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terça-feira, 28 de julho de 2009

Z DA ZONA DE MANAUS, A ANTIGA



Thiago de Mello*

N
ão tinha a fama nem o prestígio da atual. E era genuinamente cabocla, embora em seus tempos dourados esbanjasse matéria-prima importada de vários países da Europa. É verdade que nunca chegou a ser de atração nacional, como a de agora. Mas era indiscutivelmente mais franca. Aberta a quem chegasse, não fazia acepção de pessoas: desde que fossem masculinas, donas de muita disposição e de um mínimo de capital. Era a zona das mulheres. De mulheres da vida, se dizia. Ou de mulheres que faziam a vida, expressão que sempre achei de sortilégio. Havia quem chamasse, nariz orgulhoso e torcido, a zona da prostituição, as ruas das raparigas.

Moça da família, os pais não permitiam que passassem pelos quarteirões daquelas ruas onde se exercia a mais antiga profissão do planeta, nas casas do meretrício. Perdão, do baixo meretrício, era assim que diziam, porventura a indicar a existência de um meretrício mais alto, quer dizer, mais caro e mais escondido. Ou talvez se tratasse de referência saudosa ao tempo das francesas de vestido longo e decotado da Pensão Floreaux, na rua Epaminondas, ou das que chegavam elegantíssimas e perfumadas, já madrugada alta, acompanhadas de cavalheiros de casaca, para uma ceia com champanhe no Bar Alemão ali na Marechal Deodoro à época do esplendor da borracha.

Para o povo a Zona era mesmo e simplesmente a zona, tout court, sem adjetivos. Ficava bem no centro da cidade, fraternalmente concentrada em trechos de quarteirões de ruas importantes. O eixo era a Saldanha Marinho: a mesma rua que abrigava moradias sóbrias e moradores austeros, abria-se para a vida alegre das pensões a partir da rua Joaquim Sarmento e só ia terminar lá na rua da Instalação, nos procuradíssimos bordeizinhos do último quarteirão enladeirado. Da Saldanha Marinho a Zona ganhava asas para as transversais Joaquim Sarmento e Logo D’Almada, um pouco para o lado da Sete de Setembro, outro pouco para as bandas da 24 de Maio. Casinhas da alvenaria colonial, soalhos de madeira que cantavam.

Mal a tarde começava a cair, a Zona, qual mulher sadia que desperta a dengosa se espreguiça, dava começo aos seus macios movimentos, com a chegada dos primeiros freqüentadores a fanar pelas esquinas e das primeiras caboclas, cabelos ainda molhados, ao parapeito das janelas. Só quando era já noite mesmo é que, até então mal-entreabertas, escancaravam-se as portas ou meia-portas, sobre as quais não faltava a famosa lanterna vermelha, em cujo brilho vagamente ardia um tição de tristeza.

O canto da Instalação com a Saldanha Marinho não marcava, porém, o limite da Zona, que a atravessava para alcançar outras ruas boêmias: a Itamaracá, a Frei José dos Inocentes. Por toda década de quarenta a Zona teve como lugar principal de bebida e de baile o Cabaré Chinelo, sábio e delicioso nome que o povo encontrou para substituir o Hotel Cassina, que no mesmo e bonito prédio funcionou até o fim da nossa belle epoque, freqüentado sôo por gente de finas libras esterlinas, não importava se oriundas das algibeiras de grosseiros coronéis de barranco.


Pensão da Lola: Ninguém pode negar que por todos aqueles anos quarenta a pensão da Lola, na Saldanha Marinho, era a melhor de todas as casas da Zona. É juízo unânime dos bons freqüentadores daquelas ruas. A numerosos deles agora consultei, e de todos a Lola teve o voto, ao qual com iniludível pena, não pude juntar o meu. Para que mentir? A verdade é que, naquelas noites, apenas estive perto, nunca tive acesso à boca da urna.

Era italiana, de sobrenome Ferdi. Alguma vez a contemplei descendo a Avenida: era elegante, alta, muito digna de leque abanando o rosto claro. Cuidava com esmero de sua moças, vigiava-lhes o asseio e a saúde. De índole romântica, sabia de cor o seu Dante, atirava de relance para a sua mesa, com abajur de centro, sempre bem concorrida, uma estrofe de Petrarca. Em contradição, ou talvez por coerência, a nenhuma das moças permitia histórias inventadas, choramingas, a justificar o passo mal dado que lhes abrira o caminho para a vida “não me venham com histórias. Estão aqui porque querem, estão aqui porque gostam. Fazem muito bem. Honrem a profissão. E tratem de não enganar ninguém”. Lola Ferdi morreu rica e triste, no começo dos 50. Famoso advogado de Manaus, leal amigo da dona-de-pensão presume-se que amigo de todas as horas, cumpriu o que ela, em testamento, lhe ditou: herdou os seus bens.

Consta que alguma parcela ficou destinada ao amparo de duas ou três de suas melhores moças já fatigadas.

*Escritor amazonense, autor de diversas obras de reconhecido valor mundial. Destaque para - Manaus, Amor e Memória, Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984. (p.247/49).

segunda-feira, 25 de maio de 2009

ESCRAVOS LIBERTOS EM MANAUS



Vários líderes republicanos e abolicionistas, como José do Patrocínio, foram presos e confinados num quartel do exército em Cucuy, na fronteira com a Colômbia. Assim, o gesto dos amazonenses não foi pequeno e se abateu como um relâmpago em meio à política de postergação da monarquia. O avançava, enquanto no Pará a questão do negro era tratada com sobressaltos, por relembrar o período revolucionário. Num relatório de outubro de 1848, o presidente do Pará, conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, se referia ao problema tachando os escravos fugidos de criminosos.


Márcio Souza*

O dia 24 de maio marcou uma data gloriosa para a cidade de Manaus. Com tanto feriado municipal idiota e sem propósito, eis uma data que merecia ser relembrada com festas e feriado. É a data da libertação dos escravos, quando a cidade, irmanando-se ao Ceará, emitiu um forte clarão de liberdade e dignidade para o Brasil escravista. Aqui viviam cerca 1.500 escravos, segundo os registros. Imediatamente as sociedades libertadoras se multiplicam nas cidades do interior, como Itacoatiara, Manacapuru, Coari, Codajás e Manicoré.

As elites intelectuais e políticas do Norte sempre demonstraram repugnância pelo estatuto da escravidão. Formadas pelo iluminismo francês e pelas idéias republicanas e liberais que se entranhou no Grão-Pará, a questão abolicionista foi considerada uma prioridade. A escravidão esteve presente desde o primeiro minutos em que os europeus pisaram em solo amazônico, levando ao processo de destribalização e extinção em massa dos povos indígenas.

Mesmo com a derrota do Grão-Pará, os ideais se mantiveram acesos. A Bolívia tinha feito sua abolição em 1826, a Colômbia 1851, o Peru e a Venezuela 1854. O regime dos Cabanos extingue a infâmia em 1853, mas por pouco tempo.

O império do Brasil se tornou o derradeiro país do mundo a abandonar a prática, 1888 a população de escravos na Amazônia era pequena, se comparada com as de outras regiões brasileiras, por isso mesmo um certo desdém sempre aparece quando se evoca a precoce abolição amazonense. Mas a luta pela erradicação da escravidão não estava vinculada a questões demográficas ou apenas econômicas, era uma opção ideológica que pregava a igualdade e a fraternidade, além de se confundir, nos últimos anos, com a pregação pela República e a instalação de uma democracia representativa, baseada no estado de direito. Por isso, em determinado momento a agitação abolicionista se tornou ameaçadora, levando a monarquia a recrudescer nos atos repressivos.

Vários líderes republicanos e abolicionistas, como José do Patrocínio, foram presos e confinados num quartel do exército em Cucuy, na fronteira com a Colômbia. Assim, o gesto dos amazonenses não foi pequeno e se abateu como um relâmpago em meio à política de postergação da monarquia. O avançava, enquanto no Pará a questão do negro era tratada com sobressaltos, por relembrar o período revolucionário. Num relatório de outubro de 1848, o presidente do Pará, conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, se referia ao problema tachando os escravos fugidos de criminosos.

No dia 10 de julho de 1884, o governador amazonense Theodoreto Souto reúne a sociedade amazonense no largo de São Sebastião e, ao meio dia em ponto, quando o sol não faz sombra, assinou um ato em que declarou ser “em homenagem à Civilização e à Pátria, em nome do povo Amazonense, que pela vontade soberana do mesmo povo e em virtude de suas leis, não mais existam escravos no território desta Província, ficando, assim, e de hoje para sempre, abolida a escravidão e proclamada a igualdade dos direitos de todos os seus habitantes”.

Lembro esta data para afirmar que nem sempre fomos mesquinhos, medíocres e atrasados, e nem sempre tivemos políticos adesistas, corruptos e fisiológicos. No final do século 19, havia homens como Theodoreto Souto em Manaus, que deu às futuras gerações esta lição de grandeza intelectual e coragem política.

*Renomado escritor e dramaturgo amazonense, articulista de A Crítica, em Manaus.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

CULTURA SENTIMENTAL DO SÃO RAIMUNDO

O conceito cultura sentimental é relativamente novo, mas tem fundamento na tradição fenomenológica, que muito tem influenciado o saber antropológico no contexto das ciências sociais. Sua definição teórica está intrinsecamente ligada à memória social e suas implicações epistemológicas quanto à compreensão de comunidade. Diferentemente de memória social, que trabalha a narrativa numa perspectiva de reconstituição de experiências pessoais a partir da percepção dos fatos vivenciados pelos atores, a cultura sentimental volta-se para o significado das experiências que orientam as relações sociais dos comunitários e também para os significantes recorrentes a reminiscência dos atores sociais

Khemerson Macedo*

Entre fevereiro e março de 2009, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em parceria com a Supernova Filmes e do professor e antropólogo José Ademir Gomes Ramos, desenvolveu pesquisa etnográfica no bairro manauara de São Raimundo. A pesquisa insere-se no projeto Paisagens culturais do Rio Negro, com o intuito de inventariar determinadas comunidades ribeirinhas das margens do Rio Negro. Neste primeiro momento, o trabalho compreendeu pesquisa de campo com os moradores antigos do lugar, possibilitando interpretar a construção do espaço como valor sentimental e comunal destes comunitários, identificando as famílias tradicionais do lugar, lugares de referência e as relações afetivas e de trabalho ali estabelecidas.

Nesta perspectiva, a pesquisa etnográfica se baseou em conceitos-chaves que, articulados aos dados empíricos coletados possibilitou definir as paisagens culturais do São Raimundo e como estas paisagens influem no cotidiano destes comunitários. Tais conceitos possibilitaram refletir acerca das narrativas coletadas, objetivando definir a relação do bairro como rio e seus tributários.

Para a definição do espaço da pesquisa adotamos a perspectiva de construção social da realidade, de BERGER & LUCKMANN (1973, p. 157): “sendo produtos históricos da atividade humana, todos os universos socialmente construídos modificam-se, e a transformação é realizada pela ação concreta do homem”. A idéia de espaço neste trabalho refere-se às ações do homem em seu ambiente de moradia, justificando a apropriação do lugar a partir da ação direta do comunitário com o espaço culturalmente determinado.

Desta relação, como concebemos sua organização interna?

Ao pensarmos a relação do ribeirinho com seu ambiente, levamos em conta que esta relação ultrapassa a necessidade de subsistência, desenvolvendo uma dimensão simbólica carregada de sentimento e afetividade, manifesto no modo de vida dessas populações, que tem nos rios uma importante referência para a formação de suas práticas culturais. Tais práticas culturais transformam as paisagens naturais disponíveis em paisagens culturais, dando uma dimensão simbólica ao uso comunal da flora e fauna aquática presente nos corpos d’água configurados no imaginário coletivo na forma dos encantados.

Quanto esta relação, concebemos sua organização social do espaço a partir dos
conceitos de labor, trabalho e ação em Hannah Arendt, visto que:

[O labor] assegura não apenas a sobrevivência do individuo, mas a vida da espécie. O trabalho e seu produto (...), emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano. A ação, (...) cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história (Arendt, 1981, p. 16).

Labor, trabalho e ação nos permitem pensar a respeito da memória social, enquanto ação humana responsável pela produção e preservação da lembrança a partir de experiências concretas. Neste sentido, recorremos às considerações de Ecléia Bosi sobre o tema:

(...) Lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, "tal como foi", e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista (Bosi, 1994, p.55)


A obra de Bosi fundamenta a etnografia em questão ao privilegiar as narrativas dos personagens populares e famílias tradicionais locais. Desta forma as narrativas apresentam-se como reminiscências surgidas a partir da rememoração dos comunitários, justificando, assim, as histórias individuais a partir das experiências passadas, transmitidas pelos seus pares. Convém observar que as lembranças criam nos comunitários processos de identificação, fortalecendo a tradição comunal e expressando uma forte cultura sentimental em relação à vida em comunidade.

O conceito cultura sentimental é relativamente novo, mas tem fundamento na tradição fenomenológica, que muito tem influenciado o saber antropológico no contexto das ciências sociais. Sua definição teórica está intrinsecamente ligada à memória social e suas implicações epistemológicas quanto à compreensão de comunidade.

Diferentemente de memória social, que trabalha a narrativa numa perspectiva de reconstituição de experiências pessoais a partir da percepção dos fatos vivenciados pelos atores, a cultura sentimental volta-se para o significado das experiências que orientam as relações sociais dos comunitários e também para os significantes recorrentes a reminiscência dos atores sociais, “[fundamentando] a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração” (Benjamin, 1996, p. 211).

Ao nos debruçarmos sobre um conceito relativamente novo, temos como desafio a incompreensão imediata sobre a matéria. Contudo, salientemos que o conceito cultura sentimental encontra-se em processo de formulação e discussão no âmbito acadêmico, uma vez que os conceitos articulados aos dados empíricos coletados nos dão uma idéia mais clara sob qual caminho tomar, levando em consideração a perspectiva multidisciplinar a ser adotada sobre a temática em curso. Este artigo, portanto, assume um caráter ensaístico em relação a sua proposta inicial.

* O autor é Coordenador de Pesquisa do NCPAM

Foto: NCPAM

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O LEGADO HISTÓRICO DA COLÔNIA ANTONIO ALEIXO

Khemerson Macedo*

Houve um tempo em que certas pessoas, vindas das mais diversas partes da Amazônia em batelões a reboque, ao passarem pelo encontro das águas, na confluência dos rios Negro e Solimões, sentiam um último deslumbramento. Estes viajantes iam em direção ao Hospital-Colônia Antonio Aleixo, visto que eram portadores de hanseníase. Esta última sensação de encantamento dizia respeito ao deslumbramento ante a imagem construída, a partir da linha separando cada rio, sem o inconveniente da mistura, formando o mais belo ícone natural da região. Porém, aquela seria a última agradável imagem do lugar, antes do confinamento visto que os passageiros embarcavam ali sem o direito da volta. Com o passar do tempo, o encontro das águas seria apenas um ponto distante no horizonte, a ser contemplado a partir do Mirante das Lajes, lembrando aos internados o mundo que lhes era constantemente negado.

O lugar não era novo. A colônia ficava às margens de um lago e tinha sido anos antes, hospedagem para nordestinos em busca dos seringais amazônicos. Agora, recebia pessoas com mal de Hansen. Os passageiros embarcavam naquelas novas terras e então eram submetidos a uma triagem rigorosa, onde a equipe dirigente do local, formada por religiosos e médicos, selecionava-os conforme o grau de enfermidade apresentado. Feito isso, seguiam para os pavilhões existentes na cidade alta (alcunha dada pelo fato do lugar ser formado por acentuados relevos em forma de morros). Lá, recebiam as primeiras instruções do confinamento, cuja figura da Irmã Fernanda sintetizava o caráter disciplinar do local.

O dia-a-dia era regido conforme as regras aprendidas no primeiro dia de confinamento. As atividades de lazer e desporto eram orientadas a partir de discussões médicas tomadas sem o consentimento dos internados. Aos poucos, as vidas passadas eram esquecidas, ante a nova realidade. O lugar era palco para os dramas mais particulares: haviam os homens separados de sua mulher e filhos, os filhos separados de suas famílias e os filhos de internas que eram separadas destas a fim de evitarem o contágio (neste último, há relatos de mães que nunca mais viram seus filhos, provavelmente porque estas crianças nunca souberam quem eram suas mães biológicas). Para aqueles que tinham mais sorte, havia o parlatório, sala onde se recebia visitação de parentes vindos de fora, separando paciente e visitante por uma parede de vidro, a fim de evitar o contato. A colônia era tida, pelo poder público como o lugar mais avançado, em termos de confinamento, pois possibilidade a convivência em espaços previamente delimitados.

Tudo na colônia visava o controle da doença. A circulação de mercadorias, por exemplo, era mediado por moeda própria. A produção de alimentos, como frutas e verduras, mantidas no próprio local. Casas de farinha eram mantidas á beira do lago para produção própria. Os marchantes que faziam viagens rumo ao São Raimundo paravam na colônia e abatiam alguns gados para consumo local e, depois, seguiam viagem. Até os casamentos eram arranjados pela equipe dirigente. Era Irmã Fernanda, por exemplo, que fazia os arranjos. Tanta vigilância, contudo, era driblada às vezes por pequenas travessuras como fugir ao lago para banhos e namoros escondidos.

A vigilância exercida pela equipe dirigente era comparada, àqueles que chegavam e se davam conta de sua situação, como uma prisão sem muros, sem o direito de sair. Embora o trabalho religioso feito ali ajudasse a aliviar o sofrimento dos internados, não era a mesma coisa que estar junto aos familiares, que os pacientes sequer sabiam onde se encontravam. Aos poucos, os avanços no tratamento da doença começam a surtir efeitos, e a possibilidade de abertura da colônia à sociedade mostrava-se como possibilidade concreta.

Em 1967, a inauguração da Avenida André Araújo, ligando Manaus à Colônia Antonio Aleixo, deu início ao processo de ocupação das terras vizinhas ao local. Em 1975, intensificam-se os debates em torno da abertura da colônia, ao mesmo tempo em que mais pessoas se dirigem ao local. Em 1978, em meio a protestos de grupos conservadores, a Colônia Antonio Aleixo é declarada aberta e os antigos pavilhões passam a ser ocupados por ex-pacientes e parentes. Com o tempo, a comunidade se organiza e passa a autogestar seus recursos naturais e serviços básicos como transporte, educação e saúde, exigindo do poder púbico seu papel neste processo, recusando, contudo, a tutelagem e o patriarcalismo.

Cientes de que o sofrimento pelo qual passaram estava inserido num contexto onde as políticas médicas-sanitárias vigentes davam como avançadas, a comunidade da Colônia Antonio Aleixo entende, hoje em dia, que fazer algo para que haja mudanças diz respeito somente à organização criativa e responsável da comunidade, e que esperar pelo poder público é cair no círculo viciante e vicioso dos favores.

Atualmente, estes antigos pacientes são líderes comunitários, sempre ativos na causa que confrontam como é o caso do projeto Porto das Lajes, ameaça real ao Lago do Aleixo e ao encontro das águas. Esta causa, partindo da comunidade, mobiliza hoje um número expressivo de intelectuais, acadêmicos, jornalistas, cientistas, políticos, micro-empresários, autônomos, movimentos sociais e cidadãos diversos. São atuantes também nas lições que ensinam as novas gerações, como é o caso de dona Maria do Carmo Sanches, 75 anos, ex-paciente e moradora da Colônia Antonio Aleixo desde os 14 anos de idade que, no dia 21/02, em almoço de confraternização com amigos, parentes, imprensa e universidade, deu provas destas lições.

Recebendo-nos com um largo sorriso no rosto branquíssimo, onde os olhos azuis denunciavam a satisfação do momento, dona Maria do Carmo, que acolhera a todos em almoço. O motivo girava em torno da visita de três mulheres, oriundas de Óbidos – PA e residentes em Manaus. Estas mulheres são, na verdade, sobrinhas–netas da moradora e que, naquele dia, estavam indo visitá-la pela primeira vez. A apreensão do momento do encontro aos poucos foi sendo diluída quando ambas foram se conhecendo e interagindo em total cumplicidade. Aos poucos, nomes, datas e fatos iam costurando lembranças, corrigindo situações há tempos obscurecidas. Desta forma, a memória de dona Maria do Carmo resgatava histórias e reconstituía sua própria genealogia, conformando o passado com o presente.

Porém, o momento mais tocante da tarde foi o instante em que nossa anfitriã, ao lembrar-se do momento em que, indo morar na casa de sua tia, por causa da enfermidade do pai, sofria constantemente de maus tratos, até descobrir-se também como hanseniana, foi deixada em porto próximo para ser transportada até Manaus para confinamento. A imagem da tia se afastando de si, sem olhar pra trás, configurou-se como a primeira experiência traumática para a menina Maria, justamente por esta vir saber, em seguida, que por mais dolorosa fosse a convivência com a tia, nada se compararia ao confinamento que se sucederia.

A tarde transcorria vagarosamente. A anfitriã e suas sobrinhas-netas, aos poucos, iam tornando-se cúmplices. Depois das lembranças e recordações, as afinidades agora identificavam traços e comportamentos característicos. Depois da confraternização, chegava o momento da despedida. Porém, depois das experiências trocadas, a despedida converteu-se num até breve entre todos.

A nós do Núcleo de Cultura Política do Amazonas, restou-nos registrar o momento em texto, embora este formato seja insuficiente na transmissão das impressões passadas, tal a intensidade do encontro. Fica conosco a impressão do dever cumprido, uma vez que a reunião de família foi possibilitada graças a nossa ajuda, mediante pesquisa feita na comunidade. Aos comunitários da Colônia Antonio Aleixo, nossos sinceros agradecimentos!

*Coordenador de Pesquisa do NCPAM

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

ACREANOS E BOLIVIANOS: VÍTIMAS DA CORRUPÇÃO

Somos todos índios lutando por liberdade - É preciso entender que hoje, do Alaska à Patagônia, em particular na América do Sul vivemos uma situação especial na história do continente. Está claro que, pela sua ação, os povos já não aceitam mais as políticas impostas pelos Estados dominadores.

*Roberto Monteiro de Oliveira

Faces de uma mesma moeda - Quanto aos nossos bravos irmãos bolivianos vítimas de governantes corruptos, cujo exemplo maior foi Antenor Patiño que preferia viver na França, hoje com Evo Morales buscam na comercialização vantajosa do gás e do petróleo; na nacionalização das minas e da reforma agrária um atalho para o desenvolvimento.

É necessário de fato destacar a valentia de nossos irmãos bolivianos, povo das florestas e das montanhas andinas pela bravura nos combates inglórios conduzidos por elites perversas que ainda hoje teimam em fomentar a inimizade entre povos irmãos vítimas do mesmo processo histórico e geográfico de expropriação dos nossos recursos naturais perpetrado pelos Estados europeus no passado, e, atualmente pelas multinacionais.

Mas é necessário também resolver o problema do altiplano de La Paz versus terras baixas de Santa Cruz de La Sierra. Oxalá Evo Morales não decepcione o povo boliviano e nem seja surpreendido por golpes como o acontecido a Victor Paz Estensoro.

Não é possível que Bolívia e Acre continuem órfãos de seus próprios governos. Á atual conjuntura exige que se estabeleçam alianças políticas sólidas, em torno de projetos concretos de desenvolvimento regional e de mútua cooperação, sem bravatas, como forma de superar a solidão a que estaria condenada a Bolívia conforme o escritor Augusto Céspedes.

Somos todos índios lutando por liberdade - É preciso entender que hoje, do Alaska à Patagônia, em particular na América do Sul vivemos uma situação especial na história do continente. Está claro que, pela sua ação, os povos já não aceitam mais as políticas impostas pelos Estados dominadores.

De uma maneira ou de outra, o que esses povos dizem, pelas formas que encontram, é que exige um futuro digno para seus filhos, um futuro para as Nações.

É preciso entender os sinais dos novos tempos quando o Presidente Bush é derrotado nas eleições – depois de enormes manifestações contra a guerra no Iraque, da mobilização massiva e inédita dos trabalhadores latinos imigrantes, e da reação à tragédia anunciada que representou o furacão Katrina para os negros; quando a vontade de soberania dos povos é o que se impõe nas eleições e fora delas, levando os governantes: na Venezuela, defender o petróleo, fazer a reforma agrária e desapropriar empresas ocupadas; no Equador, se comprometer a revogar o Tratado de Livre Comércio e desmantelar a Base dos EUA em Manta e, no México, rechaçar a fraude eleitoral e as privatizações, convocando o povo a resistir para impor sua vontade.

Quando o povo quer ninguém domina. Os acreanos nos deram um belíssimo exemplo da luta de um povo pela sua identidade nacional e pela sua autodeterminação.

*Geógrafo do Núcleo de Estudos Amazônicos (NEAZ) da Universidade de Brasília.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O ACRE SOB O DOMÍNO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Foi no dia 11 de junho de 1901 que o governo boliviano arrendou o território do Acre para o Bolivian Syndicate, instituição formada por capitalistas norte-americanos e ingleses, como uma estratégia para estabelecer a soberania boliviana sobre aquele território e abrir um enclave de influência política e militar norte-americana na Amazônia.

*Roberto Monteiro de Oliveira

Poetas e boêmios guerreiros - Insatisfeito com a atuação do governo brasileiro, o governo do Amazonas interessado em receber os impostos sobre a vultosa produção da borracha financia outra expedição para retomar o território acreano para sua jurisdição.

Esta expedição constituída por boêmios e outros profissionais liberais de Manaus foi oficialmente chamada de Expedição Floriano Peixoto, mas ficou popularmente conhecida como Expedição dos Poetas que foi derrotada pelo exército boliviano em 29 de dezembro de 1900.

A Belle Époque - É bom lembrar que nesse período Manaus e Belém estão vivendo a Belle Époque, a chancelaria brasileira está cuidando também da questão do Amapá, a República brasileira está se estruturando, além do que, está ocorrendo a grande migração de nordestinos, com destaque para os cearenses, os arigós para a extração e defumação da borracha.

A comprovação das denúncias – Foi no dia 11 de junho de 1901 que o governo boliviano arrendou o território do Acre para o Bolivian Syndicate, instituição formada por capitalistas norte-americanos e ingleses, como uma estratégia para estabelecer a soberania boliviana sobre aquele território e abrir um enclave de influência política e militar norte-americana na Amazônia.

Os seringalistas acreanos prevendo as nefastas conseqüências da atuação do Bolivian Syndicate, com o apoio do Governo do Amazonas articulam nova resistência.

Plácido de Castro tendo organizado militarmente os seringalistas como oficiais e como combatentes os seringueiros inicia em Xapuri as novas batalhas no dia 06 de agosto de 1902.

No dia 24 de janeiro de 1903, Puerto Alonso é retomada e proclamada por Plácido de Castro capital do Estado Independente do Acre.

Os republicanos se posicionam – A partir desses fatos, sacudido pelo clamor dos brasileiros, Rodrigues Alves contrariando a posição das elites, acorda da letargia do Estado Brasileiro e nomeia o Barão do Rio Branco como ministro das relações exteriores que inicia as conversações que resultam no Tratado de Petrópolis.

Pelo tratado de Petrópolis a Bolívia reconhece a soberania do Brasil sobre aquele território e o Brasil reconhece a paternidade gentílica sobre os acreanos.

O Brasil retribui a Bolívia com dois milhões de libras esterlinas, constrói também a ferrovia Madeira/Mamoré para dar uma saída para os bolivianos para o Atlântico e, indeniza o Bolivian Sindicate.

Castigando uma região - Contrariando as aspirações dos revolucionários acreanos de ser mais um estado da nascente República Brasileira, Rodrigues Alves atendendo as pressões das elites da administração brasileira, no início de 1904 resolve que o Acre seria administrado diretamente pela Presidência da República, criando o primeiro Território Federal.

Nessa condição o governador do território era nomeado pelo presidente da república, o território não tinha constituição própria, não arrecadava impostos, enfim, uma total dependência do governo federal.

Dessa forma as elites burocráticas do Governo Federal tiravam do Governo do Amazonas a
arrecadação dos impostos sobre a produção da borracha e negavam aos revolucionários acreanos a autonomia tão desejada e, de sobra, criavam um enorme cabide de empregos bem remunerados para os amigos das figuras influentes da nova república.

Inicia-se assim uma fase dificílima para os acreanos em que os governadores do Território do Acre não tinham legitimidade nem representatividade dos acreanos e por isso mesmo não tinham nenhum compromisso com as aspirações daquele povo.

A luta continua - Foram 58 anos de resistência contra a corrupção de políticos premiada pela ausência do poder judiciário. Começava então, uma nova fase das lutas do povo acreano pela conquista da plena cidadania.

Em Xapuri, Rio Branco, Cruzeiro do Sul, Sena Madureira e em todas as localidades do Acre o povo se mobiliza para a luta política buscando a autonomia do Estado do Acre. São clubes políticos, organizações de seringalistas, de seringueiros que se unem buscando o objetivo maior daquela sociedade regional: participar plenamente da nação brasileira.

Até a conquista da plena cidadania os acreanos tiveram que enfrentar o autoritarismo do Estado Moderno Brasileiro que por algum tempo se sobrepõe às legítimas aspirações dos cidadãos acreanos em nome da ordem e da legalidade.

*Geógrafo do Núcleo de Estudos Amazônicos (NEAZ) da Universidade de Brasília.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A DEVOLUÇÃO DO ACRE AOS BOLIVIANOS


*Roberto Monteiro de Oliveira

A reação boliviana
– O governo boliviano não se dá por vencido. Em 2 de janeiro de 1899, o ministro plenipotenciário boliviano, Dom José Paravicini, com o consentimento do governo brasileiro retoma a soberania boliviana sobre o Acre.

Paravicini se estabeleceu em um povoado nas terras do Seringal Caquetá que pôs o nome de Puerto Alonso, em homenagem ao então Presidente da Bolívia Severo Fernandez Alonso. Paravicini foi substituído depois por Moisés Santivanez.


O governo dos bolivianos
- Na verdade os prepostos bolivianos exerceram plenamente a soberania sobre o território acreano. Começaram arrecadar impostos sobre a produção da borracha, exigiram a demarcação e legalização das terras dos seringais, e atendendo às pressões do governo norte-americano proclamaram a abertura dos rios amazônicos ao comércio internacional e iniciam um relacionamento autoritário e violento com os seringalistas e seringueiros brasileiros.


A reação dos acreano-brasileiros
- Abandonados pelo moribundo império brasileiro o jornalista José Carvalho, no primeiro de maio de 1899, no Seringal Bom Destino, de propriedade de Joaquim Vítor reuniu outros seringalistas, seringueiros e mais brasileiros e, iniciou o que ficou registrado pela História como a Revolução do Acre.


Estes revolucionários assinaram um manifesto e instituíram a Junta Central Revolucionária que intimou as autoridades bolivianas a se retirarem daquele território o que efetivamente aconteceu sem nenhuma reação.


A grande armação
– Em Belém do Pará, o jornalista espanhol Luiz Galvez Rodrigues de Árias, em 03 de junho daquele ano de 1899, denunciou pela imprensa a existência de um acordo secreto entre o governo da Bolívia e os Estados Unidos da América do Norte, pelo qual os Estados Unidos em caso de guerra entre o Brasil e a Bolívia pelo território do Acre apoiariam militarmente a Bolívia.


Como sempre, os governos denunciados negaram veementemente. Mas os acontecimentos posteriores comprovaram a verdade das denúncias.
Patrocinado pelo governo do Estado do Amazonas, interessado em manter a soberania sobre aquele território, Luiz Galvez foi até ao Acre para conversar com a junta revolucionária.

O Estado Independente do Acre
– Considerando que as elites do governo brasileiro continuavam reconhecendo a soberania da Bolívia sobre o Acre, sem o conhecimento do que realmente se passava naquela base territorial, totalmente indiferente aos legítimos anseios do povo acreano que queria ser brasileiros, os revolucionários decidem criar o Estado Independente do Acre. “Já que nossa Pátria não nos quer, criamos outra”, diziam os revolucionários.


Efetivamente, no dia 14 de julho de 1899, aniversário da Queda da Bastilha, primeiro fato relevante da Revolução Francesa os revolucionários acreanos proclamam o Estado Independente do Acre com a capital na cidade do Acre, tendo Luiz Galvez Rodrigues de Árias como presidente.


O governo de Galvez
- Galvez foi tomando todas as providências necessárias para a organização do novo Estado. Deve-se observar, porém, que desde as primeiras reuniões entre Galvez e os revolucionários foi fixado o objetivo principal da revolução que era se libertar do domínio dos bolivianos e, logo a seguir se anexar ao Brasil como um Estado autônomo da federação brasileira com todos os direitos inerentes a essa condição.


Este sempre foi o ideal que irmanou seringalistas, seringueiros, homens e mulheres do Acre em busca da cidadania brasileira que lhes estava sendo negada por uma elite burocrática completamente legalista, indiferente aos anseios de um povo que lutava pela afirmação da própria identidade amazônica e brasileira.


Este ideal dos acreanos só será realizado plenamente em 1962 no contexto do governo do presidente João Goulart, após quase sessenta anos de lutas contra governos que continuavam negando aos acreanos a sua autodeterminação.


A deposição de Galvez
- Algumas das medidas adotadas por Luiz Galvez contrariaram interesses de seringalistas, aviadores e exportadores de Borracha de Manaus e Belém o que provocou a substituição de Luiz Galvez pelo seringalista Antônio de Souza Braga em 28 de dezembro de 1899. Mas em 30 de janeiro de 1900, Luiz Galvez volta ao poder convocado por Antônio de Souza Braga que se sentiu incapaz de administrar a situação.


Novamente o governo brasileiro
– Diante dessa situação, acompanhada com grande interesse pelo povo brasileiro e boliviano, o governo brasileiro manda uma força tarefa da marinha para o Acre e em 15 de março de 1900 devolve a soberania daquele território para o governo boliviano.


*Geógrafo do Núcleo de Estudos Amazônicos (NEAZ) da Universidade de Brasília.

domingo, 4 de janeiro de 2009

A QUESTÃO DO ACRE - O PREÇO DE UMA CARTEIRA DE IDENTIDADE

Iniciamos uma série de publicação sobre a invenção do Acre de autoria do professor e pesquisador do Núcleo de Estudos Amazônicos da Universidade de Brasília (NEAZ), geógrafo Roberto Monteiro de Oliveira, que no passado foi professor da Universidade Federal do Amazonas e, estando conosco em Manaus, se comprometeu em contribuir para o debate sobre Questão do Acre, que em última instância compreende também a geopolítica da Amazônia, problemática recorrente quando se trata de políticas voltadas para desenvolvimento regional. O texto original tem por título: “O preço de uma carteira de Identidade – a questão do Acre”. No entanto, pela sua densidade vamos postar em formas de artigos para facilitar a leitura dos nossos consulentes, primando pela integridade do texto, na perspectiva de se promover o bom debate.

Como é seu nome - Uaquiri, Rio dos Jacarés era o nome que os valentes Apurinã davam para o rio que banha o território do atual Estado do Acre e que passou a identificar o próprio território. É uma característica própria dos amazônidas, segundo o Samuel Benchimol, identificar-se com o rio: eu sou do Juruá, eu sou do Madeira, eu sou do Purus, eu sou do Rio Negro e eu sou do Acre.


Mas é a valentia que vem caracterizar a todos aqueles que adotam o território amazônico como pátria.

Aqui apresentamos uma síntese do que foi a saga de um punhado de espanhóis, italianos, sírio-libaneses, judeus, cearenses, gaúchos, cariocas que unidos às tribos indígenas nativas e aos cabocos seringueiros e seringalistas lutaram para adquirir a própria carteira de identidade, fraternizados pela territorialidade de uma região.

Tierras no Discubiertas”. - Até 1850 as terras que compõem o atual estado do Acre, apareciam na cartografia amazônica, como “Tierras no Discubiertas”. A partir dessa data começam as primeiras andanças pela exploração de seus recursos naturais e com a demanda de borracha para atender a fabricação de pneumáticos para a nascente indústria automobilística a região começa a ser intensamente explorada.

A grande seca no nordeste brasileiro, ocorrida nos anos de 1877/1878, possibilitou a migração de milhares de trabalhadores nordestinos para a extração e defumação da borracha.

Esta migração forçada, sobretudo de nordestinos cearenses acelera e intensifica o povoamento daquela região com todas as suas conseqüências.


Os fatos - A questão do Acre começa quando Brasil e Bolívia decidem demarcar seus limites de acordo com o Tratado de Ayacucho de 1867.

O Tratado de Ayacucho de 1867 foi assinado durante a guerra do Paraguai sem que os diplomatas do Império Brasileiro e da Bolívia soubessem que seringueiros brasileiros já ocupavam grande parte do vale dos rios Purus, Madeira e Juruá.

Desconhecendo o que acontecia na base territorial diplomatas bolivianos e brasileiros assinam o condicional e confuso tratado de Ayacucho.

Aliás, todo Brasil passa a fazer parte do horizonte geográfico da civilização cristã ocidental envolvida pelo também confuso Tratado de Tordesilhas e pelo Tratado de Madrid.

O contencioso - Como dizem os diplomatas, a contenda se inicia quando o chefe da Comissão Brasileira Demarcadora dos Limites, Coronel Thaumaturgo de Azevedo não aceitou os limites estabelecidos pelo Tratado de Ayacucho, uma vez que a linha divisória demarcada no território a partir das nascentes do Rio Javari deixava para a Bolívia exatamente a região riquíssima em seringueiras dos rios Acre, Purus, Madeira e Juruá que já estava ocupada e explorada por seringueiros brasileiros.

Thaumaturgo de Azevedo considerando que tal limite era prejudicial ao Brasil denuncia a situação provocando uma grande polêmica nacional.

Thaumaturgo de Azevedo foi destituído e em seu lugar foi nomeado o Capitão-Tenente Cunha Gomes que seguindo as determinações do governo brasileiro reconhece os limites estabelecidos pelo caduco Tratado de Ayacucho devolvendo a soberania daquele território para a Bolívia.

O domínio boliviano – Reconhecido os seus direitos, pela esquizofrenia dos diplomatas que assinaram o tratado de Ayacucho o governo boliviano envia para o alto Rio Acre uma expedição chefiada pelo Major Benigno Gamarra a bordo do piquete Gamarra que a 12 de setembro de 1898 chegou a então Vila de Xapuri, onde estabeleceu a Delegação Nacional Boliviana.

Brasileiros/bolivianos – É fácil imaginar essa nova situação. Brasileiros, em seu próprio território, abandonados pelo próprio governo e governados por autoridades bolivianas.

O Coronel da Guarda Nacional Manuel Felício Maciel organizou e liderou um movimento que obrigou a Delegação Boliviana a retirar-se daquele território, em 30 de novembro de 1898.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

OS SERINGAIS E A PRÁTICA DE AVIAMENTO



“Servidão Humana na Selva – O Aviamento e o Barracão nos Seringais da Amazônia”. O livro em foco é de autoria do professor Carlos Teixeira, amazonense de Humaitá, que além de ter sido professor da PUC de São Paulo e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), participa também do NCPAM - Núcleo de Cultura Política do Amazonas do Departamento de Ciências Sociais da UFAM, que vem investigando o movimento da história regional negligenciado, muitas vezes, pela ortodoxia das ciências sociais, como é caso do cotidiano, das lutas e dos sofrimentos dos homens e mulheres que trabalharam nos seringais da Amazônia, enfrentando os percalços de uma vida difícil, os perigos da floresta e a opressão engendrada pelos donos dos barracões, como bem analisa o autor em sua obra. É uma pesquisa minuciosa em que o autor recorre a documentos e entrevistas com seringueiros, caboclos e personagens que protagonizaram essa história.

Carlos Teixeira, num gesto solidário e de compromisso com a verdade histórica, faz justiça a esses homens e mulheres freqüentemente esquecidos pela historiografia oficial. Os personagens desta obra são os seringueiros e suas histórias de resistência, a luta para sobreviver na selva, sob um regime de servidão. O professor da USP, José de Souza Martins, que apresenta o livro, situou o problema com precisão, ao afirmar que o livro “reúne os fios desatados de um sofrimento ignorado, de uma pobreza cruel, de um opressor invisível, para nos revelar a trama de uma história omitida, que não é só da Amazônia”.

O estudo de Carlos Teixeira nasce predestinado a ficar na historiografia amazônica e brasileira como uma das obras referenciais sobre o processo de desenvolvimento regional e suas conseqüências sociais. O foco do autor é um padrão econômico que cumpriu seu momento histórico, como esclarece como bem esclarece em suas páginas: “O seringal na verdade está desaparecendo, e com ele o extrativismo. O seringal, pois, possui uma identidade histórica particular... associada à constituição do modo capitalista de produção, especialmente à fase que corresponde à concentração do capital e à conseqüente formação dos monopólios”.

O trabalho é um estudo histórico e sociológico dos seringais, sem deixar de refletir sobre o período e as conseqüências sociais e humanas do período do fausto da borracha, ressaltando os aspectos de sua decadência. O livro “Servidão Humana na Selva” volta-se ao público leitor do campo das ciências sociais e aos demais interessados em pesquisar a vida social e econômica da nossa Amazônia.

O lançamento da obra será neste sábado (30) às 10h, no Espaço Cultural Valer - Rua Ramos Ferreira, 1195, no Centro Histórico de Manaus, sob a chancela das Editoras: Valer e Edua (Editora da Universidade Federal do Amazonas).


O ato será marcado pela presença dos acadêmicos e dos especialistas, que pensam a Amazônia numa perspectiva sustentável, repudiando o trabalho escravo e a perversidade da desigualdade social, tão comum na presente configuração da exploração do trabalho no Distrito Industrial de Manaus, bem como relativo à devastação da floresta capitaneada por fazendeiros, madeireiros e grileiros, aliançados com políticos e governantes oportunistas e aventureiros, a se multiplicar como praga por toda Amazônia.