EM
DEFESA DOS VÂNDALOS
É (para
temperar o texto ouça Gonzaguinha). É isso mesmo que você leu! Cada um defende sua
tribo. Esse locutor que vos fala já foi chamado de vândalo, sofreu prisão (foto) e respondeu
processo por danos ao patrimônio público, numa passeata na Rua Uruguaiana, no
Rio. Mas isso foi no século passado, em 1968. Acontece que agora muitos
manifestantes, que podiam ser meus netos, são presos sob a mesma acusação com
ou sem culpa no cartório. Do Oiapoque ao Chuí, a mídia jura que os
vândalos tomam contam do país.
"VÂNDALOS PROVOCAM DESTRUIÇÃO EM
MINAS" berra O Globo (27/6) em manchete de oito colunas.
"MORADORES IMPROVISAM 'MILÍCIA' CONTRA VÂNDALOS NO RS" - grita a Folha
de SP (29/6), informando em outro título: "NO RIO, 'PITBOYS' SÃO
SUSPEITOS DE ATAQUES A CONCESSIONÁRIAS". Alguns apresentadores de
telejornais chegam a encher a boca, saboreando cada letra da palavra
Afinal, quem são os vândalos? Depende
do momento, do lugar e de quem nomeia. Originalmente era uma tribo que falava
vândalo, uma língua germânica, e que num conflito armado com o Império Romano
saqueou Roma, destruindo muitas obras de arte. Por extensão, no séc. XVIII, na
França, foram assim chamados os revolucionários que na luta contra o feudalismo
e a monarquia arrasaram monumentos e prédios públicos. Na Avenida Paulista, há
quinze dias, vândalo era todo e qualquer manifestante que protestava
pacificamente. Hoje, nas capitais brasileiras, são grupos considerados pela
polícia como baderneiros.
Muito antes disso, Roma havia sido
incendiada, mas não pelos vândalos. Durante dias o fogo consumiu a cidade,
transformando o Templo de Júpiter num monte de cinzas. Até mesmo os que
suspeitavam que o incendiário era o imperador Nero jamais usaram a palavra
vândalo para designá-lo.
De Nero aos dias de hoje, ninguém que
vandalizou em nome do Estado foi estigmatizado. O presidente George Bush também
nunca foi chamado de vândalo, apesar de ter indignado a comunidade
internacional quando comandou o saqueio no Iraque e destruiu, entre outros, o
Museu de Arqueologia de Bagdá, sacrificando milhares de vidas humanas, inclusive
de civis.
Wandali conquisiti
Ou seja, parece que bárbaros - como
queria Montaigne - são sempre os outros, os derrotados, porque quem ganha tem o
poder de nomear, de batizar, de dar nome aos bois, de classificar e de dizer
quem é e quem não é vândalo. E no séc. VIII, os vândalos foram definitivamente
derrotados: Wandali conquisiti sunt. Não sobrou nenhum para contar
a história. Diz um provérbio da Nigéria: "enquanto os leões não tiverem
seus próprios historiadores, as histórias de caça sempre glorificarão o
caçador".
Um caçador de São Paulo, governador
Geraldo Alckmin, com aquela cara de babaca - desculpem baixar o nível, mas que
ele tem cara de babaca tem - e o prefeito da capital, Fernando Haddad - que não
tinha, mas está se esforçando pra ter - justificaram inicialmente a
repressão policial. Naquele momento, para eles, quem protestava contra o
aumento do preço da passagem de ônibus era vândalo. As manifestações cresceram,
o governo recuou e finalmente reconheceu que nem todo manifestante era vândalo.
No Rio de Janeiro, o governador Cabral,
com cara de Alckmin, declarou que a Polícia Civil havia identificado pelo menos
cinco grupos que "vem cometendo atos de vandalismo, lesões
corporais e furtos". Na lista, estão "os anarcopunks, os
militantes de partidos políticos mais radicais (não mencionou quais), os
brigões oriundos de torcidas de futebol, os neonazistas e os bandidos de
facções criminosas". Faltou nomear mais dois grupos: a própria
polícia que promoveu quebra-quebra e os revoltados, que estão putos da vida.
É o que os franceses chamam de ras-le-bol,
ou seja, estar de saco cheio. As pessoas não aguentam mais engarrafamentos
infernais, transporte coletivo precário, violência policial, insegurança,
hospitais recém-inaugurados que não funcionam ou que desabam como no Ceará,
estádios caindo como o Engenhão, obras superfaturadas, serviços de saúde e
educação que atentam contra a dignidade humana, justiça lenta, enfim a
impunidade dos vândalos de colarinho branco. Desconfiam do governo, do
judiciário, do congresso, dos partidos políticos e não consideram as oposições
alternativa de poder.
Alguns colunistas, assustados, de um
lado com a rejeição aos partidos políticos e de outro com o quebra-quebra,
tacharam esses manifestantes de vândalos, neonazistas, radicalóides sociopatas,
pitboys de passeata ou, como quer Arnaldo Jabor, "vagabundos, punks e
marginais que se aproveitam sabendo que a polícia não pode matar". Não
querem entender que as manifestações são sintomas da crise de
representatividade na qual está mergulhado o país.
As evidências apontam muita gente boa
entre os que inicialmente promoveram o quebra-quebra e que simplesmente estavam
emputecidos. Usaram o modelo de linguagem da própria polícia que espalha terror
e medo em comunidades carentes, como vem fazendo, no Rio, o Batalhão de
Operações Especiais, que quebra, mata, esfola e saqueia.
Fioforum infra
Tem forte carga simbólica o fato de que
a violência tenha atingido ônibus, pontos de ônibus, relógios públicos,
radares, semáforos e equipamentos de apoio ao tráfego que foram destruídos,
assim como alguns monumentos e prédios públicos pichados e depredados. Não se
trata de defender o vandalismo, porque quem vai pagar a conta somos todos nós,
mas de buscar as razões que levam pessoas a manifestarem assim sua indignação.
No século XIX, condições subumanas de
trabalho, jornadas prolongadas, salários miseráveis, levaram trabalhadores
ingleses da indústria nascente, entre eles mulheres e crianças, a destruírem
máquinas e equipamentos industriais, num movimento que ficou conhecido como ludismo em
referência a Ned Ludlam, líder do movimento. Karl Marx, que criticou o
quebra-quebra, buscou ver a semente revolucionária que ele continha e que foi
canalizado para a reivindicação de reformas sociais e políticas e acabou
originando novos métodos de luta, com o fortalecimento dos sindicatos.
Esses movimentos sempre trazem
mudanças. As cinco pessoas assassinadas no Morro do Borel é que deram origem,
em 2004, à Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, que está
convocando agora uma manifestação pacífica neste domingo, durante a final da
Copa das Confederações.
- "É muito difícil organizar uma
manifestação pacífica na rua, no Brasil, porque o Estado é violento" disse
a Folha de São Paulo Caio Martins, 19 anos, estudante de
Historia da USP, que milita no Movimento Passe Livre (MPL) desde 2011. Ele
condenou a polícia que na primeira passeata pacífica lançou uma bomba de efeito
moral decepando um dos dedos de uma manifestante.
É evidente que ninguém pode aceitar a
destruição do patrimônio ou a agressão às pessoas, sejam elas promovidas pela
polícia ou por manifestantes. No entanto, muitas vezes, o aparelho policial
busca bode expiatório. Em 1968, num primeiro momento, fui acusado de ter
incendiado uma viatura na Rua Uruguaiana. No final, acabaram me processando por
haver rasgado a farda de um policial. Nenhuma das acusações era verdadeira.
Quando a Polícia pediu ajuda ao MPL
para identificar os vândalos, seus integrantes se recusaram. Poderiam muito
bem, reconhecendo que Wandali conquisiti sunt, citar um dos reis
vândalos, não sei se Hilderico ou Gunderico: "Fioforum plus infra
est" , ou como diria Cícero no senado romano: O buraco é mais
embaixo.
Abaixo o vandalismo! Vivam os vândalos!
(*) É jornalista, historiador, professor e articulista do
Diário do Amazonas .
Nenhum comentário:
Postar um comentário