quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

ÍNDIOS, BRANCOS, CABOCLOS - I


Reafirmamos que vamos resistir, inclusive arriscando as nossas vidas, contra quaisquer ameaças, medidas e planos que violam os nossos direitos e buscam nos extinguir, por meio da invasão, destruição e ocupação dos nossos territórios e bens naturais, para atender aos interesses de grandes empresas que geram grandes lucros e grandes impactos negativos para as populaões indígenas e não indígenas locais.

In: Declaração do Encontro de Lideranças do Movimento Indígenas Morogitá Kagwabiwa (Humaitá, 20 a 23 de outubro de 2013), em defesa dos Direitos Garantidos na Constituição Federal.


Osíris Silva (*)
               
Os conflitos entre brancos e índios, no Amazonas, mal começaram. Trata-se de mais uma tragédia anunciada. A franja Sul do território amazonense já configura técnica e politicamente  nova fronteira agrícola do Brasil. Santo Antonio do Matupi - Km 180, da BR 230 (Transamazônica) -, distrito de Humaitá, assim como o município de Apuí, são polos agropecuários em ascensão. Também vêm encerrando fortes conflitos entre indígenas e colonos. A morte do cacique Ivan Tenharim, assim como o desaparecimento de três homens brancos não constituem fatos isolados, que fique bem claro. O principal líder da comunidade, o produtor rural Nardélio Delmiro Gomes, 47, foi assassinado a tiros em Humaitá  em novembro de 2012. Tais confrontos, contudo, não têm se prestado à sinalização de suficientes indícios de perigo ao governo. Os embates continuam. As ocupações de terras também. Um processo, a depender de precedentes históricos a essa altura irreversível.

Os fatos são contundentes. A Amazônia, efetivamente, só recebeu atenção especial do governo brasileiro quando do regime militar (1964-1985). Nesse período foram instituídas a SUDAM, a Zona Franca de Manaus, reestruturado o Banco da Amazônia e levados a cabo projetos de infraestrutura, telecomunicações e de colonização. Transamazônica e a Perimetral Norte, obras embora inconclusas, mudaram de vez a conformação geopolítica amazônica e do Brasil. A região, no período, viveu momentos de fortes expectativas, ao passo que hoje predominam o distanciamento e ausência de ações governamentais. Desmatamento florestal, novo ritmo de expansão desordenada da fronteira agropecuária e conflitos étnicos decorrentes não são causa, mas efeito desse estado de omissão oficial. O que vem se passando no Sul do Amazonas é apenas  mais uma etapa desse processo.

A cosmologia amazônica, no tocante à questão indígena induz a conclusões preocupantes e decepcionantes em decorrência da ausência de política governamental consistente voltada ao segmento. Mais ainda, associada à ineficácia da política agrária, transformou o trato com problema tão delicado e de tamanha magnitude uma peça praticamente ficcional. Do ponto de vista antropológico, observa-se, em relação ao  estrato indígena da população brasileira  nítida tentativa de transformar o índio  num ser quase que folclórico, mítico, lendário, não humano como qualquer um de nós, ditos os verdadeiros brasileiros. Assim, para o governo e a sociedade, índio é índio, branco é branco, e, particularmente no setentrião norte do país, caboclo é caboclo. Como que se nada indicasse que são, efetivamente, não fantásticas criaturas ou entidades sobrenaturais, mas, ao contrário, tão gente quanto qualquer habitante do nosso território. E que estabelece, no dizer de Mário Ypiranga Monteiro, uma identidade contextualizada no tempo e no espaço e representada pela gama multifacetada de regiões culturais que compõem o Brasil.

Os índios configuram os  habitantes primitivos desde muito antes de Pindorama e Terra de Santa Cruz, depois  Brasil. Como outros povos, habitaram matas, rios, cerros, montanhas e vales, planícies, planaltos, o mundo. Há de se questionar, então: em que medida a população indígena recebeu ou recebe tratamento adequado à sua condição? Na mesma linha de raciocínio, deve-se igualmente indagar: quais os termos de tratamento humanitário, social, cultural, econômico dispensados ao caboclo, o homem da floresta? Há diferença formal entre um e outro? Ao que entendo, antropológica e tecnicamente, sim, pode-se admitir. Contudo, enquanto o índio goza de status diferenciado, imputabilidade, o caboclo, guardião primeiro de nossas fronteiras, vive abandonado e entregue à própria sorte espalhado pelos rincões brasileiros.  O quadro é insustentável sob qualquer ângulo analítico.

(*) É economista e articulista de a Crítica, publicação autorizada pelo autor.

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