domingo, 16 de março de 2014

143 ANOS DA GLORIOSA COMUNA DE PARIS

Aos 18 de Março de 1871, os trabalhadores de Paris assaltaram os céus, escreveram uma página rubra na História e pagaram por isto um alto preço. Em sua memória, o poeta rebelde Pottier escreveu os imortais versos da "Internacional. Honremos a memória daqueles bravos homens e mulheres. Aonde lutar o proletariado, a Comuna ainda vive!




Primeira experiência de ditadura do proletariado na história, a Comuna foi um governo revolucionário da classe operária, criado pela revolução proletária em Paris. Durou 72 dias: de 18 de Março a 28 de Maio de 1871.

A Comuna de Paris foi resultado da luta da classe operária francesa e internacional contra a dominação política da burguesia. A causa direta do surgimento da Comuna de Paris consistiu no agravamento das contradições de classe entre o proletariado e a burguesia decorrente da dura derrota sofrida pela França na guerra contra a Prússia (1870-1871). O empenho do governo reacionário de Thiers faz recair o fardo dos gastos da guerra perdida sobre os amplos setores da população originando um poderoso movimento das forças democráticas.

No princípio exerceu o poder um governo revolucionário provisório chamado Comitê Central da Guarda Nacional, ou seja, um órgão eleito pelos batalhões da milícia popular que haviam se formado para defender a cidade contra os exércitos prussianos. Porém em 28 de março o poder passou às mãos da Assembleia de Deputados do Povo: a Comuna.

O papel governante cabia aos operários, muitos dos quais eram membros da Primeira Internacional. Foram proclamadas, também, Comunas em Lion, Marselha, Toulouse e algumas outras cidades que, entretanto, existiram por pouco tempo.

A Comuna de Paris destruiu a máquina estatal burguesa (liquidou o exército permanente e a polícia, separou a Igreja do Estado, etc.) e criou um Estado de novo tipo, que foi a primeira forma de ditadura do proletariado da história. O novo aparato do poder se organizava de acordo com os princípios democráticos: a elegibilidade, responsabilidade e a demissibilidade de todos os funcionários e o caráter colegiado da direção.

Para dirigir os assuntos públicos foram criados comissões eletivas que substituíram aos antigos ministérios: comissão do trabalho, da indústria e comércio, de serviços públicos, de alimentos, da fazenda, da segurança pública, da justiça, da educação, de relações exteriores e militar. O trabalho das comissões era coordenado por uma Comissão Executiva, que posteriormente incluiu todos os presidentes de todas as comissões. Essa Comissão Executiva foi substituída, em 1 de maio, pelo Comitê de Salvação Pública, órgão executivo superior da Comuna de Paris. Cada membro da Comuna se integrou em uma comissão conservando ao mesmo tempo os vínculos com seu distrito eleitoral e reunindo-se ali com os eleitores.

Foi desmantelado o velho aparato estatal, se expulsou os burocratas e os altos funcionários; se reduziu os vencimentos e o salário dos trabalhadores do aparato da Comuna e de seus membros foram fixados proporcionalmente ao salário médio de um operário. Os juízes reacionários foram substituídos por juízes eleitos. Foram demolidos os monumentos do militarismo e da reação. Os nomes das ruas foram substituídos para eliminar os nomes de figuras odiosas. Foi eliminada a ajuda financeira do Estado à Igreja.

Como governo da classe operária, a Comuna de Paris, exercia seu poder em benefício do povo. Mostrou grande cuidado pelo melhoramento da situação material das grandes massas: fixou a remuneração mínima do trabalho, foram tomadas medidas de proteção do trabalho e de luta contra o desemprego, de melhoramento das condições de moradia e do abastecimento da população. A Comuna preparou a reforma escolar, fundamentada no princípio da educação geral, gratuita, obrigatória, laica e universal. Tiveram extraordinária importância os decretos da Comuna sobre a organização de cooperativas de produção nas empresas abandonadas por seus donos, a implantação do controle operário, a elegibilidade dos dirigentes de algumas empresas estatais. Na sua política exterior, a Comuna se guiou pelo empenho de estabelecer a paz e a amizade entre os povos. 

As principais causas da derrota da Comuna de Paris foram:
1) A inexistência das condições econômico-sociais necessárias a insuficiente maturidade da classe operária, que não possuía seu próprio partido político aparelhado com a doutrina da luta de classes do proletariado;
2) A heterogeneidade da composição política da Comuna;
3) A ausência de aliança combativa entre a classe operária e o campesinato;
4) A isolamento de Paris das outras zonas do país em conseqüência do bloqueio da cidade pelos versalheses e as tropas prussianas de ocupação.

O breve período de existência da Comuna, seus erros táticos e sua derrota não reduzem a sua importância na história do movimento de libertação do proletariado. A experiência da Comuna e seus ensinamentos instrutivos desempenharam importante papel no desenvolvimento da teoria marxista-leninista, na história do movimento operário internacional, na preparação e realização da Grande Revolução Socialista de Outubro, com uma série de postulados importantes: confirmou a necessidade da destruição revolucionária do poder dos exploradores e da instauração da ditadura do proletariado. A impossibilidade - nas condições de então - de tomar o poder sem insurreição armada. Demonstrou que a classe operária não pode limitar-se a tomar em suas mãos e por em marcha a velha máquina estatal, mas que deve acabar com ela e substituí-la por uma nova.

Os ensinamentos da Comuna de Paris demonstraram a necessidade de defender com as armas as conquistas da revolução, a necessidade da tática ofensiva na guerra revolucionária, a inadmissibilidade de se mostrar debilidade e ingenuidade frente aos inimigos.

A Comuna dos Trabalhadores Armando Boito Jr.[1]

A Comuna de Paris de 1871 foi o poder revolucionário que governou aquela cidade durante o curto período de 18 de março a 28 de maio daquele ano. Apesar de ter durado apenas 72 dias, a Comuna é um episódio muito importante e discutido.

No simpósio que o Cemarx (Centro de Estudos Marxistas do Ifch), e a CDC (Coordenadoria de Desenvolvimento Cultural) realizaram no mês de maio, em comemoração aos 130 anos da Comuna de Paris, diversos aspectos relativos àquele episódio e às suas conseqüências foram discutidos. Um tema, contudo, interessou sobremaneira os participantes. Refiro-me à discussão mais geral sobre a natureza da Comuna de Paris, discussão que é, ao mesmo tempo, teórica, historiográfica e política.

Eco do século XVIII ou prenúncio do século XX?

A tradição socialista apresentou a Comuna de Paris como o primeiro governo operário da história. Essa caracterização fora feita pelo próprio Karl Marx no calor dos acontecimentos, em textos reunidos posteriormente num livro que se tornou célebre intitulado A Guerra Civil na França. Marx era teórico e dirigente da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), cuja seção francesa teve papel destacado na revolução e no governo da Comuna de Paris. Não se pode ignorar o fato de que a caracterização da Comuna como um governo operário tem conseqüências políticas. Nas ciências humanas, é possível ser objetivo, mas não é possível ser neutro. As conseqüências da tese de Marx são claras. Se a Comuna foi o primeiro governo operário, isso pode significar que, no final do século XIX, a classe operária seria uma classe social ascendente?, teria demonstrado ter condições de elaborar um programa político próprio, organizar-se em torno dele, e assumir o governo da capital do mundo?. É compreensível que essa análise viesse a receber boa acolhida no movimento socialista.

Em suma, podemos dizer um século depois, na década de 1960, quando se começa a  desenvolver uma outra caracterização da Comuna de Paris. O historiador francês Jacques Roguerie, pesquisando os processos movidos pelas forças vitoriosas contra os communards sobreviventes, passou a sustentar a tese de que a revolução e o governo da Comuna teriam sido o último capítulo das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, e não o primeiro capítulo de um processo emergente de revolução operária. Essa tese empolgou o meio acadêmico; ela indicava o caminho para desconstruir o mito socialista da Comuna. Surgiu o debate: Comuna-crepúsculo? ou Comuna-aurora? Negar a natureza operária da Comuna de Paris também tem conseqüências políticas, embora distintas, é claro, das conseqüências políticas da tese anterior. Essa negação significa diminuir, e muito, a presença política da classe operária na Europa do século XIX e lançar dúvidas sobre a capacidade política do operariado. Não há nada de estranho, portanto, no fato de a tese da revolução-crepúsculo? ter sido muito bem aceita entre os liberais. 

Estamos sugerindo que cada qual deve escolher, de acordo com suas preferências políticas, a tese que mais lhe convém? Seguramente esse não seria um bom procedimento para os historiadores e cientistas sociais. É necessário ter consciência das conseqüências políticas de cada tese em presença, dentre outras razões, para poder controlar os efeitos de nossas preferências políticas na discussão de um tema que é historiográfico. Pois bem, nós entendemos que a Comuna de Paris foi sim a primeira experiência de um governo operário e, como tal, uma revolução-aurora?, anunciadora do movimento operário e das revoluções que iriam mudar a história do século XX. Por que pensamos assim? Porque consideramos que a análise de Marx resistiu à pesquisa historiográfica contemporânea. 

Insurreição e governo operário.

Os homens e mulheres que fizeram a Comuna de Paris eram de extração social operária e vinham se organizando em torno de idéias que tendiam ao socialismo.

Os trabalhadores de Paris da década de 1870 não podem ser assimilados aos artesãos, lojistas e companheiros que compunham o movimento sans-culottes da grande Revolução Francesa de 1789. Dois terços da população economicamente ativa da cidade eram compostos de assalariados e mais da metade dessa mesma população trabalhava na indústria. Grande parte desses assalariados trabalhava em pequenas empresas, mas um contingente significativo já era o típico trabalhador assalariado moderno produzido pela revolução industrial, a construção civil e a metalurgia cresceram muito sob o II Império e funcionavam em padrões capitalistas modernos para a época.

Em 1870, a classe operária parisiense já possuía organizações de massa e idéias próprias. Estava organizada sindicalmente na Federação das Associações Operárias de Paris que reunia então cerca de 40.000 membros. Essa massa operária realizou grandes greves nos anos de 1868, 1869 e 1870. A greve é um método de luta que, por definição, não pode ser usado pelos pequenos proprietários ou pela plebe urbana. Ademais, essa massa operária teve, no ocaso do II Império, a sua  escola de socialismo?.

Os historiadores Alain Dalotel, Alain Faure e Jean-Claude Freiermuth, no trabalho conjunto Aux origines de la Commune - le mouvement desenvolvimento réunions publiques à Paris 1868-1870, usando uma documentação inédita formada por copiosos relatórios policiais, fizeram um estudo importante e detalhado das reuniões públicas do período de crise do regime político imperial. Esse estudo mostra que a oposição operária e popular ao II Império já era forte antes do desastre da Guerra Franco-Prussiana de 1870. Mostra também que o conteúdo político e ideológico dessa oposição ia muito além do republicanismo democrático-burguês. A igualdade sócio-econômica, a eliminação da propriedade privada dos meios de produção, a instauração da propriedade coletiva e a utilização da ação revolucionária para alcançar esses objetivos eram temas dominantes nos salões de reuniões dos bairros populares de Paris. Vê-se que se trata de um programa coletivista, que deixou para trás o igualitarismo de pequeno proprietário (= dividir a propriedade privada) típico dos sans-culottes do século XVIII. Esses salões de reuniões públicas iriam, logo após a queda do II Império em setembro de 1870, dar origem aos clubes operários e populares, que formariam uma rede de organizações de massa dos trabalhadores de Paris. Foi essa massa operária que fez a revolução de 1871. 

O perfil sócio-econômico dos dirigentes de organismos de base da Comuna, dos militantes e dos combatentes prova a afirmação acima. A presença do trabalhador manual é amplamente majoritária, sendo que os novos setores tipicamente operários (construção civil, metalurgia, diaristas sem especialização) têm uma presença bem superior ao seu peso na população ativa de Paris. Foram presos pelas tropas de Versalhes mais de 35.000 parisienses que participaram da Comuna. Dentre esses, mais de 5.000 eram operários da construção civil, mais de 4.000 eram diaristas sem especialização, outros 4.000 eram operários metalúrgicos, e milhares de outros eram operários de diferentes setores econômicos. Ao todo, cerca de 90% dos prisioneiros eram de origem operária e popular. Chama atenção a participação dos trabalhadores que compunham o moderno operariado de então. Os operários da construção civil, metalúrgicos e diaristas sem especialização representam 39% dos prisioneiros e 45% do contingente de condenados à deportação. Esse levantamento foi feito pelo próprio Jacques Rougerie, o historiador que iniciara a desconstrução do mito socialista da Comuna, quinze anos após ter lançado seu primeiro livro sobre o tema. Após essa nova pesquisa, Rougerie reviu, sem o dizer, sua análise anterior da Comuna de Paris. Afirmou, após o exame dos dados, que a Comuna foi a revolução da Paris do trabalho? (Jacques Rougerie, La Comunne de 1871, Paris, PUF, 1997, p.102).

Além da predominância nas organizações de massa e nos combates da Comuna, os operários parisienses tiveram um papel de destaque na insurreição e no governo de Paris. 
O órgão que comandou a insurreição de 18 de março de 1871, dando origem à Comuna de Paris, foi o Comitê Central da Guarda Nacional. Esse comitê era composto por 38 delegados eleitos nos bairros de Paris, sendo que 21 desses delegados eram operários; cerca vinte deles eram filiados à seção francesa da Associação Internacional de Trabalhadores (AIT) e às Câmaras Sindicais de Paris. O órgão político maior da Comuna de Paris, o Conselho da Comuna, eleito em 26 de março, oito dias após a insurreição, também era composto por uma maioria de operários e de filiados à Associação Internacional dos Trabalhadores e às Câmaras Sindicais. Esse Conselho contava, nominalmente, com 79 membros, dos quais apenas cerca de 50 compareciam às sessões. Nada menos que 33 dos conselheiros eleitos eram operários; o restante era de intelectuais, pequenos proprietários e profissionais liberais. Jacques Roguerie, na obra citada mais acima, calcula que a maioria do Conselho da Comuna - cerca de 40 de seus membros - pertencia à AIT e às Câmaras Sindicais. O Conselho da Comuna era um conselho de trabalhadores. Ao lado do Conselho da Comuna, a assembléia eleita pelos habitantes de Paris, operava o braço executivo da revolução, as comissões ministeriais. Nesse organismo, a componente proletária, se não domina como nos demais, pelo menos é marcante. Logo abaixo das comissões ministeriais, estão os grandes serviços públicos e de infraestrutura, onde os operários de Paris também tiveram atuação destacada. 

Um governo socialista? 

Podemos afirmar, portanto, que a composição social dos combatentes de base e dos dirigentes da Comuna de Paris foi marcadamente operária. Não eram apenas operários. Os profissionais liberais, pequenos proprietários, lojistas e artesãos, que eram muito numerosos na população de Paris, tiveram, como indicamos de passagem, participação importante nos órgãos de governo da Comuna. Aliás, Marx fala em governo essencialmente operário e não em governo operário sem mais. Continuando. Pelos dados apresentados, também é legítimo dizer que os operários estavam forjando uma concepção de mundo anticapitalista na conjuntura da crise do II Império e se valendo da extraordinária experiência revolucionária dos trabalhadores de Paris. Essas duas constatações são fundamentais, tendo em vista a atual operação de desconstrução do mito socialista da Comuna. Mas elas não encerram a questão. Pois resta saber o que foi a política implementada pela Comuna de Paris. Ela foi simplesmente uma política republicana burguesa? Uma política de reformas sociais? Uma política socialista? 

Os 'communards' lutaram pela república social, tomaram diversas medidas de proteção ao trabalho e à população pobre, mas apenas uma que prenunciava uma economia de tipo socialista: decretaram que toda fábrica abandonada pelo proprietário - fenômeno comum em tempo de revolução ? ficaria sob controle dos seus operários. Mas isso é pouco para afirmar que o governo da Comuna foi socialista. O grande historiador Ernest Labrousse insistiu, num debate entre os historiadores franceses por ocasião do centenário da Comuna de Paris, num ponto importante: nenhum documento da Comuna apresenta o socialismo como objetivo de governo. Karl Marx, cuja tese sobre a natureza operária da Comuna é o motivo de toda essa discussão historiográfica, escrevendo cerca de dez anos após a Comuna de Paris, observou, em carta a um correspondente, que a maioria dos dirigentes da Comuna de Paris não era socialista. Alguns autores afirmam que Marx estaria, nessa observação, revendo a análise que fizera no já citado Guerra Civil na França, obra que teria sido escrita num momento de entusiasmo e com objetivos políticos. Nós pensamos que não se trata disso. Marx afirmou em Guerra Civil na França que a Comuna foi a primeira experiência de um governo operário, mas não disse que ela foi um governo socialista. Isso ela não foi - e dificilmente poderia sê-lo.

Não se pode perder de vista um fato elementar: o objetivo imediato da Comuna de Paris foi depor um governo considerado de traição nacional. Por temor ao proletariado de Paris, esse governo aceitara uma paz forçada com a Prússia, paz que restringia a soberania da França e mutilava o seu território. A Comuna tinha pela frente, então, uma tarefa nacional e democrática, que é tarefa típica das revoluções burguesas. Ademais, outras tarefas burguesas contidas como promessa na Revolução de 1789 não tinham sido cumpridas. Exemplos mais importantes são a separação da Igreja e do Estado e a implantação do ensino público, gratuito, obrigatório e laico. O desenvolvimento do princípio da cidadania, criatura típica da revolução burguesa, depende da implementação de medidas como essas. A Comuna tratou de realizar essas duas tarefas. Em resumo, a Comuna tinha de levar adiante as transformações burguesas inacabadas para, como disse Engels, aplainar o terreno para a transformação socialista da velha sociedade. Para essa tarefa de aplainar o terreno foi possível contar com grande parte da pequena burguesia de Paris, dos artistas, dos profissionais liberais e de alguns setores radicalizados do republicanismo burguês. É por isso que, quando Marx apresenta sua caracterização da Comuna de Paris, ele usa a expressão um "governo essencialmente operário", indicando a existência de uma frente popular dominantemente operária no governo da Comuna. 

Mas há uma componente socialista presente na política da Comuna de Paris que é menosprezada pelos historiadores, inclusive pelos historiadores socialistas. Isso não decorre da ignorância dos fatos históricos, mas da concepção economicista de socialismo que ainda vigora entre os analistas. Refiro-me ao tipo de democracia que a Comuna de Paris estabeleceu: mandato imperativo, revogável pelos eleitores, eleição para os cargos administrativos do Estado, transferência de tarefas do Estado para a população trabalhadora organizada, dissolução do Exército permanente e criação de uma milícia operária, salário dos funcionários públicos igual ao salário médio dos operários (a Comuna foi o governo mais barato da história) etc. Essa democracia de tipo novo, que combina democracia representativa com democracia direta, representa o início de um processo de extinção do aparelho de Estado, enquanto aparelho especial colocado acima da sociedade. Ou seja, essa política da Comuna de Paris representa uma socialização do poder político. Pois bem, essa socialização do poder político é parte integrante e imprescindível do socialismo, do mesmo modo que a socialização dos meios de produção. A política da Comuna para a organização do poder era uma política socialista, embora seus dirigentes não o tivessem declarado e muitos deles, talvez, não tivessem consciência desse fato.

Vejamos como Marx resume sua tese sobre a Comuna de Paris no livro "Guerra Civil na França". A Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para levar adiante, dentro de si própria, a emancipação econômica do trabalho. (....) A dominação política dos produtores é incompatível com a perpetuação de sua escravidão social. Portanto, a Comuna teria de servir de alavanca para extirpar o cimento econômico sobre o qual descansa a existência das classes e, por conseguinte, a dominação de classe.

Lendo o texto acima, observa-se que se trata de uma forma política que traz 
"dentro de si própria a emancipação econômica do trabalho". Ou seja, a socialização do poder induz a socialização dos meios de produção. Com o movimento operário exercendo democraticamente o poder (mandato imperativo, dissolução do exército permanente etc.) pode-se afirmar que se cria um desajuste - ou desequilíbrio, ou contradição entre o poder socializado, de um lado, e a economia capitalista baseada na propriedade privada, de outro. Retomando os termos de Marx, a dominação política dos trabalhadores é incompatível com sua escravidão social. Daí ser possível fundamentar teoricamente a análise prospectiva que se segue no raciocínio de Marx: a Comuna (realidade política) teria de servir (tempo futuro) de alavanca para a eliminação da exploração de classe (realidade econômica).

É por isso, e apenas por isso, que é correto repetir, 143 anos depois, a idéia de Marx, segundo a qual a Comuna de Paris, embora não fosse socialista, continha, por ser um governo operário, em si mesma o socialismo. Foi só isso que Marx afirmou. E, visto os debates que essa afirmação ensejou, podemos dizer que só isso já foi afirmar muito.

[1] Prof. do Departamento de Ciência Política da Unicamp e Diretor do Cemarx - Centro de Estudos Marxistas (Ifch-Unicamp).

14 TESES SOBRE A COMUNA DE PARIS DE 1871
Internacional Situacionista 

1 Há que retomar o estudo do movimento operário clássico de uma forma desenfeudada e em primeiro lugar desenfeudada das diversas classes de herdeiros políticos ou pseudo-teóricos, pois não possuem mais que a herança do seu fracasso. Os êxitos aparentes deste movimento são os seus fracassos fundamentais (o reformismo ou a instalação no poder de uma burocracia estatal) e os seus fracassos (a Comuna ou a revolta das Astúrias) são até agora os seus êxitos abertos, para nós e para o futuro.
2 A Comuna foi a maior festa do século XIX. Encontra-se nela, na sua base, a impressão de que os insurgentes se converteram em donos da sua própria história, não tanto a nível da decisão política "governamental" como da vida quotidiana, naquela primavera de 1871 (ver o jogo de todos com as armas; o que quer dizer jogar com o poder). É também neste sentido que há que compreender Marx: "a maior medida social da Comuna foi a sua própria existência em actos". 
3 A frase de Engels "Olhai a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado" deve ser tomada a sério, como base para fazer ver o que não é a ditadura do proletariado como regime político (as diversas formas de ditadura sobre o proletariado, em seu nome). 
4 Todos souberam fazer justas críticas sobre as incoerências da Comuna, sobre a manifesta falta de um aparelho. Mas como pensamos hoje que o problema dos aparelhos políticos é muito mais complexo do que pretendem os herdeiros abusivos do aparelho de tipo bolchevique, é tempo de considerar a Comuna não já como um primitivismo revolucionário de que se ultrapassaram todos os erros, mas como uma experiência positiva na qual contudo não se encontrou nem realizou toda a verdade..
5 A Comuna não teve chefes, num período histórico em que a idéia de que era preciso tê-los dominava absolutamente o mundo operário. Assim se explicam de antemão os seus fracassos e êxitos paradoxais. Os guias oficiais da Comuna são incompetentes (tomando como referência o nível de Marx ou de Lenine e inclusive de Blanqui). Mas em contrapartida os atos "irresponsáveis" desse momento são precisamente o que há-de reivindicar de imediato o movimento revolucionário do nosso tempo (mesmo se as circunstâncias quase o limitaram ao estádio destrutivo - o exemplo mais conhecido é o do insurgente dizendo ao burguês suspeito que afirma que nunca se meteu em política: "É precisamente por isso que te vou matar". 
6 A importância vital do povo em armas manifesta-se na prática e nos signos ao longo de todo o movimento. Em conjunto, não se abdicou a favor de destacamentos especializados o direito de impor pela força uma vontade comum. O valor exemplar desta autonomia dos grupos armados tem a sua contrapartida na falta de coordenação, no facto de não ter levado em nenhum momento ofensivo ou defensivo da luta contra Versalhes a força popular a um grau de eficácia militar. Mas não se pode esquecer que a revolução espanhola se perdeu e com ela a própria guerra com a transformação em "exército republicano". Pode pensar-se que a contradição entre autonomia e coordenação dependiam muito do nível tecnológico da época.
A Comuna representa até hoje a única realização de um urbanismo revolucionário, atacando in situ os signos petrificados da organização dominante da vida, reconhecendo o espaço social em termos políticos, não crendo que um monumento possa ser inocente. Aqueles que identificam isto com um niilismo de lúmpen-proletariado, com a irresponsabilidade dos incendiários, devem confessar em contrapartida tudo o que consideram como positivo, a conservar, da sociedade dominante (ver-se-á que é quase tudo). "Todo o espaço está já ocupado pelo inimigo" O momento da aparição do urbanismo autêntico será a criação em certas zonas do vazio desta ocupação. O que chamamos construção começa com isso. Pode compreender-se com a ajuda do conceito de campo positivo, cunhado pela Física moderna". (Programa elementar de urbanismo unitário, I.S. n.º 6).
8 A Comuna de Paris foi vencida menos pela força das armas que pela força do hábito. O exemplo prático mais escandaloso foi a recusa em recorrer ao canhão para tomar o Banco de França, quando o dinheiro fazia tanta falta. Enquanto durou o poder da Comuna, a banca permaneceu como um enclave em Paris, defendida por algumas espingardas e pelo mito da propriedade e do roubo. Os restantes hábitos ideológicos foram desastrosos sob todos os pontos de vista (a ressurreição do jacobinismo, a estratégia derrotista das barricadas em memória de 48, etc.) 
9 A Comuna mostra como os defensores do velho mundo beneficiam sempre de um modo ou de outro da cumplicidade dos revolucionários; e sobretudo daqueles que pensam como eles. O velho mundo conserva deste modo bases (a ideologia, a linguagem, os costumes, os gostos) no campo dos seus inimigos e serve-se delas para reconquistar o terreno perdido (só lhe escapa para sempre o pensamento em atos próprio do proletariado revolucionário: a Bolsa ardeu). A verdadeira "quinta coluna" está no próprio espírito dos revolucionários.
10 A anedota dos revolucionários chegados nos últimos dias para destruir Notre-Dame e que tropeçam com o batalhão dos artistas da Comuna está cheia de sentido: é um bom exemplo de democracia direta. Mostra também, e sobretudo, os problemas ainda por resolver na perspectiva do poder dos conselhos. Será que estes artistas tinham razão ao defenderem uma catedral em nome de valores estéticos permanentes e, em última instância, em nome do espírito de museu, enquanto outros homens pretendiam aceder à expressão precisamente nesse dia, traduzindo por meio da demolição o seu desafio total a uma sociedade que, na derrota iminente, lançava as suas vidas no nada e no silêncio? Os artistas partidários da Comuna, atuando como especialistas, encontravam-se já em conflito com uma manifestação extrema da luta contra a alienação. Há que censurar aos homens da Comuna não se terem atrevido a responder ao terror totalitário com a totalidade do emprego das suas armas. Tudo leva a crer que se fizeram desaparecer os poetas que nesse momento traduziram a poesia em suspenso da Comuna. A massa de atos irrealizados da Comuna permite que se convertam em "atrocidades" os atos esboçados cuja lembrança foi censurada. A frase "Aqueles que fazem revoluções a meias não fazem senão cavar a própria sepultura", explica também o silêncio de Saint-Just.
11 Os teóricos que reconstituem a história deste movimento, colocando-se do ponto de vista omnisciente de Deus que caracterizava o novelista clássico, mostram facilmente que a Comuna estava objetivamente condenada, que não tinha superação possível. Mas não se pode esquecer que para aqueles que viveram o acontecimento a superação estava ali.
12 A audácia e a criatividade da Comuna não se medem evidentemente em relação à nossa época, mas em relação às banalidades de então na vida política, intelectual e moral; em relação à solidariedade de todas as banalidades no meio das quais surgiu a Comuna. Assim, considerando a solidariedade das banalidades actuais de direita e de esquerda, pode imaginar-se a enorme criatividade que podemos esperar duma explosão idêntica.
13 A guerra social de que a Comuna constitui um momento continua sempre (por muito que tenham mudado algumas condições superficiais). Sobre o trabalho de "tornar conscientes as tendências inconscientes da Comuna" (Engels) ainda não foi dita a última palavra.
14 Desde há cerca de vinte anos, em França, os cristãos de esquerda e os stalinistas puseram-se de acordo, recordando a sua frente nacional anti-alemã, para pôr o acento tónico naquilo que houve na Comuna de rasgo nacionalista, de patriotismo ferido e, para falar claramente, de "povo francês expressando a sua vontade de ser bem governado" (segundo a política stalinista actual) e, no fim, lançado no desespero pela fraqueza da direita burguesa apátrida. Bastaria, para vomitar esta água benta, estudar o papel dos estrangeiros vindos para combater pela Comuna, que foi antes de mais, como dizia Marx, a inevitável prova de força a que deveria conduzir toda a atuação da Europa do "nosso partido" desde 1841. 
(In Internationale Situationiste, n.º 7, Abril de 1962) 
Fonte: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2011/03/488605.shtml

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