domingo, 25 de maio de 2008

NO SENADO, HONESTIDADE VALE MAIS MORTA DO QUE VIVA


* Josias de Souza

No ano da graça de 2001, a presidência do Senado foi disputada à maneira dos caiapós de Altamira: na base do facão.

Disputaram a cadeira o baiano Antonio Carlos Magalhães (PFL, à época) e o paraense Jader Barbalho (PMDB).

Prevaleceu, como se sabe, Jader. Depois, descobriram-se “barbalhidades” que assentaram na história do Senado uma de suas páginas mais funestas.

Poderia ter sido diferente. Sob o ruído rascante dos facões, o senador José Jefferson Carpinteiro Péres (PDT) constituía uma alternativa mansa.

Ofereceu aos colegas o bom nome e a biografia impoluta como opções ao escárnio. Jefferson Péres era chamado, então, de “terceira via”.

O Senado preferiu a via de sempre, a tradicional, a “barbalha”. E arrastou para dentro do plenário as malfeitorias que levariam o Congresso à crise e Jader à renúncia.

Mais tarde, Jefferson Péres viu formar-se à sua frente uma barricada. Ergueu-a o ex-senador Ney Suassuna (PB), na ocasião líder do sempre majoritário PMDB de Jader.

Negaram à correção uma cadeira no Conselho de Ética do Senado. O vetado, em entrevista ao repórter Carlos Marchi, reagiu com o humor que lhe era próprio, corrosivo:

"Eu aceitei com humildade, porque o Suassuna, com seu espírito de modernidade, achou que estou superado, com meus 75 anos. Eu defendo umas teses que não são muito atuais – ética, moral, essas coisas. Para o Suassuna, isso é coisa superada."

Enrolado no escândalo das sanguessugas, Suassuna sucumbiu ao entrincheiramento do eleitor paraibano. Jader foi devolvido ao Congresso pelas urnas do Pará. Voltou rebaixado a deputado. Mas voltou.

Na manhã da última sexta-feira, um infarto apontou para Jefferson Péres (PDT-AM) a última, a inevitável, a inelutável via. O senador foi ao esquife com 76 anos. E converteu-se, aos olhos dos colegas, num santo instantâneo.

Seguiram-se à morte lamentações unânimes. “O Senado perde a sua referência moral”, lamuriaram muitos. “É uma perda irreparável”, choramingaram outros tantos.

No Brasil é assim. O cidadão nasce, cresce e vive sob a pele de homem. Mas fenece como santo. Entre nós, a morte é de uma eficácia promocional hedionda.

Os cemitérios brasileiros são hortas de virtudes. O morto com defeitos é uma utopia. A morte canoniza até os piores canalhas.

No caso de Jefferson Péres, todas as loas são justificáveis. Não era santo. Mas levou para a cova a ventura de ter cruzado o pântano da política incólume.

Em meio à impudência, escreveu uma biografia de decência. Compensava a miudeza do físico com o comportamento graúdo.

Esquivava-se das nomeações políticas. Mantinha a mulher no gabinete, negando a ela o acesso ao salário da Viúva. Não punha a mão em verba de representação. Devolvia os presentes que aportavam sobre sua mesa.

Nas muitas crises do Legislativo –à de Jader sobreveio a de Renan Calheiros— Jefferson Péres nunca foi pilhado em gestos ou intenções suspeitas. Confrontado com tentativas de acobertamento, postava-se do lado dos que queriam arrancar a coberta.

Andava desiludido o senador. Falava em abandonar a vida pública. Havia uma dose de cálculo na fuga anunciada das urnas de 2010. Sabia que não eram negligenciáveis as chances de ser barrado pelo voto.

A morte, em sua nefasta sabedoria, poupou o eleitor amazonense de um desatino. E forçou os colegas do senador a pronunciarem um lote de hosanas que soam como expiação tardia de um pecado imperdoável.

Os senadores enxergam no cadáver de Jefferson Péres virtudes que não foram capazes de valorizar enquanto o virtuoso ainda equilibra-se dentro dos sapatos.

No Senado, a honestidade vale mais morta do que viva, eis a revelação que José Jefferson, carpinteiro de um Péres raro, deixa como legado.


* É colunista do jornal Folha de S. Paulo e o artigo é deste domingo, 25/05/008, no blog www.josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br

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