“Os olhos rasos dágua da cidade de Manaus”
Ellza
Souza (*)
Fiquei encantada mais uma vez ao visitar as nascentes da rua Barcelos. É
mágico observar naquele lugar tão urbano, água de fonte, cacimba, olho dágua,
poço ou qualquer denominação parecida. A água ali, ainda escorre mansamente
pelo terreno, límpida “e doce”, como definiu Hamilton Leão do Instituto
Amazônico de Cidadania-IACI, ao prová-la. Os moradores dizem que é mineral
comprovada por exames.
Ao chegar no beco, uma senhora na
cadeira de rodas, ajudada por sua filha, tentavam entrar para o local
onde ficam as nascentes. Tratava-se de dona Marina de Deus Benício, 93 anos e
Wanda, 62. Reconheci a moradora do beco com quem conversei longamente em junho
desse ano. Desci com ela até sua casa. Segundo Wanda, sua mãe está assim porque
levou uma queda. “Estou muito esquecida”, avisa Marina de Deus.
O local está do mesmo jeitinho da
última vez que estive ali. Um belo vale ou como os moradores antigos o
chamavam, “buraco”. “Era só mato”, relembra a esquecida Marina. “Onde cavar tem
água”, diz. Ela me contou na primeira conversa que o dono das terras que iam
até a rua Apurinã era seu sogro, o paraibano João Benício de Figueiredo que
mais tarde deu para os filhos, um deles o marido de dona Marina, o Severino, e
loteou e vendeu o restante. Ao entrar no fundo daquele vale têm-se uma boa
impressão com aquelas árvores e palmeiras por todo o barranco que impedem a
queda da terra. “Nunca caiu terra do barranco” dizem moradores da área. Ainda
fizeram duas palafitas numa parte desse íngreme barranco mas brevemente serão
demolidas. No alto do barranco fica a avenida Ayrão. Existe ali uma agradável
ventilação.
Na casinha azul de madeira na entrada
da passagem para as nascentes mora há 4 anos o Ney. Chama a atenção o canteiro
de ervas medicinais a frente da casa regadas com carinho por seu proprietário
que conhece a utilidade de cada uma delas. Tem mastruz, hortelãzinho,
hortelã, malvarisco, boldo do Chile, cidreira e outras plantas. Ney disse que
vai reformar a casa e fazer de alvenaria.
Na mesma rua tem uma outra entrada logo
em seguida a essa primeira, onde me deparei com uma lavadeira de roupa
numa cacimba. “Àgua mineral” reforçou a moradora. E “doce” conforme a
degustação do Hamilton. Ao lado dessa fonte tem uma outra cercada por paredes
de tijolos para servir de banheiro aos moradores do local. No segundo beco tem
mais casas construídas de alvenaria e muitos cachorrinhos se amontoam no local.
O cenário não é tão agradável quanto o da outra entrada. Mas também foi um
lugar de muitas fontes apesar de que vi apenas essas duas. Existe lixo no
lugar.
De um lado da rua Barcelos fica um
resquício de paraíso com poucas nascentes preservadas e um barranco verdejante
como pano de fundo das poucas casas construídas no fundo desse vale. Buraco,
mato, assim os moradores se referem a natureza ainda esplendorosa daquele lugar.
Esse desconhecimento é que levou o proprietário Severino Benício, marido de
dona Marina, já falecido, a aterrar o pequeno igarapé que ali escorria em meio
a borbulhantes olhos dágua. Dona Marina confessa: “Ele aterrou muitos olhos
dágua e derrubou árvores. A nossa casa mesmo foi construída em cima de uma
dessas nascentes”. Mesmo assim foi ele e seus descendentes que mantiveram
preservada a beleza e a vida de algumas dessas fontes nas proximidades do
centro de Manaus. Sem tanta poluição e lixo.
O incrível é que do outro lado da mesma
rua, o igarapé ainda existe mas as circunstâncias são outras. Logo de cara
sentimos o mau cheiro dando as boas vindas. O lixo como em toda beira de
igarapé, engata-se pra todo lado da terra e daquele líquido pastoso e fedorento
que um dia foi um riozinho limpo. As pessoas circulam com crianças calmamente
como se os detritos fossem ali jogados por seres de outros planetas. O odor
horroroso que atinge as narinas de quem chega parece causar aparições pois
houve quem visse peixes no rêgo.
A intervenção planejada pelo Prosamim
ainda não aconteceu. A idéia para aquele lugar é um parque, o Parque das Águas.
Pelo título o que se espera é a preservação daqueles mananciais, daqueles olhos
vivos de água cristalina que com o avanço humano ficaram sob as casas
construídas. De um lado, no vale das nascentes, não observamos lixo em profusão
jogado ao relento. Como disse dona Marina todos levam seu lixo embalado “lá pra
cima” (a rua principal onde passa o carro coletor).
A mesma área urbana. Diferentes
maneiras de cuidar. De um lado uma certa liderança que adotou boas regras de
convivência com vizinhos e com o meio ambiente o que fez com que a intervenção
humana não degradasse totalmente muitos olhos dágua ou nascentes de igarapés
como o Igarapé de Manaus, não deixando acontecer invasões predatórias no local.
Do outro lado com as invasões e sem uma liderança como a de João Benício é cada
um por si e o resultado é um cenário de destruição ambiental e social.
Ao conhecer esse lugar vi esperança de
salvação para a natureza e para o ser humano na minha cidade. Por onde passei
até agora em Manaus observo que os olhos dágua fazem parte de uma história
esquecida e enterrada. É mais fácil afogar essas fontes de água cristalina e
construir casas, pátios, ruas asfaltadas, calçadas. Daí resulta uma cidade cada
vez mais quente, feia, desurbanizada, desplanejada, desumana. Entendo que
precisamos de lugar para morar mas para isso existe o planejamento e a
urbanização visando a harmonia, a beleza, a qualidade de vida, a natureza
integrada ao nosso cotidiano. Projeto habitacional que não leva em conta esses
critérios deve, isso sim, ser imediatamente aterrado e esquecido.
Precisamos de parques, de bosques, de
árvores, de fruteiras, de lugares de convivência, de sombra e de muita água
fresca. Afinal estamos na Amazônia. Precisamos sim de nossos olhos dágua de
volta. Enquanto a água tá tão difícil por aí, aqui temos demais e a
transformamos em pura lama onde até os passarinhos sem árvores têm que saciar a
sua sede. Aquele vale deve ser preservado. As nascentes e a vegetação do
barranco devem ser mantidos até como uma atração turística. Ao saírem os
moradores esperamos que aflorem os olhos dágua daquele lugar e mais árvores
sejam plantadas para acolhimento de passarinhos e demais espécies de uma
pequena floresta. Olhar o verde da mata, ouvir os trinados das aves, o barulho
do vento nas folhas, o borbulhar da água jorrando, isso é tudo que precisamos
para acalmar o estresse da vida moderna. Pequenas placas esclarecedoras também
são importantes num bosque como esse. “Em silêncio observe a natureza. Estamos
no paraíso apesar da cidade ao redor. Escute o bem te vi, o sabiá, o canário, o
periquito. Escute a vida e saia daqui em paz”, imagino a placa na entrada do parque
das águas.
É com os olhos rasos dágua que observo
mais um aniversário de Manaus com as árvores sendo decepadas todos os dias, os
igarapés sendo aterrados, os barrancos sendo desmanchados, a história sendo
esquecida. Não tomamos mais refresco de buriti agora suco só encaixotado. E o
povo acha isso o máximo da modernidade. E tome embalagem pra todo lado.
Merecemos o que vier pela frente.
(*) É escritora, jornalista e articulista do NCPAM/UFAM.
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