quinta-feira, 24 de outubro de 2013

“Os olhos rasos dágua da cidade de Manaus”

Ellza Souza (*)

Fiquei encantada mais uma vez ao visitar as nascentes da rua Barcelos. É mágico observar naquele lugar tão urbano, água de fonte, cacimba, olho dágua, poço ou qualquer denominação parecida. A água ali, ainda escorre mansamente pelo terreno, límpida “e doce”, como definiu Hamilton Leão do Instituto Amazônico de Cidadania-IACI, ao prová-la. Os moradores dizem que é mineral comprovada por exames.

Ao chegar no beco, uma senhora na cadeira de rodas, ajudada por sua filha,  tentavam entrar para o local onde ficam as nascentes. Tratava-se de dona Marina de Deus Benício, 93 anos e Wanda, 62. Reconheci a moradora do beco com quem conversei longamente em junho desse ano. Desci com ela até sua casa. Segundo Wanda, sua mãe está assim porque levou uma queda. “Estou muito esquecida”, avisa Marina de Deus.

O local está do mesmo jeitinho da última vez que estive ali. Um belo vale ou como os moradores antigos o chamavam, “buraco”. “Era só mato”, relembra a esquecida Marina. “Onde cavar tem água”, diz. Ela me contou na primeira conversa que o dono das terras que iam até a rua Apurinã era seu sogro, o paraibano João Benício de Figueiredo que mais tarde deu para os filhos, um deles o marido de dona Marina, o Severino, e loteou e vendeu o restante. Ao entrar no fundo daquele vale têm-se uma boa impressão com aquelas árvores e palmeiras por todo o barranco que impedem a queda da terra. “Nunca caiu terra do barranco” dizem moradores da área. Ainda fizeram duas palafitas numa parte desse íngreme barranco mas brevemente serão demolidas. No alto do barranco fica a avenida Ayrão. Existe ali uma agradável ventilação.

Na casinha azul de madeira na entrada da passagem para as nascentes mora há 4 anos o Ney. Chama a atenção o canteiro de ervas medicinais a frente da casa regadas com carinho por seu proprietário que  conhece a utilidade de cada uma delas. Tem mastruz, hortelãzinho, hortelã, malvarisco, boldo do Chile, cidreira e outras plantas. Ney disse que vai reformar a casa e fazer de alvenaria.

Na mesma rua tem uma outra entrada logo em seguida a essa primeira,  onde me deparei com uma lavadeira de roupa numa cacimba. “Àgua mineral” reforçou a moradora. E “doce” conforme a degustação do Hamilton. Ao lado dessa fonte tem uma outra cercada por paredes de tijolos para servir de banheiro aos moradores do local. No segundo beco tem mais casas construídas de alvenaria e muitos cachorrinhos se amontoam no local. O cenário não é tão agradável quanto o da outra entrada. Mas também foi um lugar de muitas fontes apesar de que vi apenas essas duas. Existe lixo no lugar.

De um lado da rua Barcelos fica um resquício de paraíso com poucas nascentes preservadas e um barranco verdejante como pano de fundo das poucas casas construídas no fundo desse vale. Buraco, mato, assim os moradores se referem a natureza ainda esplendorosa daquele lugar. Esse desconhecimento é que levou o proprietário Severino Benício, marido de dona Marina, já falecido, a aterrar o pequeno igarapé que ali escorria em meio a borbulhantes olhos dágua. Dona Marina confessa: “Ele aterrou muitos olhos dágua e derrubou árvores. A nossa casa mesmo foi construída em cima de uma dessas nascentes”. Mesmo assim foi ele e seus descendentes que mantiveram preservada a beleza e a vida de algumas dessas fontes nas proximidades do centro de Manaus. Sem tanta poluição e lixo.

O incrível é que do outro lado da mesma rua, o igarapé ainda existe mas as circunstâncias são outras. Logo de cara sentimos o mau cheiro dando as boas vindas. O lixo como em toda beira de igarapé, engata-se pra todo lado da terra e daquele líquido pastoso e fedorento que um dia foi um riozinho limpo. As pessoas circulam com crianças calmamente como se os detritos fossem ali jogados por seres de outros planetas. O odor horroroso que atinge as narinas de quem chega parece causar aparições pois houve quem visse peixes no rêgo.

A intervenção planejada pelo Prosamim ainda não aconteceu. A idéia para aquele lugar é um parque, o Parque das Águas. Pelo título o que se espera é a preservação daqueles mananciais, daqueles olhos vivos de água cristalina que com o avanço humano ficaram sob as casas construídas. De um lado, no vale das nascentes, não observamos lixo em profusão jogado ao relento. Como disse dona Marina todos levam seu lixo embalado “lá pra cima” (a rua principal onde passa o carro coletor).

A mesma área urbana. Diferentes maneiras de cuidar. De um lado uma certa liderança que adotou boas regras de convivência com vizinhos e com o meio ambiente o que fez com que a intervenção humana não degradasse totalmente muitos olhos dágua ou nascentes de igarapés como o Igarapé de Manaus, não deixando acontecer invasões predatórias no local. Do outro lado com as invasões e sem uma liderança como a de João Benício é cada um por si e o resultado é um cenário de destruição ambiental e social.

Ao conhecer esse lugar vi esperança de salvação para a natureza e para o ser humano na minha cidade. Por onde passei até agora em Manaus observo que os olhos dágua fazem parte de uma história esquecida e enterrada. É mais fácil afogar essas fontes de água cristalina e construir casas, pátios, ruas asfaltadas, calçadas. Daí resulta uma cidade cada vez mais quente, feia, desurbanizada, desplanejada, desumana. Entendo que precisamos de lugar para morar mas para isso existe o planejamento e a urbanização visando a harmonia, a beleza, a qualidade de vida, a natureza integrada ao nosso cotidiano. Projeto habitacional que não leva em conta esses critérios deve, isso sim, ser imediatamente aterrado e esquecido.

Precisamos de parques, de bosques, de árvores, de fruteiras, de lugares de convivência, de sombra e de muita água fresca. Afinal estamos na Amazônia. Precisamos sim de nossos olhos dágua de volta. Enquanto a água tá tão difícil por aí, aqui temos demais e a transformamos em pura lama onde até os passarinhos sem árvores têm que saciar a sua sede. Aquele vale deve ser preservado. As nascentes e a vegetação do barranco devem ser mantidos até como uma atração turística. Ao saírem os moradores esperamos que aflorem os olhos dágua daquele lugar e mais árvores sejam plantadas para acolhimento de passarinhos e demais espécies de uma pequena floresta. Olhar o verde da mata, ouvir os trinados das aves, o barulho do vento nas folhas, o borbulhar da água jorrando, isso é tudo que precisamos para acalmar o estresse da vida moderna. Pequenas placas esclarecedoras também são importantes num bosque como esse. “Em silêncio observe a natureza. Estamos no paraíso apesar da cidade ao redor. Escute o bem te vi, o sabiá, o canário, o periquito. Escute a vida e saia daqui em paz”, imagino a placa na entrada do parque das águas.

É com os olhos rasos dágua que observo mais um aniversário de Manaus com as árvores sendo decepadas todos os dias, os igarapés sendo aterrados, os barrancos sendo desmanchados, a história sendo esquecida. Não tomamos mais refresco de buriti agora suco só encaixotado. E o povo acha isso o máximo da modernidade. E tome embalagem pra todo lado. Merecemos o que vier pela frente.

(*) É escritora, jornalista e articulista do NCPAM/UFAM.

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