A coragem de um diplomata
A diferença
entre a teoria e a prática pode ser eliminada por um ato de desassombro. Foi o
que aconteceu no fim da semana, quando um diplomata brasileiro resolveu
aplicar, por sua conta e risco, os princípios humanitários dados como
indissociáveis da política externa do País. Em toda parte, o Itamaraty exorta a
comunidade internacional a dar prioridade aos direitos humanos. Faltou fazer o
mesmo dentro da própria casa - a embaixada em La Paz. A omissão levou o
encarregado de negócios da representação, ministro Eduardo Saboia, a tomar uma
iniciativa inédita. Ela pode ter salvado a vida do senador boliviano Roger
Pinto Molina, de 53 anos, que completaria na última sexta-feira 452 dias de
confinamento numa dependência da embaixada onde se asilou, em maio do ano passado.
Eleito pela Convergência Nacional,
partido de oposição ao presidente Evo Morales, ele tem contra si uma vintena de
processos por alegados delitos que incluem corrupção, desacato (ao acusar Evo
de proteger o narcotráfico), dano ambiental, desvio de recursos e até
assassínio. O asilo foi concedido pela presidente Dilma Rousseff dias depois.
Evo criticou a decisão, recusou-se a dar ao asilado o salvo-conduto para viajar
ao Brasil e acusou o então embaixador brasileiro de "pressionar" o
país. À medida que o impasse se arrastava, mais evidente ficava que o Itamaraty
não só não pressionava o líder bolivariano, como o tratava com um descabido
temor reverencial. Essa política de luvas de pelica foi inaugurada, como se
recorda, pelo então presidente Lula.
No Primeiro de Maio de 2006,
começando o seu primeiro mandato sob uma barragem de protestos pelo não
cumprimento de promessas eleitorais, Evo nacionalizou o setor de gás e
petróleo, e mandou invadir militarmente uma refinaria da Petrobrás. Em plena
sintonia com o à época chanceler Celso Amorim e com o assessor de relações
internacionais do Planalto, Marco Aurélio Garcia, Lula só faltou cumprimentar o
vizinho pela violência. Mudaram os nomes, mas a tibieza persiste. Na conturbada
história do continente, asilo político e salvo-conduto representam uma tradição
secular - uma ou outra exceção apenas confirmam a regra. Mas a diplomacia
brasileira não há de ter tido a coragem de invocar essa realidade para mostrar
a Evo que a sua atitude era insustentável, além de ofensiva à política
brasileira de direitos humanos.
Salvo prova em contrário, o Itamaraty
não se abalou nem ao ser informado dos exames que constataram a deterioração
física e mental do senador - que falava em suicídio. Não era para menos. Como
Saboia desabafaria numa entrevista à Rede Globo, "eu me sentia como se
tivesse um DOI-Codi ao lado da minha sala de trabalho", em alusão ao
aposento em que vivia o asilado. "E sem (que houvesse) um verdadeiro
empenho para solucionar o problema." Duas vezes ele foi a Brasília
alertar, em vão, o Itamaraty. Chegou a pedir para ser removido de La Paz.
Enfim, diante do "risco iminente à vida e à dignidade de uma pessoa",
agiu. Acompanhado de dois fuzileiros navais que serviam na embaixada, em dois
carros com placas diplomáticas, ele transportou Roger Pinto a Corumbá, do lado
brasileiro da fronteira, numa viagem de 22 horas iniciada na sexta à tarde.
No final da noite de sábado seguiram
para Brasília, a bordo de um avião obtido pelo senador capixaba Ricardo
Ferraço, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa, mobilizado pelo
diplomata. Apanhado no contrapé, o Itamaraty anunciou que tomará "as
medidas administrativas e disciplinares cabíveis". Melhor não. No clima
que o País anda respirando, Saboia pode virar herói - e o governo, carrasco. De
seu lado, La Paz pediu que o Brasil recambie o "fugitivo da Justiça"
- o que ele não é, porque em momento algum deixou tecnicamente território
brasileiro. Autoridades bolivianas ressalvaram que o caso não afetará a relação
bilateral. Mas, para Evo, provocar o Brasil sempre serviu para fazer boa figura
junto às suas bases, a custo zero.
Cabe ao Itamaraty, até para se
penitenciar da dignidade esquecida durante o confinamento do senador, reagir
com dureza a uma nova bravata de Evo. E aprender com o seu diplomata a ser mais
coerente com o que apregoa.
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