sábado, 13 de setembro de 2008

OFICINA LITERÁRIA - LEMBRANÇAS DE UM NORDESTINO



Pedro Braga*


O tinir da colher no prato de vidro já denunciava que acabara de fazer sua refeição das doze horas. Respira fundo; passada a língua no interior da boca, para retirar os últimos farelos de farinha de mandioca dos dentes e gengivas, empurra levemente o prato para um pouco menos do meio da mesa. Levanta, direciona-se até o jirau, logo lava mãos e bocas tomadas pelo cheiro peixe e banha de porco. O prato sujo, agora, não era mais objeto do Louro, porque estava usado, ensebado, e dependia da efêmera posse de Dona Maria para lavá-lo e, quem sabe no outro dia, servir novamente um neto, uma filha que a visita ou mesmo o próprio esposo.


Após daí, o velho se retirava da mesa. E em rumo à sua rede, pensava sobre tarefas seqüenciais as quais deveria exercer quando fosse tocar o comércio à tarde. Deitado, além das tarefas a resolver posteriormente, em freqüência se deleitava com imagens pretéritas de quando era criança e sua morada, no sertão nordestino. Soltava um sorriso tímido ao ser visitado pela imagem infantil de seus filhos quando estes eram pequeninos, e, mesmo com a atual circunstância de sua vida, não se importava, pois os meninos já estavam fortes, altos, outros casados e todos “bem de vida” – como dizia.


Seu Louro, às treze e quarenta e cinco, por seis dias semanais, pulava do cochilo de início de tarde. Apossava-se de seu valente chapéu de palha, sempre ao lado ou por perto, se vestia da blusinha social azul de botão, meio encardida e manga cortada. Repousava os óculos ao rosto, empunhava o facão; lá ia ele. Tronco e passo firmes, olhando quase para o chão; na verdade não olhava, mas sim meditava, talvez pensasse sobre algum assunto que devia ser vital para sua vida, que o desconheço. O barulho de seu velho chinelo de dedo ressoava naquele piso de terra batida – chap, chap, chap. Era assim, pois, que o via, figura interessante; um personagem importante na vida de muitos por ali.


Posterior ao quiosque aberto, projetava a mão destra no bolso, retirava um tipo de colar composto por um só símbolo, no qual não se encontra mais ninguém sob pena de crucificação. Anelava-o ao pescoço e continuava a trajetória mais do que confiante. Arrumava na vitrine imaginária do estabelecimento, formada por longos ganchos de metal, as frutas que existiam por ali – pencas de bananas maçãs, pratas ou pacovãs –. Enfileirava garrafas de méis – abelha ou de cana –. Jerimum, melancia, cheiro-verde, capim santo, maxixe, enfim. Embora miúdo que fosse o quiosque, diversas eram as especiarias oferecidas sob venda por aquele nobre senhor. O que a nós, colegas de rua e vizinhos do velhinho, instigava-nos enorme espanto, porque mal cabiam no reduzido espaço do local. A memória ainda me permite lembrar das palavras de um amigo quando se referia ao caso: “Como é que esse velho consegue guardar tudo isso aí num espaço tão pequeno hein, bicho?” E começávamos a rir...


E a cantoria iniciava; todos os modelos de versos passivos às regras musicais saíam da garganta do velho. Até em línguas desconhecidas para o povo brasileiro, estrofes eram entoadas, muitas das vezes, pois, harmonizadas pelo seu antigo violão. Vinha a clientela de diversas partes da cidade. Simultâneos a ela vendedores, amigos, parentes, cobradores, e, na chegada deste último, que justifica o apreço que seu Louro tinha em comprar mobília e objetos de ornamento interno para a casa, gritava: “FICA AQUI NO QUIOSQUE MARIA!” A senhora chegava correndo. Ele, qual sua esposa, também saia correndo na direção do ofuscado local onde se escondia a bagatela de dinheiro que guardava permeado por uma sacola plástica; escondido ora debaixo do colchão ou em algum dos basculantes do assoalho de sua casa de madeira. Voltava ao quiosque como um jato e pagava suas dívidas muito sorridente e satisfeito, apertando com sinceridade, após receber o recibo, a mão que o cobrava. O jovem cobrador se ia, e seu Louro o mirava até que dobrasse a esquina. Ficava feliz e pensativo, pois conseguira neste dito momento quitar as prestações de seu imponente guarda-roupas de madeira, coisa desconhecida para ele há algum tempo atrás.


Se o relógio marcava dezessete, fechava tudo na maior velocidade. Tomava banho, arrumava-se e marchava para as Pedreiras, pequeno bairro no qual fazia parte de vívido grupo de amigos que se encontravam para conversar, cantar, brincar, sorrir. O que admira é que ia a pé, e o dito bairro era longe, diga-se, do outro lado da cidade.


Era de se espantar a força que o velho senhor detinha; não a física, que também vale dizer, mas o desejo pela vontade de viver. Nada o incomodava; tudo era sinônimo de amor, paz, o que o fazia acreditar que tudo tinha jeito neste mundo; todos poderiam mudar, viver e ser felizes nesta vida.


Três de Abril de 1993, data trágica para os familiares do seu Louro. Que, anteriormente, já vinha se queixando de dores que se configuravam em problemas àqueles que estariam ao redor. O senhorzinho estava doente fazia algum tempo; triste! Contraiu degradante doença enquanto trabalhava, no tempo, em seringais da Amazônia brasileira. Por desconhecer que era doente, não se tratou medicamente e, na data discorrida, foi alvejado pelo dardo a que todos atinge, a morte.


Não esqueço o fim de tarde em que, chegando da escola, avistei de longe meus colegas ainda fardados tentando chamar-me atenção para algo não habitual que ocorria na rua neste exato instante. O nobre senhor “Louro Novo”, como era chamado, acabara de falecer. Perguntei aos colegas “como é que vocês sabem disso?”. Um deles, Jean, logo pulou na frente e disse que vira suas filhas e netas chorando e, logo após tal cena, o carro funerário da cidade em cujo banco carona assentava-se Dona Maria, também em prantos. Ficamos paralisados por longos minutos. Decidimos; entrar para nossas casas, tomar banho e voltar pra ver o que ocorreria; fomos, viemos e nada aconteceu ou apareceu. Exceto a casa de seu Louro de cujas janelas abertas enxergávamos, mesmo do outro lado da rua, alguns de seus amigos, filhas e netas. Agora tínhamos certeza; morreu!


No dia seguinte, sábado, todos já tínhamos plena certeza de que devíamos prestar nosso carinho para com o corpo daquele falecido senhor. Nenhuma das mães permitiria que fossemos ao velório, inclusive a minha. Porém, estrategistas que éramos, reunimo-nos e fomos mesmo assim. Chegando lá; que cena presenciei naquele quartinho simplório onde se encontrava o senhor Louro, estirado sobre o caixão! Boa parte do que vi naquele dia e lugar fora expelido de minha mente. Mas existe uma imagem que se consolidou em minha vida. A de um de seus netos, talvez o mais novo, caçula, que, divisando seu avô do colo de seu pai, choramingava pedindo: “vovô, quebra a janelinha dessa caixa e vem brincar comigo, vovô. Vem brincar de onça e gato do mato, vovô”. E o menino colocava-se em choro constante, ora repetindo tais palavras ora abraçando seu pai, bem como a lagrimar seus verdes olhos. Passei severas semanas refletindo sobre as palavras do garoto. Porventura desconhecesse ele a fatalidade da morte a qual se faz futuro de todos, e pensasse que seu avô estava apenas em sono profundo. Ou, se soubesse, não se interessasse pela atual imagem do velho, mas sim pelo que ele representava para si; o devotado velhinho de cujo sorriso amoroso sempre pronto para oferecer-lhe os mais ludibriantes momentos de lazer. Não um lazer econômico, desses que compreende a pobre ação de se levar o filho para um parque e entupi-lo de doces e tickets de brinquedos gigantes; mas o lazer romântico no qual não se emprega dinheiro, o lazer que surge de um olhar verdadeiro, dum sorriso sincero, do hilário panorama fatal que a vida nos apresenta, por conseqüência, atentamo-nos a sorrir.


Como disse, éramos meninos estrategistas e brechadores de raparigas quando seu Louro Novo morreu. Até podíamos possuir novata sensibilidade analítica para pensarmos sobre as possíveis causas naturais de sua morte, bem como as conseqüências que acarretariam na vida de muitos que, naquele instante, precisariam tocar seu cotidiano furtado da presença do senhorzinho. Mas ainda éramos incipientes no assunto, tanto que durante meus últimos anos em que morei naquela pequena cidade de pouco mais de dez mil habitantes, nunca sequer percebi o abstrato que me comprimia meio àquelas ruas sem asfalto. Só hoje me foi perceptível, vinte e cinco anos após minha partida.


Por motivos familiares, alguns de nós, colegas de infância e agora de trabalho, voltamos em visita à cidade. Caminhando por ruas já de concreto, em especifico as próximas de casa, senti algo anormal. Algo transcendente, talvez uma força, o vento, o chacoalhar das árvores me impulsionavam a pensar naquele querido senhor que há muito tempo não mais via. A sensação era como se não estivesse um dia falecido, mas se fora. Como se os rastros de seu chinelo ainda marcassem a terra logo por ali e, chegando em casa, olharia pela janela e de certo o veria dentro de seu quiosque exercendo com amor o seu ofício. O aperto sincero à mão de um homem que lhe cobra. O admiraria pelos seus firmes passos e amor pela vida. Certamente, sob as ordens de minha mãe, muito me honraria, ao comprar algo em seu comércio, contemplar pela última vez o seu olhar. Olhos e palavras dignos, incorruptíveis, sinceros de um homem cuja vida foi contemplada pela polidez perpétua da sabedoria.

*Editor de Redação do NCPAM e estudante de História da Universidade Federal do Amazonas.


2 comentários:

NCPAM disse...

VOCÊ TEM LIVROS SOBRE CONTOS PUBLICADOS?

Anônimo disse...

UMA IMORALIDADE ESTE GOVERNO BRAGA E A PREFEITURA MUN DE MANAUS DIRIGIDA POR MAFIOSOS HEGEMONICOS!