Um passo à frente
Sete anos após o escândalo do
mensalão ter-se tornado público e após quatro meses e 49 sessões plenárias
dedicadas ao julgamento da Ação Penal 470, o STF definiu as penas a serem
cumpridas pelos 25 réus condenados. Há questões importantes ainda pendentes de
decisão, mas a conclusão da complexa etapa da chamada dosimetria das penas pode
estar inscrevendo na História do Brasil o marco inaugural de uma nova era - o
fim da ancestral impunidade dos poderosos. É claro que se trata apenas da
abertura de uma perspectiva alvissareira: a de que o efeito pedagógico da
decisão do STF se impregne na consciência da sociedade brasileira, condição
essencial e imprescindível para a efetiva reversão desse processo de corrupção
sistêmica que está na raiz de quase todos os males de que padece a
administração pública no País.
Seria pouco realista, portanto,
imaginar que, a partir da condenação de José Dirceu & Cia., o fim da
impunidade dos corruptos dos altos escalões da República se tenha tornado uma
conquista definitiva da cidadania. E muito menos que a corrupção na
administração pública vá acabar. É fácil imaginar que depois de 8 anos em que
os brasileiros se habituaram a assistir ao primeiro mandatário do País tratar
com indulgência os malfeitores de colarinho branco, permitindo-se, no máximo,
desempenhar o papel do "apunhalado pelas costas", os corruptos
apaniguados tenham se sentido estimulados a atrevimento e ousadia sem
precedentes. Os mais recentes escândalos revelados nos círculos das relações
íntimas de Lula são um deplorável exemplo disso.
Menos mal, assim, que a exemplo do
que já havia feito em seu primeiro ano de mandato, com a ampla
"faxina" ministerial, a presidente Dilma Rousseff tenha afastado de
suas funções, rapidamente, os enredados na trama descoberta pela Polícia
Federal, inclusive a poderosa ex-secretária de José Dirceu e ex-chefe do
gabinete de Lula em São Paulo. Ações desse tipo - na contramão da antiga rotina
de passar a mão na cabeça de "aloprados" - também têm importante
efeito pedagógico.
Outras questões relevantes suscitadas
pelo julgamento do mensalão são, por exemplo, a quebra do
"garantismo", ou seja, a não predominância de aspectos formais da
lei; a conveniência, ou não, da "popularização" dos julgamentos
possibilitada pelas transmissões televisivas; e - assunto que deverá esquentar
na próxima semana - a perda automática, ou não, dos mandatos dos parlamentares
condenados.
As garantias processuais destinadas a
coibir os excessos do poder punitivo do Estado foram integralmente respeitadas,
mas no julgamento da Ação Penal 470 certamente houve um avanço no sentido de
corrigir uma distorção que invariavelmente livrava os poderosos das
consequências de seus atos criminosos. Não fora a aplicação da teoria do
domínio do fato - atacada como antigarantista, o que, de fato, não é -, José
Dirceu e seus cúmplices se teriam eximido da culpa que até as pedras sempre
souberam que carregam.
Quanto à veiculação das sessões
plenárias ao vivo pela TV, levanta-se o argumento de que o peso da exposição
pública é um fator de pressão irresistível a influenciar o comportamento dos
magistrados. Além de subestimar tanto a experiência de vida quanto a
consciência profissional dos ministros, esse argumento não leva em conta o fato
de que é muito mais saudável a pressão pública transparente do que aquela que
eventualmente é movida, à sorrelfa, por interesses nada republicanos.
Finalmente, a questão da perda dos
mandatos. A controvérsia é grande. Estabelece a Constituição que uma condenação
transitada em julgado impõe a perda de direitos políticos. E em seu artigo 55 é
categórica ao estabelecer que "perderá o mandato o deputado ou
senador" que, discrimina o inciso IV, "perder ou tiver suspensos os
direitos políticos". A controvérsia, contudo, surge dos termos do parágrafo
2.º, segundo o qual, no caso, "a perda do mandato será decidida pela
Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria
absoluta (...) assegurada ampla defesa". É difícil imaginar como garantir
mandato eletivo a quem perdeu os direitos políticos. Mas a Constituição, como
se sabe, não é unívoca. E é exatamente para interpretá-la que existe o STF.
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,um-passo-a-frente-,967222,0.htm
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