143 ANOS DA GLORIOSA COMUNA DE PARIS
Aos
18 de Março de 1871, os trabalhadores de Paris assaltaram os céus, escreveram
uma página rubra na História e pagaram por isto um alto preço. Em sua memória,
o poeta rebelde Pottier escreveu os imortais versos da "Internacional.
Honremos a memória daqueles bravos homens e mulheres. Aonde lutar o
proletariado, a Comuna ainda vive!
Primeira
experiência de ditadura do proletariado na história, a Comuna foi um governo
revolucionário da classe operária, criado pela revolução proletária em Paris.
Durou 72 dias: de 18 de Março a 28 de Maio de 1871.
A Comuna de Paris foi resultado da luta da classe operária francesa e
internacional contra a dominação política da burguesia. A causa direta do
surgimento da Comuna de Paris consistiu no agravamento das contradições de
classe entre o proletariado e a burguesia decorrente da dura derrota sofrida
pela França na guerra contra a Prússia (1870-1871). O empenho do governo
reacionário de Thiers faz recair o fardo dos gastos da guerra perdida
sobre os amplos setores da população originando um poderoso movimento das forças
democráticas.
No princípio exerceu o poder um governo revolucionário provisório chamado Comitê Central da Guarda Nacional, ou seja, um órgão eleito pelos batalhões da milícia popular que haviam se formado para defender a cidade contra os exércitos prussianos. Porém em 28 de março o poder passou às mãos da Assembleia de Deputados do Povo: a Comuna.
O papel governante cabia aos
operários, muitos dos quais eram membros da Primeira Internacional. Foram
proclamadas, também, Comunas em Lion, Marselha, Toulouse e algumas outras
cidades que, entretanto, existiram por pouco tempo.
A Comuna de Paris destruiu a
máquina estatal burguesa (liquidou o exército permanente e a polícia, separou a
Igreja do Estado, etc.) e criou um Estado de novo tipo, que foi a primeira
forma de ditadura do proletariado da história. O novo aparato do poder se
organizava de acordo com os princípios democráticos: a elegibilidade,
responsabilidade e a demissibilidade de todos os funcionários e o caráter
colegiado da direção.
Para dirigir os assuntos
públicos foram criados comissões eletivas que substituíram aos antigos ministérios:
comissão do trabalho, da indústria e comércio, de serviços públicos, de
alimentos, da fazenda, da segurança pública, da justiça, da educação, de
relações exteriores e militar. O trabalho das comissões era coordenado por uma
Comissão Executiva, que posteriormente incluiu todos os presidentes de todas as
comissões. Essa Comissão Executiva foi substituída, em 1 de maio, pelo Comitê
de Salvação Pública, órgão executivo superior da Comuna de Paris. Cada membro
da Comuna se integrou em uma comissão conservando ao mesmo tempo os vínculos
com seu distrito eleitoral e reunindo-se ali com os eleitores.
Foi desmantelado o velho aparato estatal, se expulsou os burocratas e os altos
funcionários; se reduziu os vencimentos e o salário dos trabalhadores do
aparato da Comuna e de seus membros foram fixados proporcionalmente ao salário
médio de um operário. Os juízes reacionários foram substituídos por juízes
eleitos. Foram demolidos os monumentos do militarismo e da reação. Os nomes das
ruas foram substituídos para eliminar os nomes de figuras odiosas. Foi
eliminada a ajuda financeira do Estado à Igreja.
Como governo da classe
operária, a Comuna de Paris, exercia seu poder em benefício do povo. Mostrou
grande cuidado pelo melhoramento da situação material das grandes massas: fixou
a remuneração mínima do trabalho, foram tomadas medidas de proteção do trabalho
e de luta contra o desemprego, de melhoramento das condições de moradia e do
abastecimento da população. A Comuna preparou a reforma escolar, fundamentada
no princípio da educação geral, gratuita, obrigatória, laica e universal.
Tiveram extraordinária importância os decretos da Comuna sobre a organização de
cooperativas de produção nas empresas abandonadas por seus donos, a implantação
do controle operário, a elegibilidade dos dirigentes de algumas empresas
estatais. Na sua política exterior, a Comuna se guiou pelo empenho de
estabelecer a paz e a amizade entre os povos.
As
principais causas da derrota da Comuna de Paris foram:
1) A inexistência das
condições econômico-sociais necessárias a insuficiente maturidade da classe
operária, que não possuía seu próprio partido político aparelhado com a
doutrina da luta de classes do proletariado;
2) A heterogeneidade da composição política da Comuna;
3) A ausência de aliança combativa entre a classe operária e o campesinato;
4) A isolamento de Paris das outras zonas do país em conseqüência do bloqueio da cidade pelos versalheses e as tropas prussianas de ocupação.
2) A heterogeneidade da composição política da Comuna;
3) A ausência de aliança combativa entre a classe operária e o campesinato;
4) A isolamento de Paris das outras zonas do país em conseqüência do bloqueio da cidade pelos versalheses e as tropas prussianas de ocupação.
O breve período de existência da Comuna, seus erros táticos e sua derrota não
reduzem a sua importância na história do movimento de libertação do
proletariado. A experiência da Comuna e seus ensinamentos instrutivos
desempenharam importante papel no desenvolvimento da teoria marxista-leninista,
na história do movimento operário internacional, na preparação e realização da
Grande Revolução Socialista de Outubro, com uma série de postulados
importantes: confirmou a necessidade da destruição revolucionária do poder dos
exploradores e da instauração da ditadura do proletariado. A impossibilidade -
nas condições de então - de tomar o poder sem insurreição armada. Demonstrou
que a classe operária não pode limitar-se a tomar em suas mãos e por em marcha
a velha máquina estatal, mas que deve acabar com ela e substituí-la por uma
nova.
Os ensinamentos da Comuna de
Paris demonstraram a necessidade de defender com as armas as conquistas da
revolução, a necessidade da tática ofensiva na guerra revolucionária, a
inadmissibilidade de se mostrar debilidade e ingenuidade frente aos inimigos.
A Comuna dos Trabalhadores Armando
Boito Jr.[1]
A Comuna de Paris de
1871 foi o poder revolucionário que governou aquela cidade durante o curto
período de 18 de março a 28 de maio daquele ano. Apesar de ter durado apenas 72
dias, a Comuna é um episódio muito importante e discutido.
No simpósio que o Cemarx
(Centro de Estudos Marxistas do Ifch), e a CDC (Coordenadoria de
Desenvolvimento Cultural) realizaram no mês de maio, em comemoração aos 130
anos da Comuna de Paris, diversos aspectos relativos àquele episódio e às suas
conseqüências foram discutidos. Um tema, contudo, interessou sobremaneira os
participantes. Refiro-me à discussão mais geral sobre a natureza da Comuna de
Paris, discussão que é, ao mesmo tempo, teórica, historiográfica e política.
Eco do século XVIII ou
prenúncio do século XX?
A tradição socialista
apresentou a Comuna de Paris como o primeiro governo operário da história. Essa
caracterização fora feita pelo próprio Karl Marx no calor dos acontecimentos,
em textos reunidos posteriormente num livro que se tornou célebre intitulado A
Guerra Civil na França. Marx era teórico e dirigente da Associação
Internacional dos Trabalhadores (AIT), cuja seção francesa teve papel destacado
na revolução e no governo da Comuna de Paris. Não se pode ignorar o fato de que
a caracterização da Comuna como um governo operário tem conseqüências
políticas. Nas ciências humanas, é possível ser objetivo, mas não é possível
ser neutro. As conseqüências da tese de Marx são claras. Se a Comuna foi o
primeiro governo operário, isso pode significar que, no final do século XIX, a
classe operária seria uma classe social ascendente?, teria demonstrado ter
condições de elaborar um programa político próprio, organizar-se em torno dele,
e assumir o governo da capital do mundo?. É compreensível que essa análise viesse
a receber boa acolhida no movimento socialista.
Em suma, podemos dizer um século depois, na década de 1960, quando se começa a desenvolver uma outra caracterização da Comuna de Paris. O historiador francês Jacques Roguerie, pesquisando os processos movidos pelas forças vitoriosas contra os communards sobreviventes, passou a sustentar a tese de que a revolução e o governo da Comuna teriam sido o último capítulo das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, e não o primeiro capítulo de um processo emergente de revolução operária. Essa tese empolgou o meio acadêmico; ela indicava o caminho para desconstruir o mito socialista da Comuna. Surgiu o debate: Comuna-crepúsculo? ou Comuna-aurora? Negar a natureza operária da Comuna de Paris também tem conseqüências políticas, embora distintas, é claro, das conseqüências políticas da tese anterior. Essa negação significa diminuir, e muito, a presença política da classe operária na Europa do século XIX e lançar dúvidas sobre a capacidade política do operariado. Não há nada de estranho, portanto, no fato de a tese da revolução-crepúsculo? ter sido muito bem aceita entre os liberais.
Em suma, podemos dizer um século depois, na década de 1960, quando se começa a desenvolver uma outra caracterização da Comuna de Paris. O historiador francês Jacques Roguerie, pesquisando os processos movidos pelas forças vitoriosas contra os communards sobreviventes, passou a sustentar a tese de que a revolução e o governo da Comuna teriam sido o último capítulo das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, e não o primeiro capítulo de um processo emergente de revolução operária. Essa tese empolgou o meio acadêmico; ela indicava o caminho para desconstruir o mito socialista da Comuna. Surgiu o debate: Comuna-crepúsculo? ou Comuna-aurora? Negar a natureza operária da Comuna de Paris também tem conseqüências políticas, embora distintas, é claro, das conseqüências políticas da tese anterior. Essa negação significa diminuir, e muito, a presença política da classe operária na Europa do século XIX e lançar dúvidas sobre a capacidade política do operariado. Não há nada de estranho, portanto, no fato de a tese da revolução-crepúsculo? ter sido muito bem aceita entre os liberais.
Estamos sugerindo que cada
qual deve escolher, de acordo com suas preferências políticas, a tese que mais
lhe convém? Seguramente esse não seria um bom procedimento para os
historiadores e cientistas sociais. É necessário ter consciência das
conseqüências políticas de cada tese em presença, dentre outras razões, para
poder controlar os efeitos de nossas preferências políticas na discussão de um
tema que é historiográfico. Pois bem, nós entendemos que a Comuna de Paris foi
sim a primeira experiência de um governo operário e, como tal, uma revolução-aurora?, anunciadora do movimento operário e das revoluções que
iriam mudar a história do século XX. Por que pensamos assim? Porque
consideramos que a análise de Marx resistiu à pesquisa historiográfica
contemporânea.
Insurreição e governo operário.
Os homens e mulheres que
fizeram a Comuna de Paris eram de extração social operária e vinham se
organizando em torno de idéias que tendiam ao socialismo.
Os trabalhadores de Paris da década de 1870 não podem ser assimilados aos artesãos, lojistas e companheiros que compunham o movimento sans-culottes da grande Revolução Francesa de 1789. Dois terços da população economicamente ativa da cidade eram compostos de assalariados e mais da metade dessa mesma população trabalhava na indústria. Grande parte desses assalariados trabalhava em pequenas empresas, mas um contingente significativo já era o típico trabalhador assalariado moderno produzido pela revolução industrial, a construção civil e a metalurgia cresceram muito sob o II Império e funcionavam em padrões capitalistas modernos para a época.
Em 1870, a classe operária parisiense já possuía organizações de massa e idéias próprias. Estava organizada sindicalmente na Federação das Associações Operárias de Paris que reunia então cerca de 40.000 membros. Essa massa operária realizou grandes greves nos anos de 1868, 1869 e 1870. A greve é um método de luta que, por definição, não pode ser usado pelos pequenos proprietários ou pela plebe urbana. Ademais, essa massa operária teve, no ocaso do II Império, a sua escola de socialismo?.
Os trabalhadores de Paris da década de 1870 não podem ser assimilados aos artesãos, lojistas e companheiros que compunham o movimento sans-culottes da grande Revolução Francesa de 1789. Dois terços da população economicamente ativa da cidade eram compostos de assalariados e mais da metade dessa mesma população trabalhava na indústria. Grande parte desses assalariados trabalhava em pequenas empresas, mas um contingente significativo já era o típico trabalhador assalariado moderno produzido pela revolução industrial, a construção civil e a metalurgia cresceram muito sob o II Império e funcionavam em padrões capitalistas modernos para a época.
Em 1870, a classe operária parisiense já possuía organizações de massa e idéias próprias. Estava organizada sindicalmente na Federação das Associações Operárias de Paris que reunia então cerca de 40.000 membros. Essa massa operária realizou grandes greves nos anos de 1868, 1869 e 1870. A greve é um método de luta que, por definição, não pode ser usado pelos pequenos proprietários ou pela plebe urbana. Ademais, essa massa operária teve, no ocaso do II Império, a sua escola de socialismo?.
Os historiadores Alain
Dalotel, Alain Faure e Jean-Claude Freiermuth, no trabalho conjunto Aux
origines de la Commune - le mouvement desenvolvimento réunions publiques à
Paris 1868-1870, usando uma documentação inédita formada por copiosos
relatórios policiais, fizeram um estudo importante e detalhado das reuniões
públicas do período de crise do regime político imperial. Esse estudo mostra
que a oposição operária e popular ao II Império já era forte antes do desastre
da Guerra Franco-Prussiana de 1870. Mostra também que o conteúdo político e
ideológico dessa oposição ia muito além do republicanismo democrático-burguês.
A igualdade sócio-econômica, a eliminação da propriedade privada dos meios de
produção, a instauração da propriedade coletiva e a utilização da ação
revolucionária para alcançar esses objetivos eram temas dominantes nos salões
de reuniões dos bairros populares de Paris. Vê-se que se trata de um programa
coletivista, que deixou para trás o igualitarismo de pequeno proprietário (=
dividir a propriedade privada) típico dos sans-culottes do século XVIII. Esses
salões de reuniões públicas iriam, logo após a queda do II Império em setembro
de 1870, dar origem aos clubes operários e populares, que formariam uma rede de
organizações de massa dos trabalhadores de Paris. Foi essa massa operária que
fez a revolução de 1871.
O perfil sócio-econômico dos
dirigentes de organismos de base da Comuna, dos militantes e dos combatentes
prova a afirmação acima. A presença do trabalhador manual é amplamente
majoritária, sendo que os novos setores tipicamente operários (construção
civil, metalurgia, diaristas sem especialização) têm uma presença bem superior
ao seu peso na população ativa de Paris. Foram presos pelas tropas de Versalhes
mais de 35.000 parisienses que participaram da Comuna. Dentre esses, mais de
5.000 eram operários da construção civil, mais de 4.000 eram diaristas sem
especialização, outros 4.000 eram operários metalúrgicos, e milhares de outros
eram operários de diferentes setores econômicos. Ao todo, cerca de 90% dos
prisioneiros eram de origem operária e popular. Chama atenção a participação
dos trabalhadores que compunham o moderno operariado de então. Os operários da
construção civil, metalúrgicos e diaristas sem especialização representam 39%
dos prisioneiros e 45% do contingente de condenados à deportação. Esse
levantamento foi feito pelo próprio Jacques Rougerie, o historiador que
iniciara a desconstrução do mito socialista da Comuna, quinze anos após ter
lançado seu primeiro livro sobre o tema. Após essa nova pesquisa, Rougerie
reviu, sem o dizer, sua análise anterior da Comuna de Paris. Afirmou, após o
exame dos dados, que a Comuna foi a revolução da Paris do trabalho? (Jacques
Rougerie, La Comunne de 1871, Paris, PUF, 1997, p.102).
Além da predominância nas organizações de massa e nos combates da Comuna, os operários parisienses tiveram um papel de destaque na insurreição e no governo de Paris.
Além da predominância nas organizações de massa e nos combates da Comuna, os operários parisienses tiveram um papel de destaque na insurreição e no governo de Paris.
O órgão que comandou a
insurreição de 18 de março de 1871, dando origem à Comuna de Paris, foi o
Comitê Central da Guarda Nacional. Esse comitê era composto por 38 delegados
eleitos nos bairros de Paris, sendo que 21 desses delegados eram operários;
cerca vinte deles eram filiados à seção francesa da Associação Internacional de
Trabalhadores (AIT) e às Câmaras Sindicais de Paris. O órgão político maior da
Comuna de Paris, o Conselho da Comuna, eleito em 26 de março, oito dias após a
insurreição, também era composto por uma maioria de operários e de filiados à
Associação Internacional dos Trabalhadores e às Câmaras Sindicais. Esse
Conselho contava, nominalmente, com 79 membros, dos quais apenas cerca de 50
compareciam às sessões. Nada menos que 33 dos conselheiros eleitos eram
operários; o restante era de intelectuais, pequenos proprietários e
profissionais liberais. Jacques Roguerie, na obra citada mais acima, calcula
que a maioria do Conselho da Comuna - cerca de 40 de seus membros - pertencia à
AIT e às Câmaras Sindicais. O Conselho da Comuna era um conselho de
trabalhadores. Ao lado do Conselho da Comuna, a assembléia eleita pelos
habitantes de Paris, operava o braço executivo da revolução, as comissões
ministeriais. Nesse organismo, a componente proletária, se não domina como nos
demais, pelo menos é marcante. Logo abaixo das comissões ministeriais, estão os
grandes serviços públicos e de infraestrutura, onde os operários de Paris
também tiveram atuação destacada.
Um governo socialista?
Podemos afirmar, portanto, que a composição social dos combatentes de base e dos dirigentes da Comuna de Paris foi marcadamente operária. Não eram apenas operários. Os profissionais liberais, pequenos proprietários, lojistas e artesãos, que eram muito numerosos na população de Paris, tiveram, como indicamos de passagem, participação importante nos órgãos de governo da Comuna. Aliás, Marx fala em governo essencialmente operário e não em governo operário sem mais. Continuando. Pelos dados apresentados, também é legítimo dizer que os operários estavam forjando uma concepção de mundo anticapitalista na conjuntura da crise do II Império e se valendo da extraordinária experiência revolucionária dos trabalhadores de Paris. Essas duas constatações são fundamentais, tendo em vista a atual operação de desconstrução do mito socialista da Comuna. Mas elas não encerram a questão. Pois resta saber o que foi a política implementada pela Comuna de Paris. Ela foi simplesmente uma política republicana burguesa? Uma política de reformas sociais? Uma política socialista?
Os 'communards' lutaram pela república social, tomaram diversas medidas de proteção ao trabalho e à
população pobre, mas apenas uma que prenunciava uma economia de tipo
socialista: decretaram que toda fábrica abandonada pelo proprietário - fenômeno
comum em tempo de revolução ? ficaria sob controle dos seus operários. Mas isso
é pouco para afirmar que o governo da Comuna foi socialista. O grande
historiador Ernest Labrousse insistiu, num debate entre os historiadores
franceses por ocasião do centenário da Comuna de Paris, num ponto importante:
nenhum documento da Comuna apresenta o socialismo como objetivo de governo.
Karl Marx, cuja tese sobre a natureza operária da Comuna é o motivo de toda
essa discussão historiográfica, escrevendo cerca de dez anos após a Comuna de
Paris, observou, em carta a um correspondente, que a maioria dos dirigentes da
Comuna de Paris não era socialista. Alguns autores afirmam que Marx estaria,
nessa observação, revendo a análise que fizera no já citado Guerra Civil na
França, obra que teria sido escrita num momento de entusiasmo e com objetivos políticos.
Nós pensamos que não se trata disso. Marx afirmou em Guerra Civil na França que
a Comuna foi a primeira experiência de um governo operário, mas não disse que
ela foi um governo socialista. Isso ela não foi - e dificilmente poderia sê-lo.
Não se pode perder de vista um fato elementar: o objetivo imediato da Comuna de Paris foi depor um governo considerado de traição nacional. Por temor ao proletariado de Paris, esse governo aceitara uma paz forçada com a Prússia, paz que restringia a soberania da França e mutilava o seu território. A Comuna tinha pela frente, então, uma tarefa nacional e democrática, que é tarefa típica das revoluções burguesas. Ademais, outras tarefas burguesas contidas como promessa na Revolução de 1789 não tinham sido cumpridas. Exemplos mais importantes são a separação da Igreja e do Estado e a implantação do ensino público, gratuito, obrigatório e laico. O desenvolvimento do princípio da cidadania, criatura típica da revolução burguesa, depende da implementação de medidas como essas. A Comuna tratou de realizar essas duas tarefas. Em resumo, a Comuna tinha de levar adiante as transformações burguesas inacabadas para, como disse Engels, aplainar o terreno para a transformação socialista da velha sociedade. Para essa tarefa de aplainar o terreno foi possível contar com grande parte da pequena burguesia de Paris, dos artistas, dos profissionais liberais e de alguns setores radicalizados do republicanismo burguês. É por isso que, quando Marx apresenta sua caracterização da Comuna de Paris, ele usa a expressão um "governo essencialmente operário", indicando a existência de uma frente popular dominantemente operária no governo da Comuna.
Mas há uma componente
socialista presente na política da Comuna de Paris que é menosprezada pelos
historiadores, inclusive pelos historiadores socialistas. Isso não decorre da
ignorância dos fatos históricos, mas da concepção economicista de socialismo
que ainda vigora entre os analistas. Refiro-me ao tipo de democracia que a
Comuna de Paris estabeleceu: mandato imperativo, revogável pelos eleitores,
eleição para os cargos administrativos do Estado, transferência de tarefas do
Estado para a população trabalhadora organizada, dissolução do Exército
permanente e criação de uma milícia operária, salário dos funcionários públicos
igual ao salário médio dos operários (a Comuna foi o governo mais barato da
história) etc. Essa democracia de tipo novo, que combina democracia
representativa com democracia direta, representa o início de um processo de extinção
do aparelho de Estado, enquanto aparelho especial colocado acima da sociedade.
Ou seja, essa política da Comuna de Paris representa uma socialização do poder
político. Pois bem, essa socialização do poder político é parte integrante e
imprescindível do socialismo, do mesmo modo que a socialização dos meios de
produção. A política da Comuna para a organização do poder era uma política
socialista, embora seus dirigentes não o tivessem declarado e muitos deles,
talvez, não tivessem consciência desse fato.
Vejamos como Marx resume sua tese sobre a Comuna de Paris no livro "Guerra Civil na França". A Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para levar adiante, dentro de si própria, a emancipação econômica do trabalho. (....) A dominação política dos produtores é incompatível com a perpetuação de sua escravidão social. Portanto, a Comuna teria de servir de alavanca para extirpar o cimento econômico sobre o qual descansa a existência das classes e, por conseguinte, a dominação de classe.
Lendo o texto acima, observa-se que se trata de uma forma política que traz "dentro de si própria a emancipação econômica do trabalho". Ou seja, a socialização do poder induz a socialização dos meios de produção. Com o movimento operário exercendo democraticamente o poder (mandato imperativo, dissolução do exército permanente etc.) pode-se afirmar que se cria um desajuste - ou desequilíbrio, ou contradição entre o poder socializado, de um lado, e a economia capitalista baseada na propriedade privada, de outro. Retomando os termos de Marx, a dominação política dos trabalhadores é incompatível com sua escravidão social. Daí ser possível fundamentar teoricamente a análise prospectiva que se segue no raciocínio de Marx: a Comuna (realidade política) teria de servir (tempo futuro) de alavanca para a eliminação da exploração de classe (realidade econômica).
É por isso, e apenas por isso, que é correto repetir, 143 anos depois, a idéia de Marx, segundo a qual a Comuna de Paris, embora não fosse socialista, continha, por ser um governo operário, em si mesma o socialismo. Foi só isso que Marx afirmou. E, visto os debates que essa afirmação ensejou, podemos dizer que só isso já foi afirmar muito.
[1] Prof. do Departamento de Ciência Política da Unicamp e Diretor do Cemarx - Centro de Estudos Marxistas (Ifch-Unicamp).
14 TESES SOBRE A COMUNA DE
PARIS DE 1871
Internacional Situacionista
Internacional Situacionista
1 Há que retomar o
estudo do movimento operário clássico de uma forma desenfeudada e em primeiro
lugar desenfeudada das diversas classes de herdeiros políticos ou
pseudo-teóricos, pois não possuem mais que a herança do seu fracasso. Os êxitos
aparentes deste movimento são os seus fracassos fundamentais (o reformismo ou a
instalação no poder de uma burocracia estatal) e os seus fracassos (a Comuna ou
a revolta das Astúrias) são até agora os seus êxitos abertos, para nós e para o
futuro.
2 A Comuna foi a maior festa do século XIX. Encontra-se nela, na sua base, a impressão de que os insurgentes se converteram em donos da sua própria história, não tanto a nível da decisão política "governamental" como da vida quotidiana, naquela primavera de 1871 (ver o jogo de todos com as armas; o que quer dizer jogar com o poder). É também neste sentido que há que compreender Marx: "a maior medida social da Comuna foi a sua própria existência em actos".
2 A Comuna foi a maior festa do século XIX. Encontra-se nela, na sua base, a impressão de que os insurgentes se converteram em donos da sua própria história, não tanto a nível da decisão política "governamental" como da vida quotidiana, naquela primavera de 1871 (ver o jogo de todos com as armas; o que quer dizer jogar com o poder). É também neste sentido que há que compreender Marx: "a maior medida social da Comuna foi a sua própria existência em actos".
3 A frase de Engels
"Olhai a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado" deve ser
tomada a sério, como base para fazer ver o que não é a ditadura do proletariado
como regime político (as diversas formas de ditadura sobre o proletariado, em
seu nome).
4 Todos souberam fazer
justas críticas sobre as incoerências da Comuna, sobre a manifesta falta de um
aparelho. Mas como pensamos hoje que o problema dos aparelhos políticos é muito
mais complexo do que pretendem os herdeiros abusivos do aparelho de tipo
bolchevique, é tempo de considerar a Comuna não já como um primitivismo revolucionário
de que se ultrapassaram todos os erros, mas como uma experiência positiva na
qual contudo não se encontrou nem realizou toda a verdade..
5 A Comuna não teve chefes,
num período histórico em que a idéia de que era preciso tê-los dominava absolutamente
o mundo operário. Assim se explicam de antemão os seus fracassos e êxitos
paradoxais. Os guias oficiais da Comuna são incompetentes (tomando como
referência o nível de Marx ou de Lenine e inclusive de Blanqui). Mas em
contrapartida os atos "irresponsáveis" desse momento são precisamente
o que há-de reivindicar de imediato o movimento revolucionário do nosso tempo
(mesmo se as circunstâncias quase o limitaram ao estádio destrutivo - o exemplo
mais conhecido é o do insurgente dizendo ao burguês suspeito que afirma que
nunca se meteu em política: "É precisamente por isso que te vou
matar".
6 A importância vital
do povo em armas manifesta-se na prática e nos signos ao longo de todo o
movimento. Em conjunto, não se abdicou a favor de destacamentos especializados
o direito de impor pela força uma vontade comum. O valor exemplar desta
autonomia dos grupos armados tem a sua contrapartida na falta de coordenação,
no facto de não ter levado em nenhum momento ofensivo ou defensivo da luta
contra Versalhes a força popular a um grau de eficácia militar. Mas não se pode
esquecer que a revolução espanhola se perdeu e com ela a própria guerra com a
transformação em "exército republicano". Pode pensar-se que a
contradição entre autonomia e coordenação dependiam muito do nível tecnológico
da época.
7 A Comuna representa até hoje a única realização de um urbanismo revolucionário, atacando in situ os signos petrificados da organização dominante da vida, reconhecendo o espaço social em termos políticos, não crendo que um monumento possa ser inocente. Aqueles que identificam isto com um niilismo de lúmpen-proletariado, com a irresponsabilidade dos incendiários, devem confessar em contrapartida tudo o que consideram como positivo, a conservar, da sociedade dominante (ver-se-á que é quase tudo). "Todo o espaço está já ocupado pelo inimigo" O momento da aparição do urbanismo autêntico será a criação em certas zonas do vazio desta ocupação. O que chamamos construção começa com isso. Pode compreender-se com a ajuda do conceito de campo positivo, cunhado pela Física moderna". (Programa elementar de urbanismo unitário, I.S. n.º 6).
8 A Comuna de Paris foi vencida menos pela força das armas que pela força do hábito. O exemplo prático mais escandaloso foi a recusa em recorrer ao canhão para tomar o Banco de França, quando o dinheiro fazia tanta falta. Enquanto durou o poder da Comuna, a banca permaneceu como um enclave em Paris, defendida por algumas espingardas e pelo mito da propriedade e do roubo. Os restantes hábitos ideológicos foram desastrosos sob todos os pontos de vista (a ressurreição do jacobinismo, a estratégia derrotista das barricadas em memória de 48, etc.)
7 A Comuna representa até hoje a única realização de um urbanismo revolucionário, atacando in situ os signos petrificados da organização dominante da vida, reconhecendo o espaço social em termos políticos, não crendo que um monumento possa ser inocente. Aqueles que identificam isto com um niilismo de lúmpen-proletariado, com a irresponsabilidade dos incendiários, devem confessar em contrapartida tudo o que consideram como positivo, a conservar, da sociedade dominante (ver-se-á que é quase tudo). "Todo o espaço está já ocupado pelo inimigo" O momento da aparição do urbanismo autêntico será a criação em certas zonas do vazio desta ocupação. O que chamamos construção começa com isso. Pode compreender-se com a ajuda do conceito de campo positivo, cunhado pela Física moderna". (Programa elementar de urbanismo unitário, I.S. n.º 6).
8 A Comuna de Paris foi vencida menos pela força das armas que pela força do hábito. O exemplo prático mais escandaloso foi a recusa em recorrer ao canhão para tomar o Banco de França, quando o dinheiro fazia tanta falta. Enquanto durou o poder da Comuna, a banca permaneceu como um enclave em Paris, defendida por algumas espingardas e pelo mito da propriedade e do roubo. Os restantes hábitos ideológicos foram desastrosos sob todos os pontos de vista (a ressurreição do jacobinismo, a estratégia derrotista das barricadas em memória de 48, etc.)
9 A Comuna mostra como
os defensores do velho mundo beneficiam sempre de um modo ou de outro da
cumplicidade dos revolucionários; e sobretudo daqueles que pensam como eles. O
velho mundo conserva deste modo bases (a ideologia, a linguagem, os costumes,
os gostos) no campo dos seus inimigos e serve-se delas para reconquistar o
terreno perdido (só lhe escapa para sempre o pensamento em atos próprio do
proletariado revolucionário: a Bolsa ardeu). A verdadeira "quinta
coluna" está no próprio espírito dos revolucionários.
10 A anedota dos revolucionários chegados nos últimos dias para destruir Notre-Dame e que tropeçam com o batalhão dos artistas da Comuna está cheia de sentido: é um bom exemplo de democracia direta. Mostra também, e sobretudo, os problemas ainda por resolver na perspectiva do poder dos conselhos. Será que estes artistas tinham razão ao defenderem uma catedral em nome de valores estéticos permanentes e, em última instância, em nome do espírito de museu, enquanto outros homens pretendiam aceder à expressão precisamente nesse dia, traduzindo por meio da demolição o seu desafio total a uma sociedade que, na derrota iminente, lançava as suas vidas no nada e no silêncio? Os artistas partidários da Comuna, atuando como especialistas, encontravam-se já em conflito com uma manifestação extrema da luta contra a alienação. Há que censurar aos homens da Comuna não se terem atrevido a responder ao terror totalitário com a totalidade do emprego das suas armas. Tudo leva a crer que se fizeram desaparecer os poetas que nesse momento traduziram a poesia em suspenso da Comuna. A massa de atos irrealizados da Comuna permite que se convertam em "atrocidades" os atos esboçados cuja lembrança foi censurada. A frase "Aqueles que fazem revoluções a meias não fazem senão cavar a própria sepultura", explica também o silêncio de Saint-Just.
11 Os teóricos que reconstituem a história deste movimento, colocando-se do ponto de vista omnisciente de Deus que caracterizava o novelista clássico, mostram facilmente que a Comuna estava objetivamente condenada, que não tinha superação possível. Mas não se pode esquecer que para aqueles que viveram o acontecimento a superação estava ali.
12 A audácia e a criatividade da Comuna não se medem evidentemente em relação à nossa época, mas em relação às banalidades de então na vida política, intelectual e moral; em relação à solidariedade de todas as banalidades no meio das quais surgiu a Comuna. Assim, considerando a solidariedade das banalidades actuais de direita e de esquerda, pode imaginar-se a enorme criatividade que podemos esperar duma explosão idêntica.
13 A guerra social de que a Comuna constitui um momento continua sempre (por muito que tenham mudado algumas condições superficiais). Sobre o trabalho de "tornar conscientes as tendências inconscientes da Comuna" (Engels) ainda não foi dita a última palavra.
10 A anedota dos revolucionários chegados nos últimos dias para destruir Notre-Dame e que tropeçam com o batalhão dos artistas da Comuna está cheia de sentido: é um bom exemplo de democracia direta. Mostra também, e sobretudo, os problemas ainda por resolver na perspectiva do poder dos conselhos. Será que estes artistas tinham razão ao defenderem uma catedral em nome de valores estéticos permanentes e, em última instância, em nome do espírito de museu, enquanto outros homens pretendiam aceder à expressão precisamente nesse dia, traduzindo por meio da demolição o seu desafio total a uma sociedade que, na derrota iminente, lançava as suas vidas no nada e no silêncio? Os artistas partidários da Comuna, atuando como especialistas, encontravam-se já em conflito com uma manifestação extrema da luta contra a alienação. Há que censurar aos homens da Comuna não se terem atrevido a responder ao terror totalitário com a totalidade do emprego das suas armas. Tudo leva a crer que se fizeram desaparecer os poetas que nesse momento traduziram a poesia em suspenso da Comuna. A massa de atos irrealizados da Comuna permite que se convertam em "atrocidades" os atos esboçados cuja lembrança foi censurada. A frase "Aqueles que fazem revoluções a meias não fazem senão cavar a própria sepultura", explica também o silêncio de Saint-Just.
11 Os teóricos que reconstituem a história deste movimento, colocando-se do ponto de vista omnisciente de Deus que caracterizava o novelista clássico, mostram facilmente que a Comuna estava objetivamente condenada, que não tinha superação possível. Mas não se pode esquecer que para aqueles que viveram o acontecimento a superação estava ali.
12 A audácia e a criatividade da Comuna não se medem evidentemente em relação à nossa época, mas em relação às banalidades de então na vida política, intelectual e moral; em relação à solidariedade de todas as banalidades no meio das quais surgiu a Comuna. Assim, considerando a solidariedade das banalidades actuais de direita e de esquerda, pode imaginar-se a enorme criatividade que podemos esperar duma explosão idêntica.
13 A guerra social de que a Comuna constitui um momento continua sempre (por muito que tenham mudado algumas condições superficiais). Sobre o trabalho de "tornar conscientes as tendências inconscientes da Comuna" (Engels) ainda não foi dita a última palavra.
14 Desde há cerca de vinte anos, em França, os cristãos de esquerda e os
stalinistas puseram-se de acordo, recordando a sua frente nacional anti-alemã, para pôr o acento tónico naquilo que houve na Comuna de rasgo
nacionalista, de patriotismo ferido e, para falar claramente, de "povo
francês expressando a sua vontade de ser bem governado" (segundo a
política stalinista actual) e, no fim, lançado no desespero pela fraqueza da
direita burguesa apátrida. Bastaria, para vomitar esta água benta, estudar o
papel dos estrangeiros vindos para combater pela Comuna, que foi antes de mais,
como dizia Marx, a inevitável prova de força a que deveria conduzir toda a
atuação da Europa do "nosso partido" desde 1841.
(In Internationale
Situationiste, n.º 7, Abril de 1962)
Fonte: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2011/03/488605.shtml
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