quinta-feira, 23 de julho de 2009

GELADEIRA PARA ESQUIMÓ



David Pennington*

Quando da derrocada da economia da borracha, a partir de 1913, e mais precisamente no intervalo da primeira e segunda guerra mundial, a “Booth Line”, empresa de navegação do período áureo da borracha do vale amazônico, encontrou como alternativa ao modelo econômico da borracha amazonense, o turismo. Um folheto datado de 1923 assim propunha aos potenciais turistas britânicos e europeus:

“1000 milhas Amazonas acima”
Cruzeiros de seis semanas da Booth Line. (...) Dias serão passados em cidades com reminiscências do velho Brasil. (...) A umas dez milhas da Manaós o vapor abandona o curso principal do Rio Amazonas e entra no Rio Negro. O encontro das águas desses dois gigantes traz-nos uma cena de extraordinário interesse. Como o nome mostra, as águas do Rio Negro são compostas de águas preto-azuladas, e isto forma grandes manchas e redemoinhos em miniatura no meio do dilúvio amarelo Amazônico. Tão distintos são os contornos, que a proa do navio está flutuando na água escura do Rio Negro, enquanto a popa ainda está navegando na água amarela do rio Amazonas. Manaós (...) a mil milhas da civilização (...) possuindo todas as conveniências modernas, como luz elétrica, bondes, teatros, cafés e jornais diários (...) É uma cidade limpa, ninguém teme se alimentar de sua comida ou beber de sua água (...) Dias na floresta ensolarada, em Campos Salles, Flores e São Raymundo, tardinhas nos cafés ou bangalôs fazem o tempo passar depressa demais. (...) O mercado de Manaós é um lugar para o caçador de curiosidades (...) O Amazonas é o Rio do mistério, e traz alimento para os pensamentos e romance, muito depois das viagens a outras terras terem desaparecido da memória.

Então... Se olharmos hoje em volta do que resta do centro da cidade de Manaus, o que vemos é um ambiente urbano modelo, patrimônio herdado dos esforços dos nossos avós, em avançado estado de dilapidação.

Uma cidade única como esta, a 1500 km do oceano Atlântico. Imagine, com duas ou três linhas de bonde, casarões com finalidades sócio-culturais... Vários museus, interligados a centros culturais on-line. Programações para atrair maciçamente diferentes tipos de turismo, desde aquele que cultua o exótico, passando por um turismo ambiental, até um turismo de inteligência, da geografia, geologia e história do Amazonas. Mas não. Teimam os artífices desta realidade em permanecer na contramão da história. Os bondes são um exemplo, temo-los em Praga, Berlim, Lisboa; em Frankfurt foram recolocados nos trilhos como opção de transporte coletivo com características de pouca agressão ao meio ambiente.

Agora, um projeto para construir um imenso porto, ameaçando destruir esse patrimônio que é o Encontro das Águas, além dos sítios arqueológicos e paleontológicos na área (lembra de Angra dos Reis, uma região parasidiaca ameaçada com a presença de uma usina nuclear?)

Os descendentes mestiços dos Baré continuam aceitando espelhinhos e apitos. Um Jardim Botânico, com um eminente arquiteto como garoto-propaganda. Aliás, muitas de suas obras espalhadas por Manaus, já foram destruídas e maculadas sem a menor cerimônia. Enfim, um jardim botânico, quando temos a floresta amazônica? Estão a vender geladeiras para Esquimó.

*David Pennington é professor Doutor da Universidade de Brasília e autor do livro "De Manaus A Liverpool" (2009), EDUA.

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