domingo, 9 de junho de 2013

O caos urbano

Pobre Manaus... perdemos o respeito, porquanto temos assistido a tudo isso com incômoda passividade, distantes de atitudes que possam traduzir o mínimo de indignação frente à destruição da cidade.

Paulo Figueiredo (*)

Manaus tinha uma bela topografia, que foi sendo destruída ao longo dos anos. Seus relevos suaves e igarapés de águas límpidas e puras, cor de caramelo escuro, foram sepultados pela incúria e pela incultura. Na construção da cidade, após a aldeola, um casario característico da arquitetura colonial portuguesa, com suas vias urbanas interligadas pelo projeto de transporte público implantado pelos ingleses. Essas características, com seus palácios históricos ainda existentes, fizeram-na distinta e sedutora, marca que insiste em resistir, pelo menos no coração e na alma de seus filhos e amantes irrenunciáveis, dentre os quais me incluo.

Anda suja e maltratada. Esburacada, uma sucessão imensa de crateras, em vias tobogânicas. Os igarapés, que a cortavam de ponta a ponta e em todos os sentidos, foram soterrados ou transformados em longas faixas de esgoto a céu aberto, enquanto uma horda de predadores invadiam seus espaços para transformá-la num amontoado urbanístico disforme e irreconhecível. E a ação deletéria, presente especialmente no centro velho da cidade, em cada uma de suas ruas e esquinas, encontra autores e responsáveis em todos os níveis sociais, facilmente identificados pelo aventureirismo típico e pela ausência de compromisso com a história de Manaus.

Sem nenhum sentimento saudosista, mas apenas em homenagem às inclinações naturais da cidade, tenho registrado na imprensa a falência da urbe, com sua face e contornos urbanísticos desfigurados. Perdemos a vocação em função da qual sempre existimos, desde os primórdios, com o entupimento de nossas artérias aquáticas, que deram ensejo no passado ao surgimento de um sem número de ‘banhos’ privados e públicos, sítios enriquecidos por riachos, onde cultivávamos a alegria nos finais de semana.

E assim fomos perdendo tudo, nossas ruas antigas e seus paralelepípedos portugueses, as belas fachadas das residências senhoriais, os clubes tradicionais, o Acapulco, os prostíbulos memoráveis, os bondes, a arborização com fileiras intermináveis de benjaminzeiros, e até nossos poucos e conhecidos loucos e cegos, mais do que visíveis, merecedores de todo o nosso desvelo. Perdemos o respeito, porquanto temos assistido a tudo isso com incômoda passividade, distantes de atitudes que possam traduzir o mínimo de indignação frente à destruição da cidade.

Enquanto isso, o Brasil desenvolvido continua insensível em relação ao Estado. Sob a liderança de São Paulo, que no passado ajudamos a construir, durante o período áureo de exportação da borracha, quer retirar a única alternativa econômica que mal ou bem ainda possuímos, sem nos oferecer nada em troca ou como compensação. É o prêmio que recebemos pela ocupação da Amazônia, como soldados de sua conservação e em defesa de sua integração permanente ao conjunto da Nação brasileira.

Não plantamos uma grande civilização no gigantesco Amazonas, passados mais de quatro séculos após a navegação inaugural do explorador espanhol Vicente Pinzón, que o designou de “Río Santa María del Mar Dulce”.  Continuamos patinando, mais precisamente, na confluência com o Negro, onde os colonizadores, com os índios, seus primeiros habitantes, edificaram para sempre a nossa Manaus. Não conseguimos nem de longe repetir, ainda que muito modestamente, a notável experiência civilizatória ancorada nos grandes cursos d’água pelo mundo afora, como ocorreu no Tigre e no Eufrates, no Nilo, no Amarelo e no Indo, presentes na Suméria (do grego: entre rios) – Mesopotâmia, no Nilo, na China e na Índia.

Mas é o que temos e ainda assim é tratado com histórica indiferença, como evidenciam as muitas casas construídas de costas para o rio, fato que começamos a corrigir nas últimas décadas. Mais grave é que a falta de educação, de informação e de respeito ao meio ambiente fazem com que os poucos igarapés que restam e a orla do Rio Negro sejam transformados em grandes lixeiras urbanas, que comprometem o nosso ecossistema fluvial. Insistimos em desconhecer que a existência só é possível pela água, pelo rio, que comanda a vida, como nos ensinou Leandro Tocantins, sem a qual não seria possível iniciarmos a grande aventura do ser humano sobre a terra.

Imergindo na realidade atual, a Copa do Mundo bate à porta de Manaus. E, com exceção da discutível Arena da Amazônia e de seus preços estratosféricos, tudo indica que esquecemos de vez os demais e tão decantados projetos do que hoje chamam de mobilidade urbana, espécie de eufemismo com o qual passaram a designar o transporte público e o privado. Não se fala mais em BRT (“Bus Rapid Transit”) e Monotrilho. O certo é que, com Copa ou sem Copa, a situação no dia a dia da cidade tornou-se caótica. Não há um horário sequer sem engarrafamentos quilométricos e insuportáveis, com o tráfego obstruído e em cima de um sistema de transporte coletivo deficiente e caro, para não dizer inexistente.

E como ficou fácil fechar a cidade, como o fizeram os mototaxistas no início desta semana, um flagelo a mais no trânsito de Manaus, pobre Manaus. É, não temos dado sorte. Até quando?

(*) É amazonense da gema, de Itacoatiara, advogado e articulista do Diário do Amazonas.

Fonte: http://blogs.d24am.com/artigos/2013/06/08/o-caos-urbano/ 

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