segunda-feira, 30 de abril de 2012

O AVANÇO DAS ÁGUAS

Ellza Souza (*)

“É tão humana a relação entre o caboclo, sua canoa e o rio que, quando ela desata e vai, ele diz com tristeza: -minha canoa fugiu...”

Não podia começar de outra maneira a contar a experiência que vivi no sábado, 28 de abril a não ser com a poesia de Celdo Braga que captou com precisão o entrosamento do homem com o rio. E faço uma pergunta: por que o caboclo, o índio, o sertanejo, o homem simples de qualquer região observa a natureza e não a destrói e ao vir para a cidade ocorre uma transformação e o rio ou as árvores não servem para nada?

Em nossa cidade, a maioria da população veio do interior do Amazonas ou do interior do resto do Brasil, portanto Manaus era pra ser agradável, limpa, organizada, igarapés vivos e o rio Negro deveria estar em plena forma, senão pela beleza pelo menos pelo seu relevante uso.

O fotógrafo Valter Calheiros me convidou a atravessar o Educandos de catraia. Achei interessante pois me lembrei que quando estava na faculdade há “alguns” anos, um colega de aula me fez um convite como esse e atravessamos o igarapé saboreando todos os picolés de frutas e eu, pra “variar” insistia no de buriti que eu adoro mas insisto em lembrar que os buritizeiros que faziam lama foram dizimados por aqui. Bem, voltando ao mundo atual. Chegamos cedo na escadaria dos Remédios da feira da banana na internacional Manaus Moderna. O movimento já era grande. Carros, gente e sujeira se misturavam formando um caldo prá lá de fedorento. No meio dos alimentos  e daquela fartura de bananas, abacaxis (sabiam que abacaxi é barato lá, 3 por cinco e dos grandes), laranjas, macaxeira, ervas, pimenta do reino e cuminho, farinha, um chão com cara de que nunca foi lavado a não ser quando o rio enche, o que está acontecendo agora. E aquele cheirinho de rato em decomposição, que horror.

Bem, algumas pessoas me aconselharam a não entrar em canoa furada que não tivesse salva vidas pois não sei nadar. Mas o Calheiros já tinha o seu canoeiro preferido e era o único que não tinha o material. Não seja por isso. Em terra ou na água os riscos são latentes. E entrei na canoa do seu Paulo, 51, desde a década de 90 fazendo esse trabalho quando aqui chegou vindo do Manaquiri. Ele ainda tentou emprestar o colete salvador de um concorrente mas não houve acordo e fomos assim mesmo. Olhei para o rio, para mim até agora dos que conheço o mais lindo de todos. A canoa, muito mal conservada, furada ou desgastada pelo tempo, tinha uma decoração de uns pneus pequenos, acho até que de velocípede com o Paulo puxando no remo na maior tranqüilidade.

A travessia até a beira do Educandos foi calma. Lá tem um abrigo de ônibus que não funciona por falta do mesmo e então serve de abrigo dos usuários das poucas catraias que ainda existem. Infelizmente não tive o prazer de conhecer a catraieira provavelmente a mais antiga do mundo, uma mulher de 65 anos que só “começa a trabalhar às 9” segundo Paulo. O tempo estava nublado, rio e céu no mesmo tom de cinza. A vontade que eu tinha era colocar a mão na água mas como se o rio naquele braço mais próximo da cidade, é sujo de fazer chorar. Todas as margens que circundam o bairro, as pontes (do Educandos e a de ferro da avenida 7 de Setembro) e o centro, estão tomadas por uma barreira de lixo que não decompõe como plásticos e outros apetrechos modernos. Deve ter animais e gente desovados no local que até se decompõem, mas deixam um cheirinho de podre no ar. O mureru, a plantinha que filtra as impurezas, até tenta amenizar mas não dá conta. Segundo o experiente catraieiro, algumas pessoas chegam de carro e jogam no rio as suas tralhas enferrujadas ou do alto da ponte jogam seus bem embalados detritos naquelas águas como se fosse um grande cesto de lixo a céu aberto. Nem jirico é tão burro assim. Me desculpe o burro e o jirico mas isso é coisa do ser humano mesmo.

A canoa comandada pelo Paulo seguiu seu rumo e foi feito um trajeto de observação. Calheiros se esbaldou nas fotos. O igarapé está tão largo que por aí tanta água já chega quase a ser um mar. Um mar de águas tão doces e plácidas mas que sofre com a agressão  de quem mora em suas beiras. Nunca tinha tido essa visão já chegando segundo o experiente catraieiro, na boca do Imboca, nas proximidades da terceira ponte de ferro da 7. Na canoa entre euforia e tristeza faço outra reflexão: se fazemos isso com a água que nos dá vida o que não seremos capazes de fazer com o nosso semelhante, com os seres que não falam, com a frondosa castanheira?

As casinhas continuam penduradas na beirinha do igarapé, tanto que já tem algumas precisando de “ajuda”.  A água já lambe os assoalhos e os moradores se queixam que não têm para onde ir. Muitas casas foram recentemente construídas e segundo soube as pessoas fazem as moradias esperando a recompensa depois. Se eu fosse dona da cadeia enclausuraria o dono da casa e o administrador público que permitiu tal barbárie.

O movimento no rio é intenso. Imensas balsas de ferro sendo construídas nos estaleiros e outras sendo carregadas de mercadorias que serão levadas ao longo do rio Solimões. Canoas, pequenas e grandes  embarcações de madeira, voadeiras, fazem um balanço nas águas conhecido como banzeiro que me deixa com medo. Continuo refletindo: Não tenho bóia (?), não sei nadar e a poluição da água não me deixará viva nem por um decreto dos homens. Mas penso na experiência que estou vivendo naquele momento e que vai me fazer uma pessoa melhor e mais compreensiva com a natureza. Seria uma aventura maravilhosa se esses catraieiros fossem reconhecidos pelas autoridades e transformassem sua atividade em algo rentável e turístico, com segurança é claro. Simples embarcações pintadas de branco para destacar na água preta onde fossem feitos alguns trajetos para locomoção ou passeios de quem queira apenas apreciar o Negro.

O passeio durou aproximadamente uma hora. Voltamos sãos e salvos para a contar a aventura. Subi para a Feira Moderna. Resolvi dar uma olhada. Quem sabe detectar algumas melhorias quanto a higiene. O cheiro de rato deu uma lufada no meu nariz. Comprei carne e abacaxi e rumei para a parada de ônibus. Uma última reflexão. Tanta fartura mas não temos bons hábitos de higiene no trato com os alimentos. Os permissionários trabalham no meio da sujeira e salve-se quem comprar. Saindo da feira desci a rua dos Barés e aí vi que “ele” está chegando e ainda faltam segundo os entendidos dois meses até a sua parada completa.

A cheia do rio está na capital e ameaça passar da grande enchente de 2009 quando chegou até a avenida Eduardo Ribeiro.  Silencioso e sem nada que se possa fazer para evitar, o rio em toda a bacia amazônica, está subindo e levando plantações (a desculpa é essa para os altos preços dos produtos e para a liberação de verbas). As secas ou cheias são cada vez mais intensas e devastadoras. E o ser humano se achando. Não tem competência para evitar as tragédias.

Meu Deus cadê o mercadão, lugar adequado para a venda de alimentos. Com a cheia do rio ou melhor cheia da lama, a principal feira da cidade, a Moderna, vai ficar um horror. A sujeira e as bactérias, o mijo do rato, tudo aflora naquele centro que deveria ser o mais limpo de todos. E os usuários só fazem pular a podridão e compram assim mesmo pela absoluta falta de outro lugar melhor para se abastecer. É uma pena porque os produtos ali vendidos são quase todos regionais, de qualidade e a variedade é infinita.

Vamos todos pagar um alto preço pelo descaso e pela ganância. Quem viver, verá.

(*) É escritora, jornalista e articulista do NCPAM/UFAM.

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