Universidades federais, para além das greves
Roberto Romano (*)
O reitor deve atrair deputados federais e senadores, obtendo o favor
político a ser pago com fidelidade ao governo. Cada recurso novo é negociado na
boca do Orçamento. As oposições consentidas podem ajudar na bacia das almas. O
prestígio reitoral, no Executivo e no Congresso, nos últimos tempos tem sido
raro. O dinheiro não está garantido. O que explica, em parte, as greves.
Pouco é comentado, nas
análises sobre a greve dos professores federais, sobre o conúbio entre reitores
e governo. É preciso examinar tal elo para entender os entraves institucionais
e financeiros que originaram o movimento grevista.
A autonomia universitária não vai além da letra, na Constituição
de 1988. Fora as universidades paulistas - cuja base autônoma é um decreto do
Executivo estadual -, no Brasil os câmpus sofrem rígido controle do Ministério
da Educação (MEC) e os reitores são escolhidos de modo plebiscitário. As lutas
pelos cargos fazem com que na eleição reitoral impere o "é dando que se
recebe". Como os municípios, as formas acadêmicas dependem de tratos oligárquicos
e acertos com ministérios. Em eleições presidenciais essa anomalia se confirma
no apoio ilegal de reitores aos palacianos. Em 27/10/2004 Luiz Inácio da Silva
recebeu apoio de 55 instituições de ensino superior. Na audiência ilegal
estavam os ministros da Educação, da Previdência e da Casa Civil. O encontro de
2004 foi o segundo entre reitores e Presidência. Em 5/8/2003, segundo
importante dirigente universitária, "pela primeira vez tivemos uma reunião
de caráter político entre o nosso sistema e o presidente da República"
(fonte: MEC, no site Universia Brasil, http://www.universia.com.br). O
procedimento foi repetido na escolha da atual presidente.
Ilegalidade para apoiar candidatos oficiais, subserviência
diante do governo, uso de cargos para fins político-eleitorais. Os monopólios
da ordem pública pelo Executivo trazem ineficácia ao câmpus, entravam
iniciativas de pesquisadores e docentes. Os responsáveis pelo ministério
confessam que sem os municípios e as universidades nada pode ser feito para melhoria
administrativa e pedagógica no plano federal. Quando ministro, Fernando Haddad
admitiu que o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) não trouxe reflexos
significativos ao ensino superior: "O governo federal sozinho não
conseguiria enfrentar os entraves educacionais do País. Era preciso o
envolvimento de todos os Estados, municípios e universidades" (Haddad
admite que PDE ainda não mudou ensino superior, Universia, 19/5/2008).
Quando notamos o
comportamento dos reitores citados acima, podemo-nos inquietar com os frutos do
comércio entre eles e os palácios. Ao contrário das universidades europeias ou
norte-americanas, onde a guerra para conseguir recursos ocorre entre grupos
acadêmicos (quem vence consegue verbas do Estado ou das empresas), nas universidades
federais, como nos municípios, a passagem das verbas aos benefícios segue a via
oligárquica e partidária. O reitor deve atrair deputados federais e senadores,
obtendo o favor político a ser pago com fidelidade ao governo. Cada recurso
novo é negociado na boca do Orçamento. As oposições consentidas podem ajudar na
bacia das almas. O prestígio reitoral, no Executivo e no Congresso, nos últimos
tempos tem sido raro. O dinheiro não está garantido. O que explica, em parte,
as greves.
Interessa aos
dirigentes o jogo dos oligarcas nos gabinetes ministeriais. Ali se determina o
prestígio do reitor ou do seu grupo. Prefeitos em plano micrológico, eles
buscam verbas. No itinerário dos recursos vêm o favor e as "conversas
políticas". Ao se prenderem no xadrez burocrático e partidário, os
reitores são obrigados a aceitar a lentidão e as regras que amesquinham ensino
e pesquisa, começando com os baixos salários. A rede cortesã tolhe iniciativas
dos câmpus, mas gera no seu interior a ilusão da democracia eletiva, com
abstração dos fins científicos e pedagógicos.
O dogma das
eleições que assegurariam legitimidade às Reitorias trouxe resultados
desastrosos. A experiência da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) é
importante, pois ela se repete a cada nova eleição nos câmpus federais. Nas
eleições "todos os nomes sufragados pelas urnas pertenciam às forças
políticas que vinham dirigindo a UFSC desde a sua criação e que mantinham com
os governos militares uma convivência pacífica ou um apoio entusiasta. (...) O processo
eleitoral não possibilitou, portanto, como esperavam ou aspiravam as forças de
oposição ao regime militar, neste caso as organizações dos docentes, servidores
técnico-administrativos e estudantes, que grupos políticos não alinhados com as
elites locais e nacionais pudessem ocupar os mais altos cargos da
universidade" (Waldir José Rampinelli, O Preço do Voto - Os Bastidores de
uma Eleição para Reitor).
Na universidade,
nenhum mandato popular ou divino legitima o exercício do pesquisador/docente ou
pesquisador/estudante. Só a retidão ética e o saber fornecem autoridade
acadêmica. Se um reitor se mostra alheio à produção da ciência e do ensino e
age servilmente perante o governo, temos apenas um embaixador do poder no
câmpus. Se, além disso, ele traz para o interior da instituição universitária
os interesses dos partidos políticos, surge algo manifestamente nocivo à
universidade.
Nos últimos
tempos, Reitorias que assumem semelhante lógica surgem em colunas políticas e
de polícia, ligadas ao uso errôneo de recursos públicos. Para entender o fato
importa examinar a estrutura do Estado brasileiro e os costumes que ela
ocasiona. Sem autonomia, governadores, prefeitos, reitores são elos de uma
cadeia (a da lisonja servil) que rege a vida política brasileira. É quase
impossível mudar a forma de poder que centraliza as políticas públicas no
Executivo federal. Mas nas universidades vivem intelectuais que dominam saberes
e práticas as mais sofisticadas. Eles poderiam elaborar planos de autonomia
compatíveis com os padrões da pesquisa científica, humanística e de ensino. Se
não o fizeram e não o fazem, é por cumplicidade. Aí, nada mais pode ser dito,
porque entramos no terreno do realismo míope e oportunista, fonte de muitos
risos e de muitas lágrimas para a cidadania brasileira.
(*) É filósofo, professor de ética e e filosofia na Universidade de
Campinas (UNICAMP), é autor, entre outros livros, de “ O Caldeirão de Medeia”,
Perspectiva.
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