Marina e as regras do jogo
Demétrio Magnoli (*)
"Coloque o dedo na ferida: sem
as assinaturas é uma esperança vã, impossível de frutificar." A frase, do
ministro Marco Aurélio Mello, do Tribunal Superior Eleitoral, equivale a uma
potencial sentença de morte para a Rede, a "vã" esperança partidária
de Marina Silva. Marco Aurélio tem razão quando põe o dedo na
"ferida" jurídico-administrativa, mas a "ferida" política
está em outro lugar: na democracia brasileira não existe liberdade partidária.
Por que eu, meu vizinho e um grupo de amigos não podemos decidir, hoje, fundar
um partido e vê-lo, amanhã, reconhecido mediante a simples apresentação de um
estatuto? Isso é liberdade partidária - algo que não temos, pois a elite
política decidiu, em seu proveito, estatizar os partidos políticos.
A Constituição de 1988 consagrou a
estatização dos partidos, refletindo um consenso de nossa elite política. Os
partidos oficiais adquiriram o curioso direito de avançar sobre o bolso de
todos os cidadãos, extraindo-lhes compulsoriamente os recursos que financiam o
Fundo Partidário e as propagandas partidária e eleitoral nos meios eletrônicos
de comunicação. Em 2012, as dotações do orçamento federal para o Fundo
Partidário somaram R$ 286,2 milhões. Nós todos pagamos R$ 850 milhões em 2010,
sob a forma de compensações fiscais às emissoras de TV e rádio, pela
transmissão dos horários cinicamente rotulados como "gratuitos" e
utilizados pelos partidos. O projeto do PT de reforma política, que almeja
introduzir o financiamento público de campanha, tem a finalidade de expandir
ainda mais a transferência de recursos da sociedade para os políticos
profissionais.
A Justiça Eleitoral é, ao lado da
Justiça do Trabalho, uma das desastrosas invenções do varguismo. Nenhuma
democracia precisa de tribunais para organizar eleições, missão que pode ser
cumprida por meros órgãos administrativos. A razão de ser de nossos tribunais
eleitorais se encontra no princípio antidemocrático da subordinação dos
partidos ao Estado. O aparato judicial especializado desempenha a função de
identificar os partidos que cumpriram os requisitos legais para tomar dinheiro
dos cidadãos - e, eventualmente, disputar eleições. "Não cabe estabelecer
critério de plantão para esse ou aquele partido", explicou Marco Aurélio
referindo-se à Rede, antes de concluir com a inflexão típica do juiz que zela
pela igualdade de direitos: "Abre-se um precedente muito perigoso".
De fato: os princípios da liberdade partidária e da estatização dos partidos
são inconciliáveis - e para preservar o segundo o nosso ordenamento político
sacrifica o primeiro, sem jamais abrir perigosos precedentes.
Os partidos estatais formam um dos
pés do tripé que sustenta um sistema político avesso ao interesse público e
orientado para a corrupção sistemática. O segundo pé são as coalizões em
eleições proporcionais, um expediente de falsificação da vontade do eleitor
destinado a conferir viabilidade a partidos que não representam ninguém, mas
acomodam frações periféricas da elite política. O terceiro pé é a prática de
loteamento político da máquina estatal, propiciada pela escandalosa existência,
apenas na esfera federal, de quase 50 mil cargos de livre nomeação.
A privatização do Estado é o outro
lado da moeda da estatização dos partidos políticos. "Não tem conversa, a
lei é peremptória", enfatizou Eugênio Aragão, vice-procurador-geral
Eleitoral, alertando para os limites legais ao direito de candidatura. Hoje, diante
do pedido de registro da Rede de Marina, a Justiça Eleitoral emerge como
fiadora burocrática dos interesses gerais da elite política, que não pode abrir
mão da coerência do conjunto do sistema.
No balcão cartorial do Estado
brasileiro, registrar partidos é um negócio tão lucrativo quanto fundar
sindicatos ou igrejas. PTC, PSC, PMN, PTdoB, PRTB, PHS, PSDC, PTN, PSL, PRB,
PPL, PEN - a sopa de letrinhas das legendas oficiais vazias produz a falsa
impressão da vigência de ampla liberdade partidária. Aplicando sua inteligência
à produção de sofismas, Marco Aurélio argumentou que a ausência da Rede não
prejudicaria as eleições de 2014, pois, afinal, o País não carece de partidos.
Na esfera exclusiva da lógica burocrática, o ministro tem razão: todos poderão
votar em partidos que não representam ninguém, mas cerca de um quarto do
eleitorado experimentará a impossibilidade de sufragar a candidata de sua
preferência. De certo modo, o Irã é aqui.
Marina e os seus não aprenderam
direito as regras do jogo, explicam nos jornais os ínclitos políticos
fundadores de legendas de aluguel e seus advogados especializados nos
"negócios do Brasil". Mas, como atestado de uma devastadora crise
política e moral, ninguém pergunta aos representantes de nossa elite política
sobre a natureza das regras desse jogo. Três meses atrás, centenas de milhares
de manifestantes tomaram as ruas para expressar sua frustração e sua ira com um
Estado hostil à sociedade. Depois disso, o Supremo Tribunal Federal decretou
que os políticos de sangue azul se distinguem dos cidadãos comuns pelo
privilégio da impunibilidade. Agora, o Tribunal Superior Eleitoral prepara-se
para, aplicando as leis vigentes, cassar o direito de voto de um quarto dos
brasileiros. Entre o Brasil oficial e o Brasil real, abre-se um fosso
ameaçador, quase intransponível.
Nos círculos próximos a Marina,
comenta-se que ela não aceitará a alternativa de concorrer às eleições por uma
legenda de negócios. Numa hipótese viciosa, o gesto de desistência configuraria
uma rendição disfarçada por discursos de indignação - e Marina contrataria um
despachante astuto para tornar viável a Rede no horizonte de 2018. Por outro
lado, na hipótese virtuosa, seria um ato de bravura e resistência: o ponto de
partida para uma "anticandidatura" de mobilização da sociedade contra
a estatização dos partidos e a privatização do Estado.
Estou sonhando?
*Demétrio Magnoli é sociólogo e
doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@uol.com.br
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