quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

VALOR DA PRODUÇÃO E DO MERCADO

Jean Baudrillard*

É óbvio que o valor está estreitamente ligado ao objeto, mas meu propósito aqui é mais limitado e relacionado com o valor de uso e o valor de troca, que são os fundamentos mesmos da produção e do mercado. Desde o primeiro momento, o valor de uso e o valor de troca – e a dialética que se instaura entre ambos – me pareceram uma construção racional, que se estabelece como postulado a possibilidade de equilibrar o valor, de atribuir-lhe um equivalente geral capaz de esgotar as significações e dar conta de uma troca.

É aí que a antropologia entra em jogo, para virar pelo avesso essas noções e quebrar a ideologia do mercado – ou seja, o mercado como ideologia, e não apenas como realidade. A antropologia oferece o exemplo de sociedades e culturas em que a noção de valor, tal como a entendemos, é quase inexistente; em que as coisas não se trocam nunca diretamente umas pelas outras, mas sempre por mediação de uma transcendência, de uma abstração.

Ao lado do valor de mercado existem valores morais ou estéticos, que funcionam, no caso, em termos de uma oposição regulamentada entre o bem e o mal, o belo e o feio… Parecia-me, no sentido, que havia uma possibilidade de as coisas circularem de outro modo, e que outras culturas ofereciam exatamente a imagem de uma organização em que a transcendência do valor não se instalava – e com ela a transcendência do poder, pois é com base na manipulação dos valores que ela se estabelece.

Era necessário tentar polir o objeto – e não somente ele -, limpá-lo de seu estatuto de mercadoria, devolver-lhe uma imediatez e uma realidade bruta que não teriam preço; pois quer uma coisa “ não valha nada”, quer ela “ não tenha preço”, em ambos os caso estamos no inapreciável, no sentido radical da expressão.

A partir daí, a troca que se possa fazer com elas se opera em bases que não dependem mais do contrato- como se dá habitualmente no sistema de valor – e sim do pacto. Há uma diferença profunda entre o contrato, que é uma convenção abstrata entre dois termos, dois indivíduos, e o pacto, que é uma relação dual e cúmplice. Poderíamos ver neste uma imagem de certas modalidades da linguagem poética, em que as trocas entre palavras – e a intensidade de prazer que proporcionam – se operam fora de sua mera decodificação, aquém ou além de seu funcionamento em termos de “ valor de significação”.

O mesmo se pode dizer com relação aos objetos e aos indivíduos. Há, nessa perspectiva, uma possibilidade de criar um curto-circuito no sistema de valor e na esfera de influência que ele alicerça. É com base no sentido que podemos ser senhores da linguagem, senhores da comunicação (mesmo quando o ato da fala e suas modalidades entram em jogo nesse domínio do discurso); é com base no valor de mercado que se pode ter o domínio do mercado. E é sobre a diferença de valor entre o bem o mal que será estabelecida a dominação moral… Edificam-se a partir daí todos os poderes. É talvez utópico pretender ir além do valor, mas é uma utopia operacional, uma tentativa no sentido de pensar um funcionamento mais radical das coisas.

É bem verdade que o estado do valor é complexo: se o valor de mercado é passível de ser apreendido, o valor signo, ao contrário, é fugitivo e movente – em dado momento, ele se esgota e se dispersa na valorização que lhe é dada. Se tudo se alterna com base em uma convenção, estamos ainda no mundo do valor ou em sua simulação?

Talvez estejamos ainda em uma dupla moral… Haveria uma esfera moral, a troca mercantil, e uma esfera imoral, a do jogo, em que contam apenas o evento mesmo do jogo e o advento de uma regra partilhada. Compartilhar uma regra é algo bem diferente de tomar como referencial um equivalente geral comum: é preciso estar totalmente implicado para poder entrar no jogo, o que cria entre os parceiros um tipo de relação bem mais dramática que a troca de mercado.

Nessa relação, os indivíduos não são mais seres abstratos que podem ser indiferentemente substituídos uns pelos outros: cada um tem uma posição singular diante de um desafio de vitória ou de derrota, de vida ou de morte. Mesmo em suas formas mais banais, o jogo impõe um modo outro de entrar nas jogadas, um modo diferente da troca – palavra, aliás, tão ambígua que eu me vi levado a falar de troca impossível

*Filósofo francês, pertencente a um seleto grupo de pensadores que se expressam à margem dos sistemas do alarde da mídia. In: Senhas, (Valor) 2001.

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