segunda-feira, 11 de agosto de 2008

MIRANTE DO COTIDIANO - "DEZ ANOS DE MARQUINHO"



Pedro Braga*

Posiciona-se num espaço onde julga ser aconchegante; sentado e já escorado sobre o tronco do biribazeiro. A árvore é enorme, para ele gigantesca, cujas folhas, agora, o protegem dos vigorosos raios solares que, no momento, não se persuade a filtrá-los. Pois almeja ficar assim, sentado, meio refestelado, pensativo, com seu ioiô na mão e os joelhos doando apoio aos cotovelos, mirando dali ora seus pés de unhas acostumadas e encardidas com a terra preta, tanto sua alva mãe a estender roupas no varal, ora o quintal de sua casa, como seu pai; que se encontrava qual ele, sentado, mas sobre cadeira de couro, escrevendo ávido não se sabia o quê.

À direita sua casa, feita em madeira; diziam que de estilo colonial; linda; erguida por seu “papai” de cujas habilidades podiam se destacar além de escritor, também, esta: era exímio marceneiro, construtor de casas e tudo o mais. Começava com a espaçosa varanda e, em seguida, os três quartos, cozinha externa, secreta, jardim dos fundos e outros aspectos cotidianos da residência.

Marquinho quebra o pescoço à esquerda; divisa o quintal. Nele, lá se apresenta ela, aquela exuberante dama envelhecida, porém, ainda, suntuosa; a Goiabeira Maria. Continuava a atraente mulher a qual Marquinho tanto amava por muito saciar sua fome durante as brincadeiras no terreiro – pira-pega, pata-cega e numerosas outras. O Nonato pé-de-cupu; dele tinha medo. Trata-se de um velho rabugento, cheio de remorsos da vida; envelhecia com problemas da mocidade não resolvidos; não viveu, representou. Mais adiante o milharal e canavial que o próprio pai cultivara. Por um momento se apossou de seu terçado, ao lado; empunhou-o com firmeza; pensou em chupar cana, mas a brisa suave que descende do Rio Solimões o interrompe. Fica por ali mesmo, embriagado; cheiro temperado de mato e água barrenta.

O coqueiro já está ressecado, sua relação fora superficial com este que se chamava Alcir e, segundo o senhor Matias, pai de Marquinho, parecia que vinha do leste. Está morrendo, não, já morreu, pelo menos na minha terra. O velho era qual o cupuaçuzeiro. Porém, incipiente demais, arrogante, posava-se para as graminhas dizendo que tinha sangue real. “Sabe lá o que é que é esse negócio de sangue real!” – dizia sempre o menino –. Nos fundos do quintal vivia o bom velhinho do qual nunca pudera esquecer Marquinho. O Limoeiro Amoroso, magrinho, franzino, nativo da terra, quase sem forças para se manter de pé, mas nunca caíra ou tombara e pra falar mais estreito, muito agüentou as gripes e viroses do garoto; seu filho, o limão Julinho, por demais ajudara Marquinho, sarando-o sempre dessas doenças passageiras. Como se amavam os dois meninos!

Nem gostava de falar das bananeiras e abacateiros. Pois sempre sonhara com o saci-pererê surgindo de dentro do bananal; todo negrinho, e quase sorrindo sarcástico para Marquinho. Por conhecer um pouco da personalidade do menino, posso dizer que não se dava com sarcasmos: “vai pra lá, desgraça!” Nunca sequer falara com os gêmeos Pávulo e Pavulino, os abacateiros. Eram egoístas, altos demais, robustos. Seus filhos, os abacates Olhão e Molengo, o pequeno Marquinho por nenhum momento os via e mais, não conversavam com ele, só entre ambos; sempre cochichando, jamais falando. Todavia serviam pra amarrar o balanço nos seus galhos. E não podiam reclamar. Pois no final, eram propriedades do senhor Matias, logo de Marco. Que sobre ele o querido Marquinho se embalava, embalava, embalava e sorria, sorria, sorria Marquinho!


Ontem falei com Marquinho, que já não é mais aquele pequeno menino. Disse-me que “ainda desejo ficar assim; divisando de baixo o olhar dos homens e só pensando sobre uma manobra nova de ioiô ou peão, pipa ou futebol de botão; sentado sob minha velha árvore de biribá ou trepado no olho da goiabeira; de onde brechava minha vizinha e namoradinha Judite, que muito amo e beijar, até hoje, não ouso tocar em outra boca que não seja tão somente a sua rosada e feminil. Quero continuar pedalando minha bicicleta na praça próxima de casa, onde os jardins são vastos, os chafarizes miúdos e a vida emana das coisas mais simples, amando minha terra, minha tão querida terra, brincando com o meu melhor amigo e demais colegas da escola, afagando-me em minha mãe nos finais de tarde, escrevendo com meu pai e morando nesta casa e neste quintal de cujos espíritos jamais poderão ser roubados por esta passageira vida e memória dos homens.”

* Membro da Comissão Editorial do NCPAM e estudante de História da Universidade Federal do Amazonas.

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