sábado, 25 de abril de 2009

AS LETRAS NA PÁTRIA DOS MITOS

A literatura que se faz no Amazonas, seja a escrita pelos brancos quanto a escrita pelos índios, no sonho e na paixão de seus poetas e prosadores, parece nos dizer que se faz necessário reconhecer definitivamente que a natureza é a nossa cultura, onde uma árvore derrubada é como uma palavra censurada e, um rio poluído é como um poema proibido.

Márcio Souza*

Se o Brasil é geralmente dado no exterior como um país de emoções, de irracionalidade, um país primitivo ou até folclórico, não podemos esquecer, no entanto, que ele herdou da colonização portuguesa uma grande capacidade de organização e de planejamento, assim como uma preocupação com os detalhes, Os portugueses sempre fixaram objetivos para si mesmos. Previam cada um de seus passos no continente americano. Por isso mesmo, quando o Grão-Pará se transformou em Amazônia e passou a ser uma fronteira, a colonização portuguesa já tinha desenvolvido uma nova civilização nos trópicos, apta a se desenvolver como uma zona de cultura nacional abrangente, de língua portuguesa, num subcontinente onde se falava inglês, francês, holandês e espanhol, sem esquecer os inúmeros idiomas indígenas, dos quais 32 praticados apenas no Rio Negro.

Estava fecundado o terreno para uma futura cultura brasileira, hoje em plena expansão, que podia negociar com o outro lado da fronteira, com as culturas originais, pré-colombianas, sobreviventes do grande choque, culturas essas que, vale lembrar, estiveram muito tempo na frente da cultura européia, particularmente no conhecimento do eco-sistema regional, antes de serem submersas pela violência do processo colonizador.

Como vimos, a Amazônia é uma invenção do Brasil. Os moradores da Amazônia sempre se espantam ao ver que, talvez para melhor vendê-la e explorá-la, ainda apresentam sua região como habitada essencialmente por tribos indígenas, enquanto existem há muito tempo cidades, uma verdadeira vida urbana, e uma população erudita que teceu laços estreitos com a Europa desde o século XIX. Aliás, nisso residem as maiores possibilidades de resistência e de sobrevivência dessa região.

Com efeito, os povos indígenas da Amazônia logo descobriram que nada conseguiriam se não se apoiassem nesta população urbana que é a única que se expressa nas eleições e exerce pressão sobre a cena política brasileira. A Amazônia conta com uma população de dezenove milhões de pessoas e com nove milhões de eleitores, o que não é pouca coisa.

Embora o Brasil se orgulhe de ter conquistado a Amazônia, o povo amazônico soube resistir e preservar suas peculiaridades. Continua havendo uma cozinha, uma literatura, artes-cênicas, arquitetura, artes-visuais, música, uma cultura da Amazônia. Há uma maneira de ser do homem do extremo norte, que nunca será aniquilada. O que precisamos é intensificar as trocas entre as culturas regionais brasileiras, muitas delas com passados semelhantes, unidas pelo sentimento de brasilidade e irmanadas pelo agridoce idioma de Camões. É sobre uma dessas peculiaridades, a literatura que se escreve no Estado do Amazonas, o meu estado, que vou agora tentar vos apresentar.

Os primeiros europeus a escreverem sobre a Amazônia foram cronistas como Frei Gaspar de Carvajal, Cristobal de Acuña, João Daniel, Simão Estácio da Silveira e o padre Antônio Vieira. Durante a fase da conquista e da penetração, o relato pessoal e surpreendido dos viajantes desempenhou na cultura o papel que a economia das especiarias foi para o mercantilismo. Foram esses relatos que posteriormente serviram, em grande parte, na orientação, classificação e interpretação da região como literatura e ciência.

A Amazônia abria se aos olhos do Ocidente com seus rios enormes como dantes nunca vistos e a selva pela primeira vez deixando se envolver. Uma visão de deslumbrados que não esperavam conhecer tantas novidades.

A literatura colonial nos legou uma forma determinada de expressar a região, particularmente curiosa e assustadoramente viva. Perdendo a agressividade, essa literatura repete se hoje de maneira conformista e mistificadora. O espírito simulador da literatura colonial legou o velho e gasto conceito da “Amazônia, celeiro do mundo”. Sua permanência é hoje a comemoração do assalto indiscriminado meio ambiente, da transformação da grande hiléia em deserto e que pela retórica verga a espinha para os interesses econômicos internacionais.

Mas foi um soldado lusitano investido de poeta que inaugurou a literatura de língua portuguesa na Amazônia. E de uma maneira sintomática. ,A Muhraida, ou a conversão do gentio Muhra Henrique João Wilkens, autor de louvou a subjugação da nação Muhra pelas tropas portuguesas, criando uma poesia do genocídio. Além de ser a primeira tentativa poética da região, representa um documento histórico inestimável.

Publicado em Lisboa, pela Imprensa Régia, no ano de 1819, quase trinta anos depois de sua confecção, é o trabalho de um homem que se envolveu diretamente no contato com os Muhra, habitantes do rio Japurá, onde exercia o cargo de Segundo Comissário até 1787.

Canto de glória e certezas, nele já se pode observar todos os prenúncios da decadência interna da epopéia. Não apenas por se tratar de uma obra medíocre, fruto talvez de um coração arrebatado pelos ócios da caserna, e pela fidelidade muito típica do militar com pendores artísticos, o certo é que a obra carrega esta corrupção estilística.

Não podemos encerrar este passeio pelo nascimento das letras amazônicas, sem uma referência aos povos indígenas. Do outro lado da fronteira cultural que se formou com a destruição do Grão-Pará e a criação da Amazônia, nos espreita uma amplidão criadora, uma tradição milenar que produziu literatura de rara beleza e complexidade, fábulas de rara crueza, forte e sensível expressão de forças primevas, cuja elegância seduziu homens como o conde Er-manno Stradelli, que veio para a região em 1890.

Foi com este fidalgo, etnógrafo, rico, corajoso, um herói romântico típico da Amazônia, que a lírica dos povos indígenas começou a ser revelada dentro de uma compreensão artística antes que etnográfica. Seus livros, como Leggenda del Taria, coleção de contos e narrativas heróicas, ou La Leggenda Del Jurupary, um belíssimo registro da saga do grande legislador, antecedem Raul Bopp na reivenção literária do mundo amazônico. Leggenda del Taria, lembra muito o antigo romance de amor, um gênero literário que crava suas raízes na mais cara tradição literária italiana.

As descrições em versos do cenário, os gestos cavalheirescos, a renúncia final dos conten¬dores frente à carnificina, fazem desta saga uma fábula mi¬leseaca do rio Vaupés. Stradelli encontrou na narrativa fabu¬losa dos tariana uma linguagem apenas nascida, como é de nascimento o êxtase de Raul Bopp. E não é por pura associa-ção de idéias que Nunes Pereira, em 1966, intitula sua monumental obra de Moronguetá, um Decameron Indígena. Sem interferir na redação dos mitos, Nunes Pereira registra um estilo rico, ma¬tizado e sem grilhões.

Um registro de mito e comportamentos que para Lévi Strauss “estocam e transmitem informações vitais assim como os circuitos eletrônicos e a fita magnética de um computador o fazem”. Reconhecendo esta autoridade do mito, poetas como Stradelli defendem a primeira realidade da região, realidade maior e mais relevante, pela qual está determinado o próprio destino da Amazônia.

Conhecendo isto, estes “se¬gredos profundos, sedutores e envolventes como certos cipós que se cobrem de flores para fingir fragilidade”, como bem escreveu Câmara Cascudo a respeito de Stradelli, descobrimos que vivemos num mundo onde o mito ainda vive e o relacionamento do homem com a natureza é ainda o mesmo relacionamento dos deuses com a sua criação. Mas hoje os deuses foram banidos para a penitenciária da etnografia, o status ontológico do mundo está traduzido pelo potencial de energia elétrica.

O esforço de Stradelli se repetiu nas obras de J. Barbosa Rodrigues e Brandão de Amorim, autores de antologias como Lendas em Nheengatu e Português e Poramdubas Amazonenses. Mas foi somente em 1985 que um primeiro autor totalmente indígena pode responder o diálogo proposto pelo fidalgo italiano. Trata-se de Luis Lana, cujo nome em dessana é Tolomen-ken-jiri, autor de Antes o Mundo não Existia, narração precisa do mito cosmogônico de sua cultura, escrito em português e dessana, sob enormes dificuldades em sua aldeia do rio Tikiê.

Luiz Lana, que nasceu em 1961, filho do chefe de sua tribo, fez o livro preocupado com a preservação do mito da criação do universo, acabou se tornando o primeiro índio a escrever e ter seu livro publicado em 500 anos de história do Brasil. Antes o Mundo não Existia está traduzido para diversas línguas européias e estimulou o surgimento de outros escritores indígenas, que estão tornando vernáculo seus idiomas ágrafos, e são editados pela primeira editora indígena do país, propriedade da FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.

Como podemos ver, a Amazônia é uma das pátrias do mito, onde ainda existe uma unidade entre a natureza e a cultura numa permanente interação de estímulos e afirmação.

A literatura que se faz no Amazonas, seja a escrita pelos brancos quanto a escrita pelos índios, no sonho e na paixão de seus poetas e prosadores, parece nos dizer que se faz necessário reconhecer definitivamente que a natureza é a nossa cultura, onde uma árvore derrubada é como uma palavra censurada e, um rio poluído é como um poema proibido.

*Escritor amazonense ganhou reconhecimento internacional pela originalidade de suas obras, que passaram a ser traduzidas em diversos países do mundo: “Galvez, Imperador do Acre”, “Mad Maria” e tantas outras.


Acesse o Site do Escritor Amazonense Aqui.

Nenhum comentário: