, que declarou não admitir o conflito social sem o respeito às leis. A não ser que o atual Presidente do STF tivesse como alvo só algumas partes, como por exemplo banqueiros. Os arrozeiros de Roraima mostram ter entendido o recado exatamente neste sentido, pois levaram produtores do Mato Grosso do Sul que compartilham sua paixão anti-indígena, para preparar a próxima operação de guerra por lá, e continuam o monocultivo do arroz a custa do envenenamento dos rios por agrotóxicos.

O desfecho também pode ser trágico para o conjunto de direitos, humanos e territoriais, dos demais povos indígenas do Brasil. Não é difícil imaginar o efeito dominó, e a multiplicação dos conflitos fundiários, que uma decisão contrária à manutenção da demarcação contínua da TIRSS desencadearia no resto do País, onde, de olho nesse julgamento, os que cobiçam Terras Indígenas já regularizadas já estão se armando, juridicamente e com outros meios, para suas próximas ações de invasão e grilagem.

Mas o que mais surpreende e preocupa, é que enquanto descaracterizam e desqualificam a identidade indígena dos povos da RSS, para negar-lhe os direitos reconhecidos pela Constituição Federal, direito originário às suas terras porque a presença dos povos indígenas é anterior à criação do próprio Estado Brasileiro, estando essas terras localizadas no centro ou nas fronteiras do país, reforçam um preconceito racista e intolerante, na contramão de processos histórico-sociais, culturais e jurídicos de crescente respeito e valorização de todas as formas de diferença que caracterizam o ser humano, ameaçando, em última análise, o direito de todos nós à diferença. Isso representa uma ameaça grave, que nos atinge a todos, individual e coletivamente, porque não reconhece que só com pleno respeito e valorização das diferenças individuais e coletivas dos seres humanos podem realizar-se mais plenamente os ideais e direitos humanos de igualdade.

Neste sentido esse julgamento representa um divisor de águas nos futuros rumos não apenas dos direitos indígenas, mas dos direitos humanos em geral.

* Professora da Universidade Estácio de Sá e da Universidade Federal do Rio de Janeiro; e colaboradora do NCPAM.

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