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quinta-feira, 13 de agosto de 2009

NASCIMENTO ADIADO

Mais do que crescer, o Brasil precisa se renovar. Se insistir em apenas crescer, o Brasil vai se estagnar como sociedade e civilização. Continuará desigual, não republicano, com corrupção, violência, cidades degradadas, rico para poucos e não civilizado.

*Cristovam Buarque

O Brasil de hoje é a continuidade do país que surgiu a partir de 1930. O país industrial, urbano, com infra-estrutura e mercado interno superou o agrícola, rural, sem infra-estrutura, exportador de bens primários. Nesses últimos 80 anos, aquele Brasil, então novo, envelheceu. Seu crescimento depredou a natureza, exigiu ditadura e concentração da renda, criou uma sociedade desigual e violenta, com corrupção endêmica e manteve, por anos, uma moeda desvalorizada. A indústria mecânica ficou desatualizada para a realidade da economia do conhecimento.

Mais uma vez, um novo Brasil quer e precisa nascer: com economia baseada no conhecimento, em equilíbrio com a natureza, distribuidor de sua renda, e sem pobreza, sem violência, sem corrupção, mantendo o equilíbrio monetário conquistado nas últimas duas décadas. Paira no ar a necessidade de um novo Brasil e precisamos de líderes que o façam nascer. Foi com esperança nesse parteiro que os eleitores elegeram os dois últimos presidentes.

Ambos conseguiram o fim da inflação e criaram uma rede mínima de proteção, mas não mudaram a realidade social: mantiveram o mesmo padrão de crescimento baseado no modelo industrial do século XX, que exige concentração dos benefícios. Conservaram privilégios, conviveram com a corrupção e a política do passado. No máximo, buscaram acelerar o crescimento do modelo hoje totalmente ultrapassado, sem orientação em direção ao novo.

Mais do que crescer, o Brasil precisa se renovar. Se insistir em apenas crescer, o Brasil vai se estagnar como sociedade e civilização. Continuará desigual, não republicano, com corrupção, violência, cidades degradadas, rico para poucos e não civilizado. A história recente já mostrou que nenhum país se civiliza apenas com o crescimento da economia, sem renovação. E que, daqui para frente, não crescerá sustentavelmente sem reorientar sua maneira de produzir. Mostrou também que a redução da desigualdade social e a construção de uma sociedade republicana, pacífica e livre de corrupção, passam pela educação de qualidade para todos. O Brasil velho dispõe do potencial econômico e financeiro que permite a mudança de rumo para a construção de uma república democrática. Temos uma renda nacional de quase R$ 3 trilhões, dos quais quase 40% estão nas mãos do setor público. Mesmo assim, caminhamos para a degradação urbana, desassistência na saúde, educação vergonhosa.

Apesar disso, em breve teremos novas eleições presidenciais, que elevarão para 20 ou 24 os atuais 16 anos de mandatos durante os quais o Brasil não perde a esperança de uma renovação. Isso porque o debate que se prevê entre os dois pré-candidatos - aparentemente já escolhidos para o segundo turno - será sobre como acelerar o velho Brasil, e não como renová-lo. Ambos discutem e discutirão apenas quem oferece maior taxa de crescimento da mesma antiquada, perversa e depredadora economia em direção ao abismo social, moral e ecológico, e não quem oferece um ângulo de inflexão para dobrar outra esquina da história em direção à modernidade que o século XXI exige: economia do conhecimento, distributiva socialmente e equilibrada ecologicamente. Caminhamos para eleger qual será o melhor mecânico para consertar e acelerar o velho Brasil, e não qual será o parteiro para concertar e reorientar um novo Brasil.

Tudo indica que em 2010 o parteiro vai ficar ausente até mesmo na própria eleição. Como se já estivéssemos tão acostumados com o velho Brasil que não percebêssemos a necessidade de um novo querendo nascer.

*Senador da Republica pelo PDT

Fonte: Artigo do senador Cristovam Buarque publicado pelo Jornal do Commercio (PE) em 7 de agosto.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

NOTA SOBRE A RESSOCIALIZAÇÃO PENAL

Luciano Oliveira

Uma velha mensagem bíblica diz que a fé remove montanhas. Trata-se de uma afirmação que o filósofo Karl Popper chamaria de não-científica, na medida em que não pode ser ─ utilizando ainda os seus termos ─ “falsificada”. O que vem a ser isso? É simples. A afirmação: “a maçã cai sempre para baixo”, que segundo a anedota permitiu a Sir Isaac Newton formular a lei da gravidade, é científica, na medida em que, se um dia a maçã “cair” para cima, a teoria newtoniana terá sido “falsificada”, e então teremos de revê-la. Pois bem: voltando às Santas Escrituras, a afirmação sobre as montanhas que podem mudar de lugar por força da nossa fé não se presta a esse exercício, pois o crente sempre poderá dizer que a fé não foi bastante para fazê-la mudar de lugar!

Essa reflexão pouco ortodoxa ocorre-me às vezes quando participo de discussões acadêmicas envolvendo pessoas com perfil militante, e elas, ao terem de encarar repetidas vezes a frustração de não verem seus objetivos realizados, em vez de se debruçarem sobre a hipótese da irrazoabilidade dos objetivos ou dos caminhos para atingi-los, reafirmam os mesmos termos objetivos e caminhos, e se põem a tarefa de persegui-los com mais ardor ainda ─ nos termos da metáfora, com mais fé... Pois bem: ao ser convidado para participar de uma mesa-redonda sobre violência prisional, onde falaria sobre a questão da ressocialização dos presos, a reflexão herética ocorreu-me mais uma vez, e me pus a refletir de maneira provocadora sobre a seguinte interpelação que faço em primeiro lugar a mim mesmo: e se deixássemos de pensar nisso ─ na ideia de ressocialização? O que se segue é o resultado do que li dos outros, mas também do que pensei por conta própria.

Antes de qualquer dedução antecipada, deixem-me alertar para o fato de que a sugestão de deixar de lado a ideia de ressocialização não implica de modo algum a sugestão de que abandonemos de vez os presos brasileiros à sua própria sorte, vivendo a vida de bichos que levam nas nossas cadeias! Ao contrário, na sua origem está a disposição de levar a sério e assumir todas as consequências de uma constatação que é antiga e conhecida de todo mundo, faltando-nos apenas a coragem de dizer publicamente o que reconhecemos todos na hora do cafezinho: a prisão é um mal irremediável. Certamente necessária em alguns casos e para certas pessoas, mas nem por isso deixando de ser um mal que só produz exatamente o que a sua essência secreta: males! Falarei mais longamente disso adiante. Por ora apenas concluo a advertência com que iniciei este parágrafo: se é assim, não faz nenhum sentido continuarmos reafirmando o artigo de fé segundo o qual ela pode uma dia recuperar delinquentes, desde que funcione como nossa ideia iluminista de uma cadeia pedagógica diz que ela deveria funcionar ─ o que nunca se viu. Nesse caso, a reafirmação do discurso só legitima uma instituição que simplesmente não presta, cuja única função “positiva” ─ se posso assim falar ─ é pôr fora de circulação alguns indivíduos socialmente nocivos. Isso dito, desenvolvo o argumento.

O senso comum, pródigo em produzir equívocos, em alguns casos parece estar certo. Quando, por exemplo, nomeia as prisões como “universidades do crime”, que todos aceitamos como uma evidência. Segundo esse princípio, elas seriam cursos de especialização em bandidagem: o sujeito entra na prisão por ter cometido um furto, e sai disposto a praticar um roubo; ou entra por ter cometido um roubo, e sai disposto a praticar um latrocínio. Seja dito que o princípio, rigorosamente falando, precisaria de demonstração empírica para se sustentar. Para isso seriam necessários estudos reiterados com os reincidentes, mostrando como a segunda condenação é ─ ou pelo menos tende a ser ─ por um crime mais grave do que o primeiro. Desconheço se tais estudos existem. Na verdade, como lembra Fernando Salla, “faltam estudos consistentes sobre as taxas de reincidência criminal no Brasil”. Não obstante, ele mesmo informa que “todos os levantamentos parciais feitos pela polícia, pelo poder judiciário ou pelo sistema penitenciário apontam que elas estão sempre acima de 50%” [1]. Trata-se, muito provavelmente, de uma taxa subestimada, porque o “teste crucial de ressocialização” que existe no Brasil é “a taxa de reincidência” [2], que representa apenas aqueles que reincidiram e foram pegos, não a totalidade dos que voltaram a delinquir, fenômeno idêntico ao que também ocorre com a taxa geral de crimes, onde a população carcerária não reflete a população de criminosos, mas apenas aquela parte que foi pega ─ e que é sempre inferior àquela.

Ora, se faltam informações mais confiáveis sobre os números da reincidência, o seu conteúdo é também nebuloso. Na verdade, para ter informações mais precisas sobre essa realidade, seria necessária uma espécie de follow up dos que deixaram a prisão, para saber que rumo deram à sua vida. E, ainda assim, seria bastante discutível se o que operou no caso dos que não reincidiram foi efetivamente um processo de ressocialização. O que estou sugerindo, ao menos como hipótese de trabalho, é que isso se deve principalmente não ao que a prisão operou neles, mas à natureza do crime que cometeram e à vida ─ familiar, ocupacional, social, etc. ─ que já tinham antes da prisão, e que bem ou mal puderam retomar depois que de lá saíram. Ou seja: é bastante razoável supor que não existe uma taxa geral de reincidência aplicável aos criminosos independentemente do crime que cometeram. O autor ocasional de um homicídio, por exemplo, é um caso bem diferente de um assaltante cuja ação se insere numa carreira criminosa ─ cuja estada na prisão é apenas um acidente num percurso que começou bem antes e que muito provavelmente continuará depois de sua saída. Dando exemplos bem simples: um homicida passional não é um serial killer. Vejam-se casos famosos como os de Doca Street, Lindomar Castilho, etc. Depois de cumprir pena ─ e malgrado ela, ousaria dizer ─, nenhum dos dois voltou a matar. Nesse caso, estariam ambos ressocializados.

Como quer que seja, excepcionando-se casos como esses, “uma das principais atribuições legais do sistema, que é a reinserção do indivíduo na sociedade, não está sendo cumprida”, conclui Salla [3]. Ou, sendo muito generoso, o sistema carcerário ressocializa apenas um pequeno percentual dos que por ele passaram. Voltando ao senso comum, vê-se assim que é sustentável ─ é verdade que com as nuances e ajustes acima ─ o lugar-comum da prisão como “universidade do crime”. Pois bem, se assim é, torna-se insensato um outro lugar-comum de livre curso na mídia e na opinião pública de um modo geral: “lugar de bandido é na cadeia!”. Dos apresentadores dos nefastos “programas policiais” que poluem a paisagem audiovisual brasileira, aos engravatados comentaristas da Rede Globo e GloboNews, o refrão aparece aplicável a todo tipo de malfeitor e de malfeitoria. As duas coisas são incompatíveis [4]. Afinal, como podemos pretender, sem zonzear o bom senso, que bandidos sejam enviados a um lugar onde farão pós-graduação em bandidagem? Não faz sentido. A menos que a prisão não fosse o que é! É aqui onde entra a perspectiva voluntarista dos bem intencionados militantes da ressocialização, criticando o horror que ela é, mas mantendo intacta a fé em que ela pode ser diferente ─ um lugar que produza o bem da ressocialização. O problema é que, malgrado essa fé, que já dura 200 anos, a montanha continua no mesmo lugar! É tempo de começar a demoli-la.

Experiências históricas reiteradas, mesmo sem fundamento, tendem a se “naturalizar”. As mulheres como seres inferiores, o homossexualismo como doença, etc. sempre pareceram, nas sociedades patriarcais, evidências que ninguém discutia ou punha em xeque. Hoje já não se sustentam. O famoso “lugar de bandido é na cadeia” é também uma dessas verdades sólidas, indiscutíveis ─ até que saltemos o muro de giz da inércia e perguntemos: por quê? Quem se faz essa pergunta a sério constata que a prisão, pelo menos como lugar de ressocialização, é uma ideia às voltas com uma incongruência fundamental: como seria possível reinserir alguém na sociedade segregando-o dela? Há algum sentido nessa ideia aparentemente sem pé nem cabeça? No começo, sim, parecia haver. É bom lembrar que a ideia de confinamento como método de redenção é de origem eclesiástica, “tendo sempre sentido de penitência, meditação e oração, a fim de provocar o arrependimento e a emenda” [5]. Penitenciária, é bom sempre prestar atenção às palavras, designa um lugar de penitência... Em 1779, isso foi dito com todas as letras por um dos fundadores da prisão como pena, o filantropo inglês John Howard, para quem as prisões seriam “regiões de culpa, sofrimento e remorso”. O trabalho, a disciplina monástica, o silêncio e o isolamento seriam os seus instrumentos. Como bom puritano, a sua receita não continha nenhuma doçura: “acrescentar o peso da monotonia ao terror da solidão” [6]. A prescrição nunca funcionou. Compreende-se. Trata-se, afinal, de uma típica ideia fora de lugar. E como! Uma coisa é um pecador, no mundo medieval ─ onde a Igreja é a maior autoridade e a salvação da alma o maior bem ─, ser confinado em nome de valores que, muito provavelmente, são legítimos junto à sua própria consciência; outra, bem diferente, é um criminoso numa sociedade moderna, dentro da qual as autoridades tradicionais esgarçaram-se e onde o maior bem é o consumo, ser encarcerado por uma justiça que ele odeia e despreza. Isso não quer dizer que a ideia, por mais estapafúrdia que seja, não tenha produzido resultados ─ no caso, o oposto de qualquer ideia de ressocialização. É, aliás, o que indicam estudos contemporâneos sobre os efeitos deletérios de longos períodos de confinamento total em presídios de segurança máxima, para onde vão, nos Estados Unidos, serial killers e, entre nós, chefões do crime organizado submetidos ao Regime Disciplinar Diferenciado: alucinação e até mesmo loucura [7].

A prisão é, assim, o lugar onde naufragam as boas intenções (algumas bem cruéis...) dos reformadores penais. Sempre foi. Michel Foucault, um autor lidíssimo no Brasil ─ mas que talvez deva ser lido com mais atenção ─, lembra no famoso Vigiar e punir que a crítica à instituição veio praticamente junto à sua fundação, “pois logo a seguir a prisão, em sua realidade e seus efeitos visíveis, foi denunciada como o grande fracasso da justiça penal”. Ele mesmo lembra que essa crítica “se fixa num certo número de formulações que ─ a não ser pelos números ─ se repetem hoje sem quase mudança nenhuma”: as prisões não diminuem as taxas de criminalidade, provocam a reincidência, favorecem a organização de um meio delinquente, penaliza a família dos presos, etc. [8] E isso já dura quase duzentos anos! Já não será o momento de termos coragem de nada de grandioso esperar dela?

À sua incongruência fundamental ─ ressocializar alguém retirando-o da sociedade ─ junta-se uma outra questão incontornável e que chega a ser uma ironia: a prisão termina por constituir, inevitavelmente, uma nova forma de sociedade! ─ a chamada “sociedade dos cativos” [9]. E aqui o paradoxo é total: “como pode pretender a prisão ressocializar o criminoso quando ela o isola do convívio da sociedade e o incapacita, por essa forma, para as práticas da sociabilidade? Como pode pretender reintegrá-lo ao convívio social quando é a própria prisão que o impele para a ‘sociedade dos cativos’, onde a prática do crime valoriza o indivíduo e o torna respeitável para a massa carcerária?” [10]. Apesar de toda a torrente de críticas, antigas e reiteradas, a prisão permanece. Por quê? É também uma pergunta inúmeras vezes feitas. Conhece-se a resposta de Foucault: ela permitiria gerir a ilegalidade, criando um meio delinquente fechado e útil, seja em termos policiais ─ porque nele a polícia recrutaria seus alcaguetes ─, seja em termos políticos ─ porque a existência de um “meio delinquente” serve de álibi para a manutenção e incremento da repressão que mantém o sistema em funcionamento. A resposta, tipicamente funcionalista (ainda que “de esquerda”...) é brilhante. Mas talvez seja muito especiosa. Talvez, como lembra com bom senso Antonio Luiz Paixão, a prisão permaneça simplesmente por sua função mais óbvia ─ “e, talvez por isso mesmo, menos enfatizada nos relatos convencionais”: a de retirar criminosos de circulação [11]. Fico com ele.

Resumindo e assumindo as consequências lógicas de tudo o que foi dito, acho que é mais do que tempo de abandonar os discursos legitimadores da prisão, salvo no que diz respeito a essa utilidade bem tangível, ainda assim a ser utilizada com moderação ─ mas efetivamente! O que só será possível se promovermos uma reviravolta no princípio do “lugar de bandido é na cadeia”, irresponsavelmente divulgado pela mídia a propósito de tudo, e encararmos a realidade com um mínimo de serenidade que os números proporcionam. Em 2005 havia mais de 360 mil pessoas cumprindo pena no Brasil [12]. Em sua grande parte, nas condições endêmicas de superpopulação e desumanidade que todos conhecemos. Mas já dois anos antes, em 2003, havia, segundo dados do Ministério da Justiça, cerca de 300 mandados de prisão sem serem cumpridos [13]. O impacto do mero cumprimento da lei, nessas condições, é simplesmente impensável. Haverá ainda alguém suficientemente inocente para acreditar que num país com os déficits em educação e saúde que são os nossos, socialmente mais “legítimos” dos que os déficits em direitos humanos dos presos, algum governo vai investir no sistema prisional recursos, pessoal e meios capazes de torná-lo apto a cumprir pelo menos a “obrigação moral” [14] de garantir a existência do prisioneiro em condições humanamente dignas? Pensar assim significa resignar-se e concluir que não há nada a fazer? Não. Há muito o que fazer.

A primeira tarefa, porque ela é condição de todas as outras, é promover uma mudança drástica na nossa cultura punitiva, destronando o encarceramento da condição de rainha das penas. Esse, aliás, já é um trabalho em curso. Atualmente, mesmo operadores jurídicos não se sentem mais inibidos em reconhecer que a ressocialização através da prisão é uma ideia em “decadência”; que as prisões aparecem hoje “como o que efetivamente sempre foram: aberrantes instituições de repressão” [15]. Quanto a serem instituições repressivas, não há nisso nada de escandaloso. Não há sociedade sem interditos, sem infrações a eles e, portanto, sem castigo. É a tese da normalidade do crime, tão cara a Durkheim, e, ipso facto ─ embora com frequência nos esqueçamos disso ─, da normalidade da repressão. O problema é o seu lado aberrante. Isso, independentemente de conveniências sociológicas, nunca deverá ser eticamente aceito como normal.

Definitivamente, só deve ir para a prisão o criminoso violento e perigoso, cuja liberdade seja uma ameaça à vida e à integridade física das pessoas. Obviamente que em alguns casos, mesmo esse perigo não se apresentando como uma virtualidade real ─ como são em geral os casos de homicídio por motivos pessoais, por exemplo ─, a “consciência coletiva”, como diria ainda Durkheim, não se satisfaria em ver o assassino flanando por aí e prestando serviços comunitários ─ de ralo controle, aliás ─ à guisa de pena. Tirante esses casos, entretanto, boa parte ─ se não a grande maioria ─ dos que estão no sistema carcerário poderia ser apenada com medidas que evitem o confinamento. A cultura das penas alternativas, ainda balbuciante e já um tanto desmoralizada por falta das condições institucionais e materiais de verificação ─ hoje, aliás, em boa parte já pervertidas pela jurisprudência fácil das condenações ao mero pagamento de “cestas básicas” ─, precisa ser levada a sério e seriamente investida. Em termos utilitários, o único argumento realmente válido para justificar a prisão ─ o de que ela, pelo confinamento, controla o comportamento de criminosos ─, compreensível até pouco tempo atrás, já não se sustenta com tanta força num mundo em que, pelas tecnologias disponíveis, é possível ao proprietário de um carro roubado, graças a um minúsculo chip, saber onde o seu veículo se encontra. Se isso é possível com o produto do roubo, também é possível com o ladrão!

Não disponho de informações e dados mais precisos ─ noutros termos: suficiente competência empírica ─ para aprofundar e sustentar melhor esses argumentos. De toda forma, minha intenção foi simplesmente a de animar um debate que precisa ser encarado sem a boa consciência do voluntarismo que nada pode contra montanhas reais. Mas há montanhas e montanhas. As simbólicas, por exemplo. A ideia de prisão como local de ressocialização de infratores é uma delas, e dessa podemos nos livrar.

Luciano Oliveira é professor do Deptº de Ciências Sociais da UFPE. Este texto é a versão escrita, e portanto mais elaborada, de intervenção oral no painel Violência e sistema prisional realizado na Universidade Católica de Pernambuco em 29/05/08.

Notas

[*] Sou grato à professora Valéria Cavalcanti Lins, coordenadora do evento, pelo convite para participar do mesmo; bem como à minha “pibiquiana”, Camila Albuquerque, pelo suporte bibliográfico. Acho que ambas não esperavam que o resultado de sua generosidade fosse tão desencantado...

[1] Fernando Salla. “Os impasses da democracia brasileira – o balanço de uma década de políticas para as prisões no Brasil”. Lusotopie, Bordeaux, França, 2003, p. 427.

[2] Antônio Luiz Paixão. Recuperar ou punir?. São Paulo: Editora Cortez / Autores Associados, 1991, p. 69.

[3] Fernando Salla, op. cit., p. 427.

[4] Quem primeiro me chamou a atenção para essa incongruência foi a pesquisadora Ronidalva de Andrade Melo, da Fundação Joaquim Nabuco (Recife).

[5] Cláudio Luiz Frazão Ribeiro. O mito da função ressocializadora da pena. São Luís: Ampem Editora, 2006, p. 56.

[6] Citado por Edmundo Campos Coelho. A oficina do diabo e outros estudos. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Record, 2005, p. 30-1.

[7] Rogério Nogueira. “Confinamento – O castigo que vai ao fundo da alma”. Ciência Criminal, ago. 2006.

[8] Michel Foucault. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 234-6.

[9] Citado por Edmundo Campos Coelho, op. cit., p. 83.

[10] Id., p. 32.

[11] Antônio Luiz Paixão, op. cit., p. 20.

[12] Cf. Sérgio Adorno. “Crimen, punición y prisiones en Brasil: um retrato sin retoques”. Quorum, Alcará de Henares, Espanha, v. 16, 2006, p. 46.

[13] Cf. Fernando Salla, op. cit., p. 426.

[14] Antônio Luiz Paixão, op. cit., p. 85.

[15] Cláudio Luiz Frazão Ribeiro, op. cit., p. 163.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

ANORMAL E IMORAL



Cristovam Buarque*

No Brasil, é normal seus dirigentes serem vistos e sentirem-se como casta, com privilégios muito além dos direitos aos quais o povo tem acesso. Os serviços de saúde e educação à disposição das famílias dos eleitos são completamente diferentes daqueles dos seus eleitores. Ninguém se espanta com o fato de o teto do salário no setor público ser 25 vezes maior que o piso salarial do professor - cujo valor, apesar de tão pequeno, até hoje, um ano depois de sancionado, ainda é contestado na Justiça, como inconstitucional.

É visto como natural que a parcela rica do Brasil tenha o maior índice de cirurgias plásticas de rejuvenescimento em todo o mundo e a parcela pobre não tenha acesso nem mesmo às mais fundamentais operações; que os 10% mais ricos tenham esperança de vida de 72 anos e os 10% mais pobres de apenas 45 anos. Todos aceitam que milhares peçam esmolas para comprar comida e remédios que enchem as prateleiras de farmácias e supermercados.

Considera-se normal que os 1% mais ricos da população recebam 20,5% da renda nacional e os 50% mais pobres recebam apenas 13,2%; que 19% das casas não tenham água encanada e 51% não tenham saneamento ou esgoto. Aceitamos que 50 milhões dependam de ajuda no valor de R$182 por mês para a sobrevivência de toda a família, R$6 por dia, sem chance de trabalho com salário digno.

É natural que crianças vivam nas ruas, sejam mendigos, pivetes, prostitutas, trabalhadores, e não estudantes; que 11% delas cheguem aos 10 anos sem saber ler; e 60 abandonem a escola a cada minuto do ano letivo, antes da conclusão do Ensino Médio; e que entre as que permanecem, muitas vejam a escola como um restaurante-mirim que fornece merenda. É aceito que os professores tenham a menor remuneração entre os profissionais com formação equivalente; que deem aulas em escolas sem água nem luz, raras com computadores e sistemas de vídeo. Ficou normal que as escolas tenham se transformado em campos de batalha, os professores sejam agredidos, as aulas viraram balbúrdia.

Mesmo sem guerra, nos acostumamos com 125 mil pessoas mortas por ano em conseqüência da violência. Aceita-se que o país com um dos cinco maiores territórios do mundo - além de litoral e espaço aéreo - não apoie suficientemente suas Forças Armadas para defenderem esse patrimônio.

Não discutimos sequer o fato de conviverem 4,5 milhões de universitários ao lado de 14 milhões de analfabetos adultos e 40 milhões de analfabetos funcionais; de que, 121 anos depois da abolição da escravatura, a cor da elite seja tão predominante branca quanto era durante a escravidão; é aceito como normal que as universidades sejam ocupadas, na imensa maioria, por jovens brancos e as prisões, por jovens negros; que em 120 anos da República, o Brasil tenha uma escola diferente para os ricos, na qualidade, da escola para os pobres; e que, depois de 20 anos de democracia, a corrupção seja vista como uma prática comum em todos os níveis da sociedade, especialmente entre os políticos.

É normal que nossas reservas florestais sejam devastadas sistematicamente; e que apesar de todas as evidências da catástrofe do aquecimento global, abramos mão de bilhões de reais em impostos para viabilizar o aumento na venda de automóveis privados, sem buscar uma reorientação dessa indústria, como forma de manter o emprego do trabalhador, o bem-estar do consumidor e o equilíbrio ecológico, a serviço das próximas gerações.

É normal prender quem rouba comida ou remédio para os filhos e deixar solto quem rouba bilhões mas pode pagar bons advogados.

E é normal, nos dias de hoje, que os partidos que lutavam contra as injustiças tenham optado pelo abandono dos sonhos, entregado-se às mesmas práticas do passado e esquecendo-se de suas promessas. Na República, que comemora 120 anos, é normal que a justiça, a escola, a saúde, o transporte, a moradia, a cultura sejam tão diferenciadas, conforme a classe social, que as pessoas não pareçam compatriotas.

No Brasil, o anormal é normal; por isso, o normal é anormal. E imoral.

*Senador da Republica pelo PDT

Fonte: Artigo do senador Cristovam Buarque publicado no jornal O Globo de sábado, 18 de julho.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

GELADEIRA PARA ESQUIMÓ



David Pennington*

Quando da derrocada da economia da borracha, a partir de 1913, e mais precisamente no intervalo da primeira e segunda guerra mundial, a “Booth Line”, empresa de navegação do período áureo da borracha do vale amazônico, encontrou como alternativa ao modelo econômico da borracha amazonense, o turismo. Um folheto datado de 1923 assim propunha aos potenciais turistas britânicos e europeus:

“1000 milhas Amazonas acima”
Cruzeiros de seis semanas da Booth Line. (...) Dias serão passados em cidades com reminiscências do velho Brasil. (...) A umas dez milhas da Manaós o vapor abandona o curso principal do Rio Amazonas e entra no Rio Negro. O encontro das águas desses dois gigantes traz-nos uma cena de extraordinário interesse. Como o nome mostra, as águas do Rio Negro são compostas de águas preto-azuladas, e isto forma grandes manchas e redemoinhos em miniatura no meio do dilúvio amarelo Amazônico. Tão distintos são os contornos, que a proa do navio está flutuando na água escura do Rio Negro, enquanto a popa ainda está navegando na água amarela do rio Amazonas. Manaós (...) a mil milhas da civilização (...) possuindo todas as conveniências modernas, como luz elétrica, bondes, teatros, cafés e jornais diários (...) É uma cidade limpa, ninguém teme se alimentar de sua comida ou beber de sua água (...) Dias na floresta ensolarada, em Campos Salles, Flores e São Raymundo, tardinhas nos cafés ou bangalôs fazem o tempo passar depressa demais. (...) O mercado de Manaós é um lugar para o caçador de curiosidades (...) O Amazonas é o Rio do mistério, e traz alimento para os pensamentos e romance, muito depois das viagens a outras terras terem desaparecido da memória.

Então... Se olharmos hoje em volta do que resta do centro da cidade de Manaus, o que vemos é um ambiente urbano modelo, patrimônio herdado dos esforços dos nossos avós, em avançado estado de dilapidação.

Uma cidade única como esta, a 1500 km do oceano Atlântico. Imagine, com duas ou três linhas de bonde, casarões com finalidades sócio-culturais... Vários museus, interligados a centros culturais on-line. Programações para atrair maciçamente diferentes tipos de turismo, desde aquele que cultua o exótico, passando por um turismo ambiental, até um turismo de inteligência, da geografia, geologia e história do Amazonas. Mas não. Teimam os artífices desta realidade em permanecer na contramão da história. Os bondes são um exemplo, temo-los em Praga, Berlim, Lisboa; em Frankfurt foram recolocados nos trilhos como opção de transporte coletivo com características de pouca agressão ao meio ambiente.

Agora, um projeto para construir um imenso porto, ameaçando destruir esse patrimônio que é o Encontro das Águas, além dos sítios arqueológicos e paleontológicos na área (lembra de Angra dos Reis, uma região parasidiaca ameaçada com a presença de uma usina nuclear?)

Os descendentes mestiços dos Baré continuam aceitando espelhinhos e apitos. Um Jardim Botânico, com um eminente arquiteto como garoto-propaganda. Aliás, muitas de suas obras espalhadas por Manaus, já foram destruídas e maculadas sem a menor cerimônia. Enfim, um jardim botânico, quando temos a floresta amazônica? Estão a vender geladeiras para Esquimó.

*David Pennington é professor Doutor da Universidade de Brasília e autor do livro "De Manaus A Liverpool" (2009), EDUA.

PLANETANIA

*Cristovam Buarque

Deve-se ao ex-governador do Acre, Jorge Viana, a criação da palavra “florestania”, em contraposição a “cidadania”. À palavra diferente corresponde um conceito diferente. Cidadania se refere a direitos e responsabilidades dos moradores das cidades democráticas. O termo está vinculado aos direitos e deveres dos cidadãos-urbanos, distantes dos moradores das florestas e ainda mais da própria floresta. Florestania significa a cidadania adaptada aos moradores da floresta e a responsabilidade deles com o meio ambiente natural onde vivem. Apesar de um enorme avanço, esse novo conceito ainda ficou restrito ao local.

No entanto, a civilização de hoje exige um salto que vá além da cidadania e da florestania locais, que nos dê uma visão de cidadania e florestania em escala mundial: a “planetania”.

A planetania deve ter cinco características essenciais. Primeiro, diferentemente da cidadania e da florestania, ela deve ser global. Mesmo agindo nos limites de cada país, a cidadania não permitirá ações que tenham influência nos assuntos de toda a civilização. Os problemas de hoje exigem enfrentamentos globais. A cidadania não pode mais se limitar às eleições dentro de um país ou cidade, ela deve levar em conta a responsabilidade e os direitos de cada cidadão para com o mundo todo. O meio ambiente, o terrorismo, a economia, a migração, a ilicitude, o tráfico, as drogas, qualquer problema da vida social, está vinculado ao resto do mundo. Cada país faz parte do condomínio Terra, cada pessoa já não é somente cidadão de um país: faz parte de toda humanidade.

Segundo, a planetania precisa estar relacionada com a natureza. Não há cidadania moderna que não leve em conta o rural, as florestas, a água, a terra arável. Além de global, a nova cidadania deve ser ecológica. A simples relação política entre os seres humanos, independentes da natureza, não permite a construção do mundo melhor que a cidadania busca. A planetania tem de levar em conta os aspectos ambientais com a mesma preocupação que tem com os aspectos da economia e da sociedade.

Terceiro, a planetania deve ser socialmente solidária em escala global. Em um tempo em que as informações são globais e instantâneas, qualquer lugar do mundo está dentro de qualquer sala em qualquer outra parte do mundo e o sofrimento de qualquer pessoa deve ser um sentimento global. Ninguém deve assistir em silêncio às tragédias das doenças na África, do desemprego na Europa. Da mesma forma como a globalização já permite o sofrimento e a solidariedade com os passageiros do acidente de um avião, é preciso que fome, doença e todo sofrimento que acontece no mundo sejam capaz de sensibilizar cada pessoa do mundo. Eticamente, não se justifica o abandono dos problemas sociais de países e regiões distantes.

Quarto, a planetania, diferentemente da cidadania, tem uma percepção de longo prazo dos assuntos do mundo. A cidadania busca defender os cidadãos de hoje nos seus interesses imediatos e pessoais; no máximo, os interesses de curto e médio prazos das cidades ou do país. A planetania olha com responsabilidade para o longo prazo e para todo o planeta.

Quinto, a planetania significa um compromisso global com a educação no mundo inteiro: com a garantia de igualdade de oportunidade a cada indivíduo e criação de uma mentalidade planetária. Em vez de centrar o processo civilizatório e o desenvolvimento no avanço e no crescimento econômico, a planetania defende uma revolução global pela educação de qualidade igual para todos.

*Senador da Republica pelo PDT

Publicado no Jornal do Commercio.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

GOVERNANÇA AMBIENTAL



No passado, os clássicos das ciências naturais e humanas se notabilizavam por propor e inventar uma matriz de pensamento capaz de compreender a totalidade da natureza e das relações do homem. Essas construções teórico-metodológicas recorriam a diversas representações materiais para explicar os fenômenos em seus diversos campos.

As explicações decorrentes valiam-se dos conceitos de natureza, corpo, humanidade, tempo, homem, terra, sol, alma, deuses e tantos outros, compreendidos de forma analógicos com propósito de responder as indagações que povoavam as inquietações dos intelectos agentes do presente.

As inquietações continuam, mudaram-se as matrizes e as atitudes. No entanto, no campo da epistemologia da ciência novas indagações são postas, às vezes pautadas na transversalidade ou no estudo de ponta, verticalizando a pesquisa sobre uma determinada fração do problema.

Contudo, não mais reduzido a dogmática de uma determinada observação imposta em forma de lei imutável, contrariando a especificidade da matéria quanto à complexidade dos fatos. Foi assim que se formularam as políticas teocêntricas, geocêntricas, bem como o antropocentrismo histórico, negando o outro e sua diversidade em favor do imperativo dominante diluviano.

Essas práticas todas passam a ser alteradas a partir das transformações promovidas nas estruturas de poder de Estado e suas formas de governo. Assim, inicia-se no século 20 a discussão e formulação de novos paradigmas buscando compreender as relações do homem com a natureza, encerrando em si, a construção de novos conceitos para dar conta da diversidade e complexidade das relações.

Veja por exemplo, o conceito de cultura, sociedade, meio ambiente, ecossistema, poder e tanto outros, que direta ou indiretamente denunciam práticas transversais ou autoritárias. É o caso da Governança Ambiental, em se tratando de uma unidade conceitual determinada por formas de participação estruturante numa conjuntura política democrática, em atenção à gestão ambiental de determinado território nacional fundamentado nas relações da sociobiodiversidade.

No dia mundial do meio ambiente é oportuno que se avalie as práticas dos governantes quanto à Governança Ambiental, não mais como um conceito em si encarnado num determinado programa ou reduzido a uma secretaria, ministério ou agência, mas, sobretudo, como políticas públicas promotoras de valores mediados por programas curriculares educacionais, culturais e sociais sob o controle das populações e de seus agentes representativos no corpo das organizações sociais.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

BLINDNESS: UMA OBRA PRIMA INJUSTIÇADA

Ricardo Lima*

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Livro dos Conselhos
.

Quando o filme Blindness foi lançado em 2008, uma adaptação do livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, muitas foram as criticas negativas que foram dirigidas contra ele.

Sempre dizem que um grande livro nem sempre é um grande filme. Felizmente, ao contrario das opiniões injustas, isso não se aplica a este mais recente projeto de Fernando Meireles, que já provara a sua competência em produções como Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel. O filme reproduz toda a grandeza da obra prima do escritor luso — uma grande critica á distopia da vida moderna, que nos mergulhara num grande oceano de cegueira e, agora, tão envolvidos em pré-conceitos e pré-noções, nos é impossível enxergar as pessoas como elas realmente são — e a única forma de sair deste auto-engano seria admitir nossa ligação inequívoca com o próximo e aceitá-lo como realmente é.

José Saramago inicia seu livro num dia comum de uma grande cidade de um país qualquer. Poderia ser Portugal, Estados Unidos, Inglaterra, França ou Brasil. Uma cegueira repentina envolve um homem que está parado no transito, para logo em seguida a treva branca se espalhar de maneira incontrolável por todo o país, mergulhando-o num verdadeiro caos. O narrador não dá nenhuma explicação para as razões que desencadearam a epidemia, fato que o aproxima da tradição do realismo fantástico e do absurdo iniciada por Franz Kafka. Deste modo, os cegos, postos em quarentena, são obrigados a desenvolver novas formas de sociabilidade, e enxergar coisas que estão além da superficialidade das aparências. O autor descreve, com uma quantidade de detalhes realmente impressionante, as novas relações com que os cegos vão tecendo entre si — como sempre somos brindados pela prosa elegante de Saramago, uma verdadeira aula de como escrever bem e com estilo, com inversões sintáticas e períodos longos e tortuosos.

O diretor também segue a tendência universalista do livro, reunindo atores das mais variadas nacionalidades e filmando em vários locais do mundo, um dos lugares usados nas filmagens foi o minhocão, em São Paulo. Os personagens, assim como no opúsculo, não são apresentados com seus respectivos nomes, mas a partir das suas profissões (como o médico interpretado por Mark Ruffalo), alguma característica marcante (o velho da venda preta vivido por Danny Glover) ou por alguma relação que lhe é marcante (a mulher do medico na pele de Julianne Moore) — uma forma clara de tentar realçar a maneira superficial como nós nos referimos àqueles que estão a nossa volta.

Meireles também representa de maneira convincente a decadência do centro de quarentena, com suas paredes e pisos ao se emporcalhando aos poucos, tomadas por toneladas de lixo, fezes e toda sorte de dejetos, assim como o estado da cidade depois de tomada pela treva branca, completamente dominada por dejetos e cegos perambulando pelas ruas como zumbis de filmes de terror.

A rotina no centro de quarentena mostra de forma perspicaz uma metáfora sobre a formação do Estado entre os homens. Dividido em câmaras, cada cego se identifica com o salão no qual dorme, quando são subitamente subjugadas por uma delas, a câmara numero 3, liderada pelo ex atendente de bar (interpretado por Gael García Bernal, o Che Guevara de Diário de Motocicleta). Munidos com um revolver e outras armas, os indivíduos da câmara 3 tomam a comida que outrora era repartida igualitariamente e avisam que só vão distribuí-la mediante pagamento de qualquer coisa de valor que os outros cegos possam lhes dar. Tal acontecimento lembra a tese da formação dos estados nacionais, desenvolvida por Weber: um grupo político se impõe aos demais, desarma-os e, mediante o privilegio do uso exclusivo da força, passa a cobrar tributos.

Uma das cenas que sem dúvida estava com grande expectativa para ver era a do estupro coletivo. Saramago descreveu este acontecimento com uma imparcialidade constrangedora, como se fosse mais uma cena do cotidiano — descrever cenas dramáticas da maneira mais normal e as cenas mais prosaicas com grande dramaticidade é um elegante recurso estilístico usado pela literatura contemporânea — Meireles, entretanto, pinta o estupro com tintas fortes, chocantes, sem nenhuma concessão; o resultado foi uma visão verdadeiramente infernal, e mostra a medida exata da barbárie dominante no centro de quarentena. A diferença entre o cineasta e o escritor está necessariamente numa questão de perspectiva; se o português mostra o estupro com a imparcialidade do narrador, Meireles parece tentar transmitir para quem assiste o nível de desespero e degradação daquelas mulheres.

Um dos pontos fracos, porém, está na maneira superficial como é tratada o romance existente entre o homem de venda preta e a mulher dos óculos escuros (Alice Braga), o livro mostra meticulosamente uma afinidade que vai surgindo aos poucos, para além da diferença de idade entre os dois, culminando de forma inteligente com o romance; também fica a desejar o personagem do próprio homem de tarja preta, pois na pena de Saramago ele alcança uma verdadeira atitude de agente catalisador das reflexões do livro. Seria este personagem o alter ego do escritor? No longa metragem, porém, ele não chega a ter uma importância secundária.

Mas existe um detalhe onde a adaptação consegue ser superior ao livro (os leitores mais ortodoxos que me perdoem), e ele está exatamente na forma de como é representado o Rei da câmara 3. Se no livro ele é simplesmente um vilão unidimensional que resolve com os seus asseclas tirar proveito da barbárie, em Blindness ele ganha uma postura muito mais humana, como quando o vemos trabalhando no bar antes de ser contaminado, imitando Steve Wonder logo depois de ter tomado o poder, num dos momentos mais engraçados da filmagem, ou simplesmente agindo como um verdadeiro político, quando o medico vem até a câmara 3 e pede ajuda para enterrar alguns corpos, e o líder responde que, em vez disso os seus colegas vão se alimentar.

Questionador e inteligente, Blindness nos pergunta como recuperar o afeto numa época de total desencantamento, em que os contatos entre os indivíduos são perpassados por relações puramente instrumentais, onde permanecemos alienados tanto de nós mesmos quando para os outros.

Somos ao terminar de assisti-lo, tomado pelo frêmito de tentar enxergar as coisas como elas realmente são, pois, como disse um dos personagens: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.”

Provavelmente o real valor deste filme só venha a ser percebido em anos vindouros, quando ele for agraciado, com todo o mérito, com o titulo de clássico.

*Editor, pesquisador do NCPAM e mantenedor do blog http://www.paginasperdidas.wordpress.com/

segunda-feira, 4 de maio de 2009

REPÚBLICA INCOMPLETA

Como educador durante 30 anos, pude constatar o quanto a nossa juventude (mesmo a de classe média alta) desconhece completamente o melhor de nossa música, de nossas artes plásticas, de nossa literatura, do nosso teatro da nossa cultura popular.Essas coisas não chegam à expressiva maioria dos jovens, ao nordeste,ao norte-centro-oeste, à periferia das grandes cidades, nem se conectam minimamente com as salas de aula do nosso ensino médio ou superior.

*Por Jorge Pontual

Em breve, duas propostas que podem mudar substancialmente esse país estarão indo ao congresso nacional a fim de serem debatidas e votadas.

Interessante que, a meu ver, elas são complementares e filhas da mesma essência democrática e republicana: a proposta de mudança da Lei Rouanet, do MINC, e a proposta do senador Cristovam Buarque, pela qual daqui a sete anos TODOS os filhos de detentores de mandato eletivo – de vereador a presidente da república – devem ser matriculados na rede pública de ensino.

Sabemos todos que as desigualdades sociais e econômicas são, em muito, eternizadas pela má-distribuição da informação.Isso ocorre de duas formas: primeiro, pelo sucateamento e abandono da rede pública de ensino, disponibilizando aos filhos do povo uma escola de péssima qualidade, com currículos defasados e professores mal formados e insatisfeitos; segundo, pela negação ao acesso aos bens culturais ( teatro, cinema, exposições, livros) a grande parte do povo brasileiro, vez que a lei de incentivo cultural que nós temos promove a concentração desses bens no eixo Rio-São Paulo, submetendo o resto do país ao lixo da programação da TV aberta ou a nenhum conhecimento do nosso invejável patrimônio artístico.

Como educador durante 30 anos, pude constatar o quanto a nossa juventude (mesmo a de classe média alta) desconhece completamente o melhor de nossa música, de nossas artes plásticas, de nossa literatura, do nosso teatro da nossa cultura popular.Essas coisas não chegam à expressiva maioria dos jovens, ao nordeste,ao norte-centro-oeste, à periferia das grandes cidades, nem se conectam minimamente com as salas de aula do nosso ensino médio ou superior.


Não podemos falar de violência urbana, de alto consumo de drogas, de morte das utopias sem levarmos seriamente em conta a inexistência do estímulo intelectual que vem de uma boa formação escolar ou do contato com instigantes conteúdos culturais.

As duas propostas estão aí, no centro do debate nacional.Claro que os eternos inimigos do nosso desenvolvimento educativo-cultural já começaram a exibir suas armas para detoná-las.É fácil de identificá-los: são os mesmos “senhores de engenho” ou “feitores da senzala” hoje travestidos de senadores, deputados, empresários, produtores culturais que ocupam os meios de comunicação para tentar desqualificar os dois projetos.Olho neles! Vamos bombardeá-los com uma “tempestade de e-mails”, numa grande “cybermobilização” , usando a internet, as salas de aula, os escritórios de trabalho, as mesas de bar, a turma da academia.Está em nossas mãos a chance de desatar o grande nó do atraso brasileiro e finalmente completarmos a abolição e a república que permanecem como obras inacabadas.

*Educador, poeta e compositor, do Núcleo Educacionista de Salvador - Bahia.


Do blog Cidadania e Justiça

quinta-feira, 30 de abril de 2009

OS NOVOS RUMOS DA LITERATURA AMAZONENSE

Durante tanto tempo ocupada em retratar, principalmente, o universo do ribeirinho, do caboclo ou do indígena e suas angústias na luta de sobrevivência frente à floresta amazônica, como fez com tanta maestria pelo natural de manicoré Arhur Engracio, e alcançou o seu ápice em rigor estético com o português Ferreira de Castro, foi nada mais que uma arte fruto de uma estrutura social “ruralizada” e tradicional outrora predominante na Amazônia. Mas esse tema, que para muitos foi alvo de preconceito, tem perdido cada vez mais importância, ou pelos menos cada vez de dividir seu espaço com uma literatura mais urbana (como disse o escritor Max Carpentier), que só agora ganha mais espaço em nossa cena literária.

Ricardo Lima*

Karl Marx, no seu magistral A Ideologia Alemã, ao analisar como as estruturas econômicas exerciam uma influência avassaladora sobre a mentalidade dos indivíduos, produziu uma teoria de tamanho impacto sobre o século XX que boa parte dos sociólogos a partir dele se ocuparam em negar ou ratificar suas idéias.

De fato, as condições econômicas influenciam a vida espiritual de um povo, muito embora o fator econômico não seja determinante. Isso Marx já afirmara no Capital. Infelizmente muitos daqueles que tanto criticarem-no tenham esquecido, ou mesmo desconheça por completo, que ele tenha, na sua obra mais importante, reformulado muitas das idéias do materialismo histórico.

Quando se fala em vida espiritual, não se engloba apenas a concepção de religião ou as crenças morais, se inclui também a produção intelectual, a arte e, portanto, a literatura. Então, tomando esse direcionamento, o escritor, como qualquer outro cidadão, é alguém que sente a angustia, as aspirações e idéias de seu tempo, ou seja, é influenciado por esta “produção material” que Marx descobrira; um dos fatores que impulsiona a evolução do fazer literário é a dialética da sociedade, tendo por conseqüência nestes homens, escritores e sujeitos da história, a ânsia por resolver e entender a dinâmica do meio onde vivem, e não simplesmente uma necessidade de superar seus mestres, como afirma o teórico literário Harold Bloom; que o diga então Emile Zola, que tentou criar uma escola literária capaz de equipara-se ás conquistas científicas de seu tempo, o resultado foi o Naturalismo.

Mas onde pretendo chegar com essa explanação é decifrar o novo rumo que a literatura amazônica está tomando; durante tanto tempo ocupada em retratar, principalmente, o universo do ribeirinho, do caboclo ou do indígena e suas angústias na luta de sobrevivência frente à floresta amazônica, como fez com tanta maestria pelo natural de manicoré Arhur Engracio, e alcançou o seu ápice em rigor estético com o português Ferreira de Castro, foi nada mais que uma arte fruto de uma estrutura social “ruralizada” e tradicional outrora predominante na Amazônia. Mas esse tema, que para muitos foi alvo de preconceito, tem perdido cada vez mais importância, ou pelos menos cada vez de dividir seu espaço com uma literatura mais urbana (como disse o escritor Max Carpentier), que só agora ganha mais espaço em nossa cena literária.

O progresso, esta força inexorável, que destrói as antigas relações de produção para criar uma outra, racional e competitiva, recomeçou no Amazonas, depois de décadas de torpor após a decadência da borracha, nos anos sessenta. As condições materiais de existência, em constante urbanização, “em suas disparidades e antagonismos” (para usar uns termos de Octavio Ianni), chama cada vez mais atenção desses escritores, principalmente os da nova geração. Os temas típicos de grandes metrópoles, crimes, narcotráfico, desemprego, a miséria das periferias — no nosso caso a problemática das invasões... O desespero do cidadão frente a um modelo social que tende a relegá-lo ao anonimato, estranho tanto para com os outros quanto para consigo mesmo, incapaz de gerir relações com base emocional, enfim, o homem que estes novos escritores, enfocam é um ser individualista que tem por base o cálculo em suas relações com o outro, enxergando os homens como meios que, se bem aproveitados, se pode chegar a um fim especifico...

Mas esse processo de urbanização não ocorre de maneira tão mecânica como se pode imaginar, com a simples substituição do tradicional pelo moderno. Como já foi constatado por estudiosos da urbanização na América Latina, como Rubem Oliven, Gilberto Velho e Florestan Fernandes, o desenvolvimento no nosso continente foi desigual, tardio, dependente e combinado, portanto, as estruturas modernas convivem de forma hora tensa, hora harmônica, com o tradicional.

A mesma tensão entre tradicional e moderno ocorre em nossa região, com a cultura cabocla dividindo espaço com formas culturais e econômicas racionalizadas. Estes novos escritores, entre os quais eu me incluo, mostram em seus textos esta referida ambigüidade do entrelaçamento entre a cultura tradicional amazonense e o impulso capitalista vindo dos grandes centros.

A nova literatura amazonense começou a mostrar sua face na década de 70, época em que o clube da madrugada dava sinais de esgotamento; entre um de seus primeiros registros é a obra “O Tocador de Charamela” do já falecido Erasmo Linhares, volume de contos que, embora com algum toque de prosa rural, já mostrava a tônica do que viria ser uma nova tendência dos artistas “barés”, o enfoque de um “mundo cruel, mesquinho e desumano,” como escrevera Tenório Teles no prefácio da obra.

Na ânsia de compreender a mutação social da sociedade amazonense, os novos escritores acabam, mesmo que inconscientemente, também por desenvolver uma nova forma de linguagem artística para interpretar o mundo amazônico.

*Editor e pesquisador do NCPAM

terça-feira, 28 de abril de 2009

LITERATURA NA AMAZÔNIA

No Grão Pará a economia era fundada na produção manufaturada, a partir das transformações do látex. Era uma indústria florescente. Produzia objetos de fama mundial, como sapatos e galochas, capas impermeáveis, molas e instrumentos cirúrgicos, destinados à exportação ou ao consumo interno. Baseava-se também na indústria naval e numa agricultura de pequenos proprietários. O marquês de Pombal nomeara seu próprio irmão, Xavier de Mendonça Furtado, para dirigir a colônia, com o intento de reter o processo de decadência do Império português que dava mostras de ser incapaz de acompanhar a evolução do capitalismo da I Primeira Revolução Industrial.

Márcio Souza*

Começo por duas afirmações necessárias. Não há uma literatura amazônica. E na origem, a Amazônia não era Brasil. No que diz respeito à primeira afirmação, o que há é uma literatura que se escreve na Amazônia, e que faz parte – quando merece - do corpus da Literatura Brasileira. Quanto à segunda afirmação, na verdade os portugueses tinham duas colônias na América do Sul. Uma descoberta por Cabral em 1500,que se chamava Vice Reino do Brasil. A outra se chamava Grão Pará, descoberta por Vicente Iañes Pinzon em 1498.

Esses dois Estados Coloniais se desenvolveram distintamente até 1823, data em que o então Império do Brasil decidiu enviar mercenários ingleses para promover a invasão e a anexação do seu vizinho de língua portuguesa. A violência era naquela altura a única via possível, tão diferentes eram as estratégias, a cultura e a economia dessas duas colônias. O Grão-Pará era um sonho de país independente e não uma fronteira econômica. E nem se chamava Amazônia: esta é uma invenção do Império que foi retomada pela República.

No Grão Pará a economia era fundada na produção manufaturada, a partir das transformações do látex. Era uma indústria florescente. Produzia objetos de fama mundial, como sapatos e galochas, capas impermeáveis, molas e instrumentos cirúrgicos, destinados à exportação ou ao consumo interno. Baseava-se também na indústria naval e numa agricultura de pequenos proprietários. O marquês de Pombal nomeara seu próprio irmão, Xavier de Mendonça Furtado, para dirigir a colônia, com o intento de reter o processo de decadência do Império português que dava mostras de ser incapaz de acompanhar a evolução do capitalismo da I Primeira Revolução Industrial.

Nesse contexto, os escravos tinham uma importância menor do que nos outros lugares.

O Grão-Pará desfrutava, além disso, de uma cultura urbana bastante desenvolvida, com Belém construída para ser a capital administrativa. Ou a sede da Capitania do Rio Negro, Barcelos, que conheceu um importante desenvolvimento antes de Manaus, e para a qual recorrera-se ao arquiteto e urbanista de Bolonha, Antônio José Landi. Em compensação, a colônia chamada Vice Reino do Brasil dependia amplamente da agricultura e da agroindústria, tendo, portanto uma forte proporção de mão-de-obra escrava. Em meados do século XVIII, tanto o Grão-Pará quanto o Brasil conseguem criar uma forte classe de comerciantes, bastante ligados à importação e exportação, senhores de grandes fortunas e bastantes autônomos em relação à Metrópole.

Mas enquanto os comerciantes do Rio de Janeiro deliberadamente optaram pela agricultura de trabalho intensivo, como o café, baseando-se no regime da escravidão, os empresários do Grão-Pará intensificaram seus investimentos na indústria naval e nas primeiras fábricas de beneficiamento de produtos extrativos, especialmente o tabaco e a castanha-do-pará.

A invasão e a anexação do Grão-Pará marcaram o começo de um novo processo e provavelmente, aos olhos das elites do Rio de Janeiro, só poderia ser a força. Para as elites do Grão-Pará, íntimas dos ideais da Revolução Francesa, adquirida na tomada e ocupação de Caiena, logo perceberam que a via da república era mais adaptada à América que um regime monárquico. Os ministros do jovem e impetuoso Imperador brasileiro não podiam admitir tal coisa.

E entre 1823 a 1840, o que vai se ver é um processo de provocação deliberada seguida pôr uma severa convulsão social e a conseqüente repressão. Se me permitirem a comparação audaciosa, foi como se a Guerra da Secessão nos Estados Unidos tivesse sido vencida pelo Sul atrasado e escravagista. Com a guerra civil e a repressão a Amazônia perdeu 40% dos seus habitantes. A anexação destruiu todos os focos de modernidade. Entre o Império e as oligarquias locais, nenhum diálogo era então possível.

*Escritor amazonense ganhou reconhecimento internacional pela originalidade de suas obras, que passaram a ser traduzidas em diversos países do mundo: “Galvez, Imperador do Acre”, “Mad Maria” e tantas outras. http://www.marciosouza.com.br/

sábado, 25 de abril de 2009

AS LETRAS NA PÁTRIA DOS MITOS

A literatura que se faz no Amazonas, seja a escrita pelos brancos quanto a escrita pelos índios, no sonho e na paixão de seus poetas e prosadores, parece nos dizer que se faz necessário reconhecer definitivamente que a natureza é a nossa cultura, onde uma árvore derrubada é como uma palavra censurada e, um rio poluído é como um poema proibido.

Márcio Souza*

Se o Brasil é geralmente dado no exterior como um país de emoções, de irracionalidade, um país primitivo ou até folclórico, não podemos esquecer, no entanto, que ele herdou da colonização portuguesa uma grande capacidade de organização e de planejamento, assim como uma preocupação com os detalhes, Os portugueses sempre fixaram objetivos para si mesmos. Previam cada um de seus passos no continente americano. Por isso mesmo, quando o Grão-Pará se transformou em Amazônia e passou a ser uma fronteira, a colonização portuguesa já tinha desenvolvido uma nova civilização nos trópicos, apta a se desenvolver como uma zona de cultura nacional abrangente, de língua portuguesa, num subcontinente onde se falava inglês, francês, holandês e espanhol, sem esquecer os inúmeros idiomas indígenas, dos quais 32 praticados apenas no Rio Negro.

Estava fecundado o terreno para uma futura cultura brasileira, hoje em plena expansão, que podia negociar com o outro lado da fronteira, com as culturas originais, pré-colombianas, sobreviventes do grande choque, culturas essas que, vale lembrar, estiveram muito tempo na frente da cultura européia, particularmente no conhecimento do eco-sistema regional, antes de serem submersas pela violência do processo colonizador.

Como vimos, a Amazônia é uma invenção do Brasil. Os moradores da Amazônia sempre se espantam ao ver que, talvez para melhor vendê-la e explorá-la, ainda apresentam sua região como habitada essencialmente por tribos indígenas, enquanto existem há muito tempo cidades, uma verdadeira vida urbana, e uma população erudita que teceu laços estreitos com a Europa desde o século XIX. Aliás, nisso residem as maiores possibilidades de resistência e de sobrevivência dessa região.

Com efeito, os povos indígenas da Amazônia logo descobriram que nada conseguiriam se não se apoiassem nesta população urbana que é a única que se expressa nas eleições e exerce pressão sobre a cena política brasileira. A Amazônia conta com uma população de dezenove milhões de pessoas e com nove milhões de eleitores, o que não é pouca coisa.

Embora o Brasil se orgulhe de ter conquistado a Amazônia, o povo amazônico soube resistir e preservar suas peculiaridades. Continua havendo uma cozinha, uma literatura, artes-cênicas, arquitetura, artes-visuais, música, uma cultura da Amazônia. Há uma maneira de ser do homem do extremo norte, que nunca será aniquilada. O que precisamos é intensificar as trocas entre as culturas regionais brasileiras, muitas delas com passados semelhantes, unidas pelo sentimento de brasilidade e irmanadas pelo agridoce idioma de Camões. É sobre uma dessas peculiaridades, a literatura que se escreve no Estado do Amazonas, o meu estado, que vou agora tentar vos apresentar.

Os primeiros europeus a escreverem sobre a Amazônia foram cronistas como Frei Gaspar de Carvajal, Cristobal de Acuña, João Daniel, Simão Estácio da Silveira e o padre Antônio Vieira. Durante a fase da conquista e da penetração, o relato pessoal e surpreendido dos viajantes desempenhou na cultura o papel que a economia das especiarias foi para o mercantilismo. Foram esses relatos que posteriormente serviram, em grande parte, na orientação, classificação e interpretação da região como literatura e ciência.

A Amazônia abria se aos olhos do Ocidente com seus rios enormes como dantes nunca vistos e a selva pela primeira vez deixando se envolver. Uma visão de deslumbrados que não esperavam conhecer tantas novidades.

A literatura colonial nos legou uma forma determinada de expressar a região, particularmente curiosa e assustadoramente viva. Perdendo a agressividade, essa literatura repete se hoje de maneira conformista e mistificadora. O espírito simulador da literatura colonial legou o velho e gasto conceito da “Amazônia, celeiro do mundo”. Sua permanência é hoje a comemoração do assalto indiscriminado meio ambiente, da transformação da grande hiléia em deserto e que pela retórica verga a espinha para os interesses econômicos internacionais.

Mas foi um soldado lusitano investido de poeta que inaugurou a literatura de língua portuguesa na Amazônia. E de uma maneira sintomática. ,A Muhraida, ou a conversão do gentio Muhra Henrique João Wilkens, autor de louvou a subjugação da nação Muhra pelas tropas portuguesas, criando uma poesia do genocídio. Além de ser a primeira tentativa poética da região, representa um documento histórico inestimável.

Publicado em Lisboa, pela Imprensa Régia, no ano de 1819, quase trinta anos depois de sua confecção, é o trabalho de um homem que se envolveu diretamente no contato com os Muhra, habitantes do rio Japurá, onde exercia o cargo de Segundo Comissário até 1787.

Canto de glória e certezas, nele já se pode observar todos os prenúncios da decadência interna da epopéia. Não apenas por se tratar de uma obra medíocre, fruto talvez de um coração arrebatado pelos ócios da caserna, e pela fidelidade muito típica do militar com pendores artísticos, o certo é que a obra carrega esta corrupção estilística.

Não podemos encerrar este passeio pelo nascimento das letras amazônicas, sem uma referência aos povos indígenas. Do outro lado da fronteira cultural que se formou com a destruição do Grão-Pará e a criação da Amazônia, nos espreita uma amplidão criadora, uma tradição milenar que produziu literatura de rara beleza e complexidade, fábulas de rara crueza, forte e sensível expressão de forças primevas, cuja elegância seduziu homens como o conde Er-manno Stradelli, que veio para a região em 1890.

Foi com este fidalgo, etnógrafo, rico, corajoso, um herói romântico típico da Amazônia, que a lírica dos povos indígenas começou a ser revelada dentro de uma compreensão artística antes que etnográfica. Seus livros, como Leggenda del Taria, coleção de contos e narrativas heróicas, ou La Leggenda Del Jurupary, um belíssimo registro da saga do grande legislador, antecedem Raul Bopp na reivenção literária do mundo amazônico. Leggenda del Taria, lembra muito o antigo romance de amor, um gênero literário que crava suas raízes na mais cara tradição literária italiana.

As descrições em versos do cenário, os gestos cavalheirescos, a renúncia final dos conten¬dores frente à carnificina, fazem desta saga uma fábula mi¬leseaca do rio Vaupés. Stradelli encontrou na narrativa fabu¬losa dos tariana uma linguagem apenas nascida, como é de nascimento o êxtase de Raul Bopp. E não é por pura associa-ção de idéias que Nunes Pereira, em 1966, intitula sua monumental obra de Moronguetá, um Decameron Indígena. Sem interferir na redação dos mitos, Nunes Pereira registra um estilo rico, ma¬tizado e sem grilhões.

Um registro de mito e comportamentos que para Lévi Strauss “estocam e transmitem informações vitais assim como os circuitos eletrônicos e a fita magnética de um computador o fazem”. Reconhecendo esta autoridade do mito, poetas como Stradelli defendem a primeira realidade da região, realidade maior e mais relevante, pela qual está determinado o próprio destino da Amazônia.

Conhecendo isto, estes “se¬gredos profundos, sedutores e envolventes como certos cipós que se cobrem de flores para fingir fragilidade”, como bem escreveu Câmara Cascudo a respeito de Stradelli, descobrimos que vivemos num mundo onde o mito ainda vive e o relacionamento do homem com a natureza é ainda o mesmo relacionamento dos deuses com a sua criação. Mas hoje os deuses foram banidos para a penitenciária da etnografia, o status ontológico do mundo está traduzido pelo potencial de energia elétrica.

O esforço de Stradelli se repetiu nas obras de J. Barbosa Rodrigues e Brandão de Amorim, autores de antologias como Lendas em Nheengatu e Português e Poramdubas Amazonenses. Mas foi somente em 1985 que um primeiro autor totalmente indígena pode responder o diálogo proposto pelo fidalgo italiano. Trata-se de Luis Lana, cujo nome em dessana é Tolomen-ken-jiri, autor de Antes o Mundo não Existia, narração precisa do mito cosmogônico de sua cultura, escrito em português e dessana, sob enormes dificuldades em sua aldeia do rio Tikiê.

Luiz Lana, que nasceu em 1961, filho do chefe de sua tribo, fez o livro preocupado com a preservação do mito da criação do universo, acabou se tornando o primeiro índio a escrever e ter seu livro publicado em 500 anos de história do Brasil. Antes o Mundo não Existia está traduzido para diversas línguas européias e estimulou o surgimento de outros escritores indígenas, que estão tornando vernáculo seus idiomas ágrafos, e são editados pela primeira editora indígena do país, propriedade da FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.

Como podemos ver, a Amazônia é uma das pátrias do mito, onde ainda existe uma unidade entre a natureza e a cultura numa permanente interação de estímulos e afirmação.

A literatura que se faz no Amazonas, seja a escrita pelos brancos quanto a escrita pelos índios, no sonho e na paixão de seus poetas e prosadores, parece nos dizer que se faz necessário reconhecer definitivamente que a natureza é a nossa cultura, onde uma árvore derrubada é como uma palavra censurada e, um rio poluído é como um poema proibido.

*Escritor amazonense ganhou reconhecimento internacional pela originalidade de suas obras, que passaram a ser traduzidas em diversos países do mundo: “Galvez, Imperador do Acre”, “Mad Maria” e tantas outras.


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quarta-feira, 22 de abril de 2009

MEDITANDO SOBRE A VIDA E A MORTE

Não podemos esquecer que Deus sabe valorizar a imprensa. Quando da passagem de Jesus Cristo pela terra, Ele convocou uma equipe de assessores - os 12 apóstolos -, para registrar tudo o que aconteceu durante a sua trajetória neste planeta. Agora é possível que Ele esteja chamando novos assessores, talvez porque vai aumentar a carga de trabalho ou porque os antigos já estejam aposentados, quem sabe cansados ou até mesmo desatualizados. Será?

Manoel Marques*

Pensei muito antes de escrever esta resenha e, depois de meditar bastante sobre o tema, decidi fazê-la por acreditar que meus saudosos amigos e camaradas que galgaram o plano superior da vida recentemente, estão felizes e saberão entender o propósito desta iniciativa burlesca, que visa tão somente manter acesa a chama de suas lembranças em nossos corações.

Foi durante meditação sobre a vida e a morte dos ex-companheiros Sebastião Reis, Ernesto Coelho e Aguinelo Oliveira, contemporâneos do extinto jornal A Notícia da época do também saudoso Andrade Neto, que me ocorreu esse insano pensamento de que esses valiosos jornalistas, especializados em matérias esportivas, tenham sido convocados por Deus para compor a equipe celestial de cronistas esportivos.

Lembrei que em algum tempo atrás o Homem já havia convocado dois dos melhores narradores esportivos do rádio amazonense: Carlos Carvalho e João Bosco Ramos de Lima. Chamou também os abalizados comentaristas Jaime Rebelo e Belmiro Vianez. Levou ainda o chargista Miranda, do jornal A Crítica, o chefe de cerimônia Paulo José, que militou no rádio e na televisão, e o discotecário Crisanto Jobim, que trabalhou durante anos na rádio Difusora.

Além desses, os jornalistas/empresários Umberto Calderaro (A Crítica) e Andrade Neto (A Notícia) também já estão lá, assim como vários outros valiosos militantes da imprensa amazonense, entre eles Francisco Pacífico, Altair Rodrigues, Sinval Gonçalves, os fotógrafos José Thiago, Clóvis Eugênio e outros que já desfrutam do ambiente celestial.

Diante desse quadro, surgiram várias interrogações: Qual será o projeto Divino para esses bravos jornalistas? Será que Deus está preparando uma grande Conferência Celestial para discutir o aquecimento global e o futuro do mundo, do nosso planeta e da Amazônia em particular e por isso está convocando a imprensa para fazer a cobertura desse grandioso evento? Será que quer debater sobre a possibilidade de Manaus/AM ser uma das sedes da Copa do Mundo de 2014? Ou será que Ele vai promover um supercampeonato esportivo celestial, o Copão Interplanetário, e por isso convocou os mais experientes?

Não podemos esquecer que Deus sabe valorizar a imprensa. Quando da passagem de Jesus Cristo pela terra, Ele convocou uma equipe de assessores - os 12 apóstolos -, para registrar tudo o que aconteceu durante a sua trajetória neste planeta. Agora é possível que Ele esteja chamando novos assessores, talvez porque vai aumentar a carga de trabalho ou porque os antigos já estejam aposentados, quem sabe cansados ou até mesmo desatualizados. Será?

Voltando para o plano terrestre, uma coisa é preocupante para os jornalistas que continuam suas missões no Brasil: o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Lei de Imprensa e do processo contra a exigência do diploma de formação superior em jornalismo para o exercício legal da profissão. É hora de união em defesa dos interesses da categoria. Espera-se que os coleguinhas que já passaram para o plano superior da vida, dêem aquela ajuda necessária para que tudo aconteça da melhor forma possível. Acredite!

*Jornalista SRTE/AM00112JPI da Diretoria do Sindicato dos jornalistas do Amazonas
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segunda-feira, 20 de abril de 2009

LIÇÕES DE UMA POLÊMICA

Não há forma de manter aberto um Congresso que não seja respeitado nem esteja em sintonia com a opinião pública. Há golpes barulhentos e silenciosos; golpes que fecham o Congresso e outros que o mantém aberto – mas irrelevante, sem sintonia com o povo.

Cristovam Buarque*


Em entrevista ao blog do Magno Martins, respondi que, em breve, poderia surgir uma proposta de plebiscito para decidir se o Brasil deseja ou não um Parlamento aberto. A dimensão tomada pela divulgação desta frase, no blog, permite algumas lições. A primeira é de como uma frase, por telefone, se espalha por todo o Brasil. Há alguns anos, uma frase demoraria tanto a se espalhar que chegaria morta.

Essa lição nos mostra que os políticos, como eu, não estamos preparados para os novos tempos das comunicações universais e instantâneas.

Apesar da instantaneidade universal das informações e das imediatas manifestações de vontade da população, nossos projetos de lei demoram anos, ou décadas, para chegarem ao fim do processo – até a aprovação ou a rejeição. O Legislativo ficou um poder atrasado, em relação ao Executivo.

A segunda lição é que nenhum dos críticos à minha frase levantou a hipótese de que o plebiscito chegasse ao resultado favorável de manter o Congresso. Todos tomaram a idéia do plebiscito, como se a resposta do povo fosse um claro e rotundo apoio ao fechamento, não à manutenção. Os formadores de opinião demonstraram sua convicção de que o povo deseja fechar o Congresso. Caso contrário, teriam se prendido à idéia de um momento da afirmação do Congresso, que receberia o apoio popular.

Outra lição é como as frases se transformam e passam a carregar algo que não estava na sua origem. Eu quero abrir o Congresso, não fechá-lo. As pessoas já esqueceram que, durante os 21 anos do regime militar, o Congresso só esteve fechado por poucas semanas. Ficou aberto todo o tempo, mas era irrelevante, desrespeitado pela opinião pública. Isso durou até 1978, quando novos parlamentares começaram a falar contra o regime e a articular o fim da ditadura. Imediatamente, receberam respeito e reconhecimento do povo. Vale lembrar que a emenda das Diretas foi recusada pela maioria dos congressistas. Naquela época, por plebiscito, o povo teria aprovado as eleições diretas, mas o Congresso derrubou-a.

Não adianta imaginar que a crise na relação do Congresso com o povo será resolvida sem levar em conta o que o povo deseja. Até recentemente, o povo ficava silencioso entre as eleições. Mas agora, a imprensa, com seus meios modernos, põe o povo em manifestação na “rua virtual”. Não vai demorar até que essa “rua” se manifeste. Talvez isso aconteça de forma eleitoral, substituindo os atuais parlamentares em final de mandato, como eu. Talvez de formas não eleitorais, ainda desconhecidas, porque ainda não sabemos como vai se comportar, no futuro, a “rua virtual”.

Não há forma de manter aberto um Congresso que não seja respeitado nem esteja em sintonia com a opinião pública. Há golpes barulhentos e silenciosos; golpes que fecham o Congresso e outros que o mantém aberto – mas irrelevante, sem sintonia com o povo.

Esse golpe silencioso está em marcha, por culpa de nós próprios, parlamentares – todos nós, não coloquemos a culpa em apenas alguns. E uma das culpas é o silêncio. Mas é melhor passar a aparência de golpista, apontando o risco de o golpe acontecer, do que manter a imagem de democrata em silêncio omisso, ante ao golpe que poderá acontecer.

Uma última lição é de que o político hábil é aquele que não corre risco dizendo frases polêmicas. A polêmica pode levar a desgastes de dimensões fatais, do ponto de vista eleitoral. Essa lição eu não vou seguir. Não vale a pena ver os problemas sem fazer deles o alarde que deve ser feito, que deve ficar na história.

*Cristvam Buarque é Senador da República pelo PDT.

Para ler outros artigos do Senador Cristovam Buarque, clique aqui

quarta-feira, 15 de abril de 2009

CRISTOVAM BUARQUE: ESSE É O CARA!

Mas discutamos se nossa democracia é legítima. Porque o critério de legitimidade está ligado á necessidade e vontade popular. É a aferição com a vontade popular, se atende aos anseios daquela sociedade. Convencer o povo de que temos um Congresso eleito por seus representantes e por isso vivemos uma democracia é enganá-lo, ludibriá-lo. Eles querem é confundir pois é em nome da legitimidade que se fazem as revoluções, então eles mascaram a questão. Vivemos num país democrático porque escolhemos nossos representantes? Nossos congressistas tem representado nossas crianças, nossos aposentados, nossos analfabetos, nossos índios, nossa vontade? Não somos os titulares?

* Por Maria Rachel Coelho

Há uma semana criou-se uma polêmica provocada por uma distorção feita pela imprensa num comentário feito pelo senador Cristovam Buarque, ao dizer, em entrevista à uma rádio, que qualquer dia alguém vai propor um plebiscito para saber se o povo quer, ou não, que o Congresso Nacional continue aberto. Declaração que recebeu críticas dos próprios colegas. Mas hoje ao ouvir um comentário de um aluno, dizendo que o senador que tanto defendo fez uma proposta covarde, me comprometi em sala de aula, e estou aqui para fazer alguns esclarecimentos.

Em primeiro lugar, cabe esclarecer que Cristovam não é covarde, pelo contrário , seu gesto foi de extrema coragem. Também não propôs nenhum plebiscito porque isso nem seria possível, a separação de poderes é cláusula pétrea na Constituição Federal. O que falou e foi o único que teve a coragem de fazê-lo, foi demonstrar seu descontentamento. O que falou e reiterou em plenário foi o que pensa o povo. E se a situação estivesse boa, ninguém teria medo de um plebiscito. Para Cristovam, o Congresso está paralisado em meio a medidas provisórias e decisões judiciárias.

Ele não agüenta mais ver um Congresso paralisado e cada vez mais enrolado em escândalos de corrupções , diretores para todos os lados, horas extras, gastos à vontade e as crianças sem escolas. Se eu tivesse ao seu lado na hora da entrevista sugeria também uma provocação ao nosso executivo, sem comprometimento, prioridades e metas, que continua dando migalhas aos pobres e nada faz para que aprendam a pescar o peixe. Seu grito corajoso de desabafo foi uma provocação para que a sociedade acorde, cobre, exija mudanças, prestação de contas, afinal somos os mandantes.

Seu desejo é que o Congresso retome uma posição de respeito, Cristovam quer um Legislativo mais transparente, propôs acabar com as "mordomias", e que os parlamentares passem mais tempo em Brasília discutindo os problemas do país e tornando a pauta do Congresso mais próxima das necessidades da população. Conhecendo-o como conheço, tenho certeza que se tivesse poder reduziria tantas despesas e transformaria tantas mordomias em escolas.

E me recuso a falar em ditadura. Num país com 70 milhões de analfabetos não há como discutir ciência política.

Mas discutamos se nossa democracia é legítima. Porque o critério de legitimidade está ligado á necessidade e vontade popular. É a aferição com a vontade popular, se atende aos anseios daquela sociedade. Convencer o povo de que temos um Congresso eleito por seus representantes e por isso vivemos uma democracia é enganá-lo, ludibriá-lo.

Eles querem é confundir pois é em nome da legitimidade que se fazem as revoluções, então eles mascaram a questão. Vivemos num país democrático porque escolhemos nossos representantes? Nossos congressistas tem representado nossas crianças, nossos aposentados, nossos analfabetos, nossos índios, nossa vontade? Não somos os titulares?

Mas por mais que o provoquem, Cristovam hoje não está mais sozinho. Em menos de dois anos já iniciamos uma verdadeira revolução educacional no Brasil e não pararemos. Vamos completá-la, de qualquer maneira. E Cristovam está lá dentro, representando de forma decente e falando de forma corajosa tudo que queremos falar mais uma mídia particular censura, manipula. Cristovam está lá trabalhando para que nossa bandeira e nossos sonhos se transformem em realidade. Três de seus projetos viraram lei ano passado. Por uma delas, a que cria o piso salarial do magistério, Cristovam ganhará, no dia 26 de maio, o Prêmio Mérito Legislativo - 2008, do Instituto Brasileiro de Estudos Legislativos. A lei que determina que toda criança de 4 anos tem direito de estudar na escola mais próxima da sua casa. E a lei que a cria o Dia Nacional da Leitura. Para quem não conhece o funcionamento daquelas casas deve imaginar: mais só 3 leis em um ano? Mas isso é algo inédito e ainda que ele tivesse feito só isso em um ano já bastava para que nos enchesse de orgulho. É muito difícil trabalhar com uma grande maioria de parlamentares que só aprovam o que interessa ao governo, porque para isso nunca faltam verbas.

Cristovam está lá, e não teve recesso, trabalhou todos os dias , salvo os dia 25/12 e 02/01. Alguns dias, saiu do gabinete às 10 da noite.

Não pára um minuto, o dia inteiro, elabora projetos de lei, que muitas vezes são plagiados e aprovados pelo executivo para que seu nome não apareça, mas um dia me ensinou: não tem problema, o importante é que as idéias boas sejam copiadas mesmo.

Responde a cada e-mail de cada leitor, se tem algum período livre, visita eleitores, trabalha 12 horas por dia. Ferrenho defensor da integração latino americana, deixa sua família, em um domingo de manhã, chega às vezes de madrugada na segunda, passa o dia em reunião e volta na madrugada da terça. Em 2008 recebeu 38 convites do exterior. Só pode atender a 8, para a Ásia, África, Europa, todas pagas pelos que o convidaram.

Agora só se fala em verba indenizatória, mas Cristovam já presta contas em seu portal há mais de um ano. Todos os meses estão disponíveis de forma transparente em seu portal. Algumas vezes, a verba é insuficiente e ele coloca recursos pessoais, de seu salário para que mantenhamos nosso sonho de revolucionar este país pela educação.

As viagens internas, pagas pela cota do Senado, são todas para trabalho legislativo, palestras, entrevistas, reuniões. Jamais fez viagem de férias ou pagou viagem de amigo ou familiar. Viaja todo o Brasil e pouco conhece das cidades. É comum chegar no hotel de noite e sair de madrugada.Só conhece as cidades de dentro dos carros, das janelas dos hotéis, quando já está escuro.

Quando surgem desconfianças com a luta, talvez o melhor seja o acomodamento. Até porque é mais calmo, e porque ele poderia ganhar muito mais com o salário de ex-reitor, cobrando por palestras fazendo consultorias em todo mundo, como fazia antes.

Essa semana foram dezenas de e-mails, mais esse é o objetivo. Na verdade, toda essa polêmica é mais uma tentativa para desanimá-lo, para afastá-lo da luta.

As vezes é preciso uma provocação para que haja uma reação. O que ele propõe é acabar com essa vergonha criada ao longo do tempo e que ainda se mantém.

Criticou os que só ficam apenas dois dias em Brasília por semana. Em dois dias não se consegue "parlamentar" e discutir os problemas do país. Os discursos são feitos ao vento. Há um divórcio entre as falas dos congressistas e os problemas concretos da realidade brasileira. O Congresso não se adaptou à realidade do avanço técnico, que criou uma situação nova. A democracia precisa se adaptar à realidade eletrônica. O Congresso demora cinco anos para aprovar um projeto, mas os problemas são "on-line".

E amanhã vocês vão me perguntar: por que, então ele não renuncia se pode ganhar mais fora do Senado?

E eu lhes respondo agora: POR QUE ELE É O CARA! Ama o Brasil e quer vê-lo alfabetizado, respeitado. Ama as crianças e quer vê-las todas numa escola de igual qualidade entre eleitos e eleitores. Por que quer uma vida mais digna para todos nós, professores. Por que é um mito e já entrou para a história deste país. E seu nome ficará na história universal. Para isso o salário de senador já é suficiente e para isso ser senador ainda é necessário. POR ISSO QUE OBAMA FALA, MAS NA PRÁTICA SUA ATITUDE É EDUCACIONISTA. Porque é CRISTOVAM BUARQUE: O CARA!

* Professora e Coordenadora do Movimento Educacionista.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

QUATRO AÇÕES

É impossível ter poder parlamentar quando se fica apenas dois dias por semana no Congresso, não mais que poucas horas no Plenário, raríssimas vezes em sessões plenárias, e nunca em sessões nas quais dialoguemos, discutamos, parlamentemos. O maior de todos os escândalos é o fato de que, no Brasil de hoje, nós, parlamentares, não parlamentamos.

Cristovam Buarque*

Neste ano, o Brasil completou 24 anos da redemocratização. Tempo suficientemente longo para que comecemos a nos esquecer de como foi a ditadura. Porém, tempo insuficiente para consolidarmos a democracia. Já não há mais medo da ditadura, mas ainda não existe confiança na democracia.

O poder ditatorial se mantém por meio de armas nas mãos dos ditadores; o poder democrático, pela credibilidade dos parlamentares junto ao olhar público. E pela capacidade de se reciclar, atraindo os melhores quadros para a vida pública.

A atual crise de confiança que atravessa o Senado Federal está provocando dois fenômenos que ameaçam a democracia: a descrença da opinião pública e a perda do entusiasmo dos jovens pela vida pública. As pesquisas mostram um Senado com baixíssima credibilidade, e quem anda entre jovens percebe que não há renovação da vocação política. A juventude despreza os políticos e a política. Pior, a sensação é de que os jovens que desejam seguir a carreira política estão mais interessados nos benefícios e vantagens do que em servir ao país.

Por isso, nós que fazemos parte do parlamento de hoje, nós que somos o centro dos escândalos, temos de pensar não só na honra pessoal ameaçada, mas na nossa responsabilidade com a consolidação da democracia.

Temos idade para nos lembrar dos males da ditadura, e obrigação de senti-la ameaçada. Por isso, precisamos reagir.

Primeiro, precisamos entender nossa culpa e responsabilidade.

Mesmo que a imprensa possa exagerar, a notícia é sempre despertada, nunca inventada. Ela é o alarme de que precisamos para corrigir erros que às vezes não vemos em nós ou ao nosso redor. Por isso, a primeira ação deve ser garantir transparência em todos os atos, gestos e gastos. Não se comete crime e pecado do lado de lá de um vidro limpo, sob o olhar do público. Crimes e pecados são cometidos entre paredes fechadas, por trás de cortinas grossas. O Senado precisa assumir a transparência, tornar tudo público, como deve ser em uma instituição de eleitos pelo povo.

A segunda ação é aumentar nossa produtividade. O que mais deve incomodar a opinião pública é o fato de não ver, ao lado das notícias de escândalos, o resultado concreto do nosso trabalho para melhorar o dia-a-dia do povo brasileiro. Somos um poder irrelevante diante das medidas provisórias e das decisões judiciais, espremidos entre o Executivo e o Judiciário. Por nossa ausência, Executivo e Judiciário se assenhorearam do poder de toda a República.

Já que nossa Casa não aparenta produção concreta, além de discursos, salvo uma ou outra lei de interesse público, o povo nos vê apenas como despesa. Devemos recuperar o poder que temos a obrigação de ter, revertendo as leis que dão mais poder ao Executivo, definindo as regras de como o Judiciário deve legislar. Na democracia, a Casa do Povo é o Congresso, ou não há democracia.

Para isso, precisamos de uma terceira ação: temos de mudar radicalmente nosso comportamento.

É impossível ter poder parlamentar quando se fica apenas dois dias por semana no Congresso, não mais que poucas horas no Plenário, raríssimas vezes em sessões plenárias, e nunca em sessões nas quais dialoguemos, discutamos, parlamentemos. O maior de todos os escândalos é o fato de que, no Brasil de hoje, nós, parlamentares, não parlamentamos.

A quarta ação é renovar o compromisso com a agenda do povo.

Mesmo nossos discursos são raramente centrados nos problemas reais da nação brasileira, no futuro do Brasil. Gastamos muito tempo debatendo generalidades, enquanto o Brasil enfrenta uma crise estrutural e outra conjuntural, e precisa enfrentar as duas.

O Brasil espera de nós mais do que estancar escândalos. Quer que demonstremos nosso poder de mudar o país, fazendo um Congresso que orgulhe a todos os brasileiros, que faça as mudanças que o Brasil espera há séculos, e sobretudo que justifique e consolide a democracia, atraindo os jovens para a vida pública em vez de afastá-los, como hoje acontece.

*Senador da Republica e Professor da UNB


Fonte: Arigo publicado no jornal O Globo de sábado, 28 de março.