EDITORIAL DO
GLOBO
PARA A GLOBO FOI UM ERRO APOIAR O GOLPE
Não há, na história de quase 125 anos da República, fato político de
maior sobrevida que o golpe de 64. Em 1980 não se discutiram os 50 anos da
Revolução de 30; nem 1987, meio século da instituição do Estado Novo, inspirou
a edição de livros, a organização de debates e amplas edições especiais em
revistas e jornais para analisar o apagão institucional patrocinado em 37 por
Getúlio Vargas e militares.
A seguir o clichê,
poder-se-ia admitir que 1964 seria “um ano que ainda não acabou”. Não chega a
tanto. O ciclo de 64, radicalizado pelo AI-5 em dezembro de 68, quase um golpe
dentro do golpe, foi encerrado 21 anos depois com a bem-sucedida transição, sem
violência, de volta à democracia, assentada em bases institucionais três anos
depois, em 1988, na promulgação de uma Constituição que trouxe de volta
direitos civis e liberdades. Confirmou-se, assim, a abertura de novo ciclo,
hoje já de 26 anos ininterruptos de vigência do estado democrático de direito,
o mais longo período da República brasileira sem recaídas autoritárias.
Trata-se de uma
conquista a ser sempre defendida, porque, entre outros motivos, foi obtida num
país com longeva tradição de Estado forte, de excessiva presença do poder
público na vida da sociedade. Infelizmente, visões autoritárias da realidade
brasileira continuam presentes na vida do país.
É provável que esta
fixação em 64 seja sinal de que é necessário continuar a fortalecer a ideia da
democracia representativa como valor absoluto, sem relativismos, e exorcizar de
vez tentações autoritárias à direita e à esquerda.
Reflexões sobre este
processo levaram as Organizações Globo, por meio do GLOBO, a reconhecer, no ano
passado, que fora um erro editorial apoiar o golpe (http://memoria.oglobo.globo.com/jornalismo/opiniao/o-globo-faz-autocriacutetica-em-relaccedilatildeo-ao-apoio-ao-golpe-de-64-12018073).
Concluiu-se que, com base na perspectiva histórica dada pela passagem do tempo,
está claro que, com todas as imperfeições do regime, nenhum modelo é melhor, em
todos os sentidos, que o democrático, com Poderes independentes e rodízio, por
eleição popular, no comando do Executivo e na aferição periódica do apoio do
eleitorado aos ocupantes das Casas legislativas. Duas décadas de regime militar
e um pouco mais que isso de democracia permitem comparações bastante objetivas
entre a ditadura e o período em curso. Cabe lembrar que o golpe de 64, como
relatam historiadores e cientistas políticos, tem suas raízes lançadas na
década de 20, pelo movimento de tenentes reformistas, cansados daquela primeira
fase da República, tripulada por ex-monarquistas aristocratas.
Intervencionistas, os tenentes tinham pressa e queriam usar o poder do Estado
(Exército) para modernizar o país, como acontecera no próprio fim da monarquia.
Foram força
importante na Revolução de 30, estiveram depois em quarteladas diversas e nunca
demonstraram grande apreço pelo poder civil. No golpe de 64, alguns que atuaram
no tenentismo da década de 20 estavam reunidos: Ernesto Geisel, Castello
Branco, Cordeiro de Farias, Juarez Távora e Juracy Magalhães, por exemplo.
Para turbinar todo
aquele processo da década de 60, João Goulart, herdeiro da Presidência depois
da renúncia inesperada de Jânio, optou pela radicalização do cunhado Leonel
Brizola e desenhou no cenário político de 1963 um golpe de esquerda. Dessa
forma estimulou sua derrubada.
O que seria uma
intervenção cirúrgica, garantidas as eleições presidenciais em 65, prolongou-se
por duas décadas. Tempo suficiente para os tenentes dos anos 1920 colocarem em
prática, enfim, seu projeto de salvação nacional. E falharam.
Se modernizaram a
infraestrutura, fecharam o país ao processo de interdependência econômica e
chegaram a impedir que o Brasil se beneficiasse por inteiro da fase inicial da
revolução da microeletrônica e dos computadores pessoais. Avançaram em
instituições econômicas, mas sucumbiram ao erro de cevar um Estado
intervencionista. Caíram na ilusão de conviver com uma inflação elevada, apenas
na aparência domada pelo mecanismo pernicioso da correção monetária, e lançaram
as sementes da hiperinflação da década de 80. Cujo terreno foi aplainado de vez
pela quebra externa do país, em virtude da outra ilusão da ditadura, a de viver
de poupança externa.
O traço de tragédia
no regime militar foi dado pela violência dos agentes públicos. O fato de que
parte da esquerda pegou em armas não justificava que as Forças Armadas atuassem
por meio de braços semiclandestinos, e tudo com o conhecimento dos mais altos
escalões, inclusive em Brasília. Itália e Alemanha, no pós-guerra, enfrentaram
e venceram grupos radicais armados, sem arranhar a democracia. No Brasil, ao
lado da violência física houve o uso da censura, característica deste tipo de
regime, vê-se hoje na Venezuela, no Equador etc.
Recentes reportagens
do GLOBO, em que se elucida o destino do deputado Rubens Paiva, desde que foi
preso em sua casa no Leblon, até o martírio nos porões do DOI-Codi e o
desaparecimento do corpo, jogado ao mar, denunciam o ponto a que chegaram
instituições seculares e honradas, como o Exército, influenciadas por um
projeto ideológico delirante de criação de um “Brasil grande” a qualquer custo.
Mesmo do terrorismo de Estado.
A democracia
restaurada recebeu pesada herança de graves problemas, e os equacionou. A Lei
de Anistia, ampla e recíproca, base da transição pacífica, costuma ser
criticada por vítimas daquele terror — é compreensível —, mas existe uma
Comissão da Verdade atuante. Não se deve mesmo esquecer o que aconteceu, até em
respeito às famílias atingidas pela violência oficial. A comissão e a atuação
livre da imprensa iluminam os subterrâneos daqueles tempos sombrios.
Se nada está
definitivamente resolvido, o obstáculo da inflação, que parecia insuperável,
foi ultrapassado com grande inventividade por economistas e políticos tucanos a
partir do governo de Itamar Franco. Os desníveis sociais, por sua vez,
terminaram atenuados com o aprofundamento das políticas de transferência direta
de renda por meio de Lula e seu PT.
Só essas duas
vitórias bastariam para tirar qualquer dúvida sobre qual o melhor dos regimes —
embora tanto o fim da superinflação quanto os avanços sociais não sejam
conquistas definitivas. Bastam erros persistentes de política econômica para se
colocar tudo a perder. Mas é indiscutível, e está comprovado, que é preferível
enfrentar na liberdade as sérias dificuldades que aí estão.
Os últimos 12 destes
50 anos têm sido especialmente ricos. O principal partido da esquerda
brasileira, o PT, tem a experiência de exercício do poder no Planalto e, há
tempos, lideranças suas reconheceram haver diferenças entre o discurso de
oposição e o de situação. O PT amadurece e em algum momento terá de demonstrar
que aprende com os erros.
A ressaltar, o
elevado estágio de consolidação das instituições democráticas e republicanas,
de que o julgamento do mensalão é exemplo.
Há, hoje, no
Judiciário zelosos protetores da Constituição, em cujas cláusulas pétreas estão
garantidas as bases da democracia representativa.
Qualquer reflexão
nestes 50 anos do golpe reforça o papel do estado democrático de direito nos
avanços do país a partir do fim da ditadura. E aumenta a responsabilidade de
todos na defesa do regime, numa fase especialmente turva em algumas regiões
latino-americanas, com a perigosa benevolência por parte de inquilinos do poder
em Brasília.
Foi a busca por um
sistema mais “eficiente” de governo que resultou em 64 e 68. Não se pode
admitir que este erro seja mais uma vez cometido.
Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/para-nunca-mais-se-repetir-12022298
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