quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O INDIGENISMO BRASILEIRO NO SÉCULO XXI


Sandoval dos Santos Amparo*

Mais do que apresentar resultados ou soluções, este texto posicionará uma proposta de entendimento do indigenismo brasileiro na contemporaneidade, recorrendo à história para tentar entender seus equívocos ou virtudes, enquanto agente histórico, e da crença no “desenvolvimento” enquanto figura salvadora, redentora dos índios, enquanto agentes técnico-sociais dos dias contemporâneos. Apesar do romantismo associada à imagem indigenista, “o profissional responsável pela mediação inter-societária entre o Estado brasileiro e as nações indígenas”, esta noção, nobre e humanista, mostra-se, não obstante, folclórica se considerada apenas com este prisma.

O protagonismo dos índios, na prática, põe em xeque a legitimidade do indigenista. Todavia, haverá espaço para aqueles que souberem situar-se neste contexto. Este fato nos obriga a reconhecer, então, dois tipos de movimentos sociais, os quais, por serem distintos, apresentam discursos e interesses distintos. São, respectivamente, o movimento indígena e o movimento indigenista. Aos indígenas, nos resta reconhecer que, tanto quanto nós da nossa, são eles produtores de sua história. O entrecruzamento de nossas histórias resulta da incompreensão e da folclorização de suas expressões, para aonde foi também o indigenismo.

Isto obriga uma recomposição e redimensionamento, à luz das recentes contribuições de antropólogos como Roberto Cardoso de Oliveira e, de seu mais recentemente, João Pacheco de Oliveira Filho, dentre outros, para definhar a alienação das aldeias e dos índios. Isto porque, desde Rondon, o Estado brasileiro articulou sua política em torno de um órgão indigenista norteado, porém, por noções positivistas do trabalho e do progresso. A Lei Áurea de 1889, que libertou os escravos foi um desdobramento da necessidade brasileira de incorporar “braços” à sua economia, cujo grande recurso farto era a Terra. Todo o processo de Colonização teve como grande trunfo justamente os braços – ou dos homens (e mulheres), para dispor do termo devido – de que dispunham mais do que os grandes recursos territoriais.

Neste artigo tentarei situar o indigenismo, sem avançar, contudo, no que diz respeito ao caráter colonialista de suas práticas, rotinas e saberes, manifestos principalmente através de linguagens às quais os índios, apesar de estarem integrando-se aos poucos ao sistema acadêmico, jurídico e normativo ocidental(izado), ainda não dominam as linguagens através das quais o Estado conduz e executa suas políticas e seus recursos financeiros.

O domínio destas linguagens, bem mostra João Pacheco de Oliveira, continua sendo grande nicho profissional, ao passo que não se questiona nem o papel ideológico das próprias linguagens, nem tampouco, o papel privilegiado que ocupam diferentes profissionais do sistema ocidental na forma da mediação que produzem, sob o auspício (tão positivista quanto a própria figura do lema) da técnica e da ciência neutras.
Até fins de século XIX entendia-se o Brasil como uma república escassa em consumo e mão-de-obra. Segundo Celso Furtado que ao final dos ciclos da cana e da Mineração, éramos tecnicamente deficientes em termos de “desenvolvimento”. Não tínhamos nem técnicos nem tampouco mercados consumidores, vez que nosso povo vivia basicamente de subsistência na periferia dos sistemas de exploração colonial. Sob o domínio cultural-imperial do “Time is money”, tínhamos que correr contra o tempo. Aos índios que ainda não havíamos exterminado, restava a integração, vista num espelho que reluzia um relógio, junto à cruz.

E em acréscimo à política de “branqueamento” da população, (imunizando-a assim contra o preto e o amarelo) e à tardia libertação do negro, criou-se o “Serviço de Proteção aos Índios” e, além disso, “...Localização da Mão de Obra Nacional” (SPILTN). Considerar o órgão criado por Rondon revela uma política ambivalente do Estado, na qual para uns, a proteção ao índio estava diretamente ligada a uma perspectiva humanista romântica, construída sob o olhar intelectual das elites burguesas, e por outro, a uma perspectiva positivista que tinha o trabalho como seu valor principal, esta, certamente mais factual. Ainda que a criação do SPILTN até sua falência tenha realizado importante papel no sentido de chamar atenção para os povos indígenas e seus direitos, ele adequou-se a uma perspectiva de uma economia liberal em vias de “modernização”.

Sob a influência, principalmente do positivismo, os ideais de progresso, e os rumos político-territoriais dado aos indígenas tinha-se por objetivo criar as condições para a abertura de novas frentes no interior do país, as quais possibilitariam as condições para o avanço da economia capitalista do país através da pacificação dos índios, por um lado, abrindo terras; e por outro, garantindo o controle das Terras Indígenas, por outro, através de mecanismos próprios, como a “Renda Indígena”, que recebe as riquezas oriundas da comercialização de produtos indígenas, direitos de imagens e demais formalmente arrecadados relativos aos índios e suas terras.

Como desdobramento deste pensamento territorial, e sob a pressão de inúmeros atores interessados na ocupação dominial destas terras, principalmente na forma agrícola, é colocada como discurso, já que forças conservadoras alegam “muita terra pra pouco índio”, que repercute ainda a noção de que o índio nada produz na terra, já que as mesmas, incorporadas ao sistema subsidiado das comodities capitalista, poderiam contribuir com o que defendem, diga-se o desenvolvimento dependente nacional, tomando as terras indígenas como inimigas do “desenvolvimento”, “da produção”, do “progresso”, etc.

Discurso, todavia equívoco, e ainda envolto das obras de Debret, já que – sabemos – não apenas nos tempos do SPILTN, mas desde sempre, desde que “dominados” os índios, tentou-se incorporá-los enquanto braços, e a suas terras enquanto fonte de recursos, territórios (produtivos), os quais, segundo Fernando Henrique Cardoso (in Becker, 2001) “não se inventam, mas se ganham na guerra”. Tentou-se a implantação de projetos e financiamentos mesmos a que tiveram acesso muitos produtores agrícolas de todo o país, (com bem menos investimentos), os quais buscavam promover o desenvolvimento dos índios, sendo este, porém, o pensado por e para uma elite branca e europeizada e europeizando-se. Modelo, portanto, que incorpora os indígenas, mas os caboclos e os negros, mas rejeita suas práticas espaciais e seus modos de vida, considerados, assim, pré-capitalistas, qual seja a forma que o digam.


* É colaborador do NCPAM, Geógrafo (Universidade Federal Fluminense) da Funai. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Além do indigenismo estatal, onde atua se interessa pelas manifestações líricas e artísticas dos homens no espaço e as perspectivas estéticas de produção territorial. Alimenta o blog blog.wayn.com/sandova

2 comentários:

Anônimo disse...

Querido professor Ademir, bom dia!
Hoje cedo, ao acordar para me dar com as
minhas atividades, tive a agradável surpresa de
encontrar nosso artigo no site do NCPAM. Não tive
como escondera satisfação! Vou continuar trabalhando
pra render muito mais. Agradeço suas sugestões e confiança!
Temos uma realidade por transformar.
Bom poder contar com a consciência crítica de espaços como o NCPAM!
Vida longa ao Núcleo e às pessoas que o fazem!!
Um abraço, Sandoval

Milena disse...

Quase quatro anos depois da publicação deste manuscrito, venho manifestar minha admiração pelo indigenista Sandoval que sempre compartilha suas experiência, satisfações e angústias na luta pela valorização da cultura indígena, por meio da compreensão do processo histórico.
"Meikromé"