quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O LEGADO HISTÓRICO DA COLÔNIA ANTONIO ALEIXO

Khemerson Macedo*

Houve um tempo em que certas pessoas, vindas das mais diversas partes da Amazônia em batelões a reboque, ao passarem pelo encontro das águas, na confluência dos rios Negro e Solimões, sentiam um último deslumbramento. Estes viajantes iam em direção ao Hospital-Colônia Antonio Aleixo, visto que eram portadores de hanseníase. Esta última sensação de encantamento dizia respeito ao deslumbramento ante a imagem construída, a partir da linha separando cada rio, sem o inconveniente da mistura, formando o mais belo ícone natural da região. Porém, aquela seria a última agradável imagem do lugar, antes do confinamento visto que os passageiros embarcavam ali sem o direito da volta. Com o passar do tempo, o encontro das águas seria apenas um ponto distante no horizonte, a ser contemplado a partir do Mirante das Lajes, lembrando aos internados o mundo que lhes era constantemente negado.

O lugar não era novo. A colônia ficava às margens de um lago e tinha sido anos antes, hospedagem para nordestinos em busca dos seringais amazônicos. Agora, recebia pessoas com mal de Hansen. Os passageiros embarcavam naquelas novas terras e então eram submetidos a uma triagem rigorosa, onde a equipe dirigente do local, formada por religiosos e médicos, selecionava-os conforme o grau de enfermidade apresentado. Feito isso, seguiam para os pavilhões existentes na cidade alta (alcunha dada pelo fato do lugar ser formado por acentuados relevos em forma de morros). Lá, recebiam as primeiras instruções do confinamento, cuja figura da Irmã Fernanda sintetizava o caráter disciplinar do local.

O dia-a-dia era regido conforme as regras aprendidas no primeiro dia de confinamento. As atividades de lazer e desporto eram orientadas a partir de discussões médicas tomadas sem o consentimento dos internados. Aos poucos, as vidas passadas eram esquecidas, ante a nova realidade. O lugar era palco para os dramas mais particulares: haviam os homens separados de sua mulher e filhos, os filhos separados de suas famílias e os filhos de internas que eram separadas destas a fim de evitarem o contágio (neste último, há relatos de mães que nunca mais viram seus filhos, provavelmente porque estas crianças nunca souberam quem eram suas mães biológicas). Para aqueles que tinham mais sorte, havia o parlatório, sala onde se recebia visitação de parentes vindos de fora, separando paciente e visitante por uma parede de vidro, a fim de evitar o contato. A colônia era tida, pelo poder público como o lugar mais avançado, em termos de confinamento, pois possibilidade a convivência em espaços previamente delimitados.

Tudo na colônia visava o controle da doença. A circulação de mercadorias, por exemplo, era mediado por moeda própria. A produção de alimentos, como frutas e verduras, mantidas no próprio local. Casas de farinha eram mantidas á beira do lago para produção própria. Os marchantes que faziam viagens rumo ao São Raimundo paravam na colônia e abatiam alguns gados para consumo local e, depois, seguiam viagem. Até os casamentos eram arranjados pela equipe dirigente. Era Irmã Fernanda, por exemplo, que fazia os arranjos. Tanta vigilância, contudo, era driblada às vezes por pequenas travessuras como fugir ao lago para banhos e namoros escondidos.

A vigilância exercida pela equipe dirigente era comparada, àqueles que chegavam e se davam conta de sua situação, como uma prisão sem muros, sem o direito de sair. Embora o trabalho religioso feito ali ajudasse a aliviar o sofrimento dos internados, não era a mesma coisa que estar junto aos familiares, que os pacientes sequer sabiam onde se encontravam. Aos poucos, os avanços no tratamento da doença começam a surtir efeitos, e a possibilidade de abertura da colônia à sociedade mostrava-se como possibilidade concreta.

Em 1967, a inauguração da Avenida André Araújo, ligando Manaus à Colônia Antonio Aleixo, deu início ao processo de ocupação das terras vizinhas ao local. Em 1975, intensificam-se os debates em torno da abertura da colônia, ao mesmo tempo em que mais pessoas se dirigem ao local. Em 1978, em meio a protestos de grupos conservadores, a Colônia Antonio Aleixo é declarada aberta e os antigos pavilhões passam a ser ocupados por ex-pacientes e parentes. Com o tempo, a comunidade se organiza e passa a autogestar seus recursos naturais e serviços básicos como transporte, educação e saúde, exigindo do poder púbico seu papel neste processo, recusando, contudo, a tutelagem e o patriarcalismo.

Cientes de que o sofrimento pelo qual passaram estava inserido num contexto onde as políticas médicas-sanitárias vigentes davam como avançadas, a comunidade da Colônia Antonio Aleixo entende, hoje em dia, que fazer algo para que haja mudanças diz respeito somente à organização criativa e responsável da comunidade, e que esperar pelo poder público é cair no círculo viciante e vicioso dos favores.

Atualmente, estes antigos pacientes são líderes comunitários, sempre ativos na causa que confrontam como é o caso do projeto Porto das Lajes, ameaça real ao Lago do Aleixo e ao encontro das águas. Esta causa, partindo da comunidade, mobiliza hoje um número expressivo de intelectuais, acadêmicos, jornalistas, cientistas, políticos, micro-empresários, autônomos, movimentos sociais e cidadãos diversos. São atuantes também nas lições que ensinam as novas gerações, como é o caso de dona Maria do Carmo Sanches, 75 anos, ex-paciente e moradora da Colônia Antonio Aleixo desde os 14 anos de idade que, no dia 21/02, em almoço de confraternização com amigos, parentes, imprensa e universidade, deu provas destas lições.

Recebendo-nos com um largo sorriso no rosto branquíssimo, onde os olhos azuis denunciavam a satisfação do momento, dona Maria do Carmo, que acolhera a todos em almoço. O motivo girava em torno da visita de três mulheres, oriundas de Óbidos – PA e residentes em Manaus. Estas mulheres são, na verdade, sobrinhas–netas da moradora e que, naquele dia, estavam indo visitá-la pela primeira vez. A apreensão do momento do encontro aos poucos foi sendo diluída quando ambas foram se conhecendo e interagindo em total cumplicidade. Aos poucos, nomes, datas e fatos iam costurando lembranças, corrigindo situações há tempos obscurecidas. Desta forma, a memória de dona Maria do Carmo resgatava histórias e reconstituía sua própria genealogia, conformando o passado com o presente.

Porém, o momento mais tocante da tarde foi o instante em que nossa anfitriã, ao lembrar-se do momento em que, indo morar na casa de sua tia, por causa da enfermidade do pai, sofria constantemente de maus tratos, até descobrir-se também como hanseniana, foi deixada em porto próximo para ser transportada até Manaus para confinamento. A imagem da tia se afastando de si, sem olhar pra trás, configurou-se como a primeira experiência traumática para a menina Maria, justamente por esta vir saber, em seguida, que por mais dolorosa fosse a convivência com a tia, nada se compararia ao confinamento que se sucederia.

A tarde transcorria vagarosamente. A anfitriã e suas sobrinhas-netas, aos poucos, iam tornando-se cúmplices. Depois das lembranças e recordações, as afinidades agora identificavam traços e comportamentos característicos. Depois da confraternização, chegava o momento da despedida. Porém, depois das experiências trocadas, a despedida converteu-se num até breve entre todos.

A nós do Núcleo de Cultura Política do Amazonas, restou-nos registrar o momento em texto, embora este formato seja insuficiente na transmissão das impressões passadas, tal a intensidade do encontro. Fica conosco a impressão do dever cumprido, uma vez que a reunião de família foi possibilitada graças a nossa ajuda, mediante pesquisa feita na comunidade. Aos comunitários da Colônia Antonio Aleixo, nossos sinceros agradecimentos!

*Coordenador de Pesquisa do NCPAM

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