domingo, 4 de maio de 2008

A AFLORAÇÃO DE UM VELHO ÓDIO



* Márcio Souza

O debate nacional levantado pela questão da Demarcação das Terras Indígenas, especialmente aquela da Raposa Serra do Sol, em Roraima, resvalou para um desvão sinistro, ressuscitando ideologia que pareciam adormecidas e pondo à luz do dia interesses escusos.

As mentiras em torno do assunto ressoam pelas mídias poderosas da televisão e da grande imprensa, e até um general, numa remissão aos idos da ditadura militar, fez discurso no Clube Militar do Rio de Janeiro. Para este general, a integridade do território nacional estaria ameaçada pela demarcação das terras indígenas na Raposa Serra do Sol.

Os membros das ONGs estrangeiras, sucedâneos dos comunistas dos tempos da guerra-fria, estariam prestes a proclamar a independência dessas áreas, manipulando os pobres silvícolas. Como bem escreveu o Dr. Samuel Johnson, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas.

Primeiro, porque o governo brasileiro nunca “deu” terras aos índios. As Reservas são Terras da União, onde os povos indígenas têm o usufruto, mas ali os órgãos do governo podem entrar e sair. As terras da Raposa Serra do Sol são do Estado, ou seja, do povo brasileiro.

Ali vivem historicamente diversas etnias, que sempre defenderam o Brasil e optaram pela nacionalidade brasileira. Mas, o que o general parece querer é privatizar as terras da União, entregando-as aos grileiros, aos invasores, usurpando-as do povo brasileiro.

Que tipo de nacionalismo é este?

O que vemos é a afloração do velho ódio contra os povos indígenas, que já pagaram caro por isso.

Vejamos um povo do passado.

A impressão deixada pelos viajantes espanhóis é de que as margens do Amazonas e outros grandes rios estavam densamente povoados. Mesmo descontando os exageros dos narradores coloniais, todos eles e num espaço de dois séculos foram unânimes em registrar as aldeias e vilas densamente povoadas.

Critobal de Acunã, um século depois de Carvajal, dizia que as terras de dentro são igualmente tão populosas que “se atirarmos uma agulha para cima ela ira cair fatalmente na cabeça de um índio”.

Enfim, a Amazônia estava ocupada por grupos tribais de diversos padrões e diferentes origens antes da chegada dos europeus. Assim os mitos e lendas dos atuais povos indígenas ainda guardam certas lembranças de um passado que se perdeu na voragem da conquista.

As rotas comerciais que ligavam a selva amazônica às grandes civilizações andinas ainda continuam traçadas nas entranhas da mata virgem, reconhecidas apenas pelo olhar dos que sabem distinguir antigas veredas dissimuladas pelas folhagens.

É por essas rotas que um índio Tukano do norte amazônico pode visitar seus parentes do sudoeste, seguindo o mesmo curso que levam produtos da floresta ao Cuzco de lá trazia artefatos de ouro, tecidos e pontas de flechas de bronze.

Feitos heróicos dos tempos que se perdem nas brumas ressoam em épicos como a saga do tuxaua Buopé, marco central da literatura oral dos índios Tariano, em que a conquista do norte amazônico pelos Aruak está fielmente descrita, como a mostrar que, assim como as culturas já haviam atingido alturas, os dramas humanos mais intensos, como as guerras, as paixões e a aventura, aqui já se desenrolavam como em qualquer outra parte da terra onde a humanidade escolheu para encenar seu drama.

Por Justiça a Reserva Raposa Serra do Sol, de forma contínua, é dos índios.

* Márcio Souza é escritor, dramaturgo, articulista de a Crítica e um dos primeiros intelectuais Amazonenses a contribuir efetivamente com a luta e organização do movimento indígena da América Latina.

Um comentário:

Anônimo disse...

Acabei de chegar de Roraima, estive não só em Pacaraima como também em Mucajaí (do outro lado), no carnaval também passei pela 174 e Pacaraima, ao atravessar para a Venezuela com um grupo de alunos.
Na verdade estou bastante preocupada. O STF pode nos levar a um retrocesso sem precedentes na história do indigenismo, falo isso porque alguns ministros já se anteciparam em alguns comentários,a tendência é uma grave mudança na Raposa Serra do Sol, desmembrando-a em "ilhas" para acomodar alguns arrozeiros que a esbulharam ilegalmente a alguns anos atrás. O fundamento legal seria o risco à soberania nacional. Mas nunca na história do Brasil o nosso território sofreu perda para outro país por causa dos índios, pelo contrário, foi pela aliança de alguns povos indígenas com os portugueses que ganhamos parte do território brasileiro, assim como tiveram papel fundamental na inclusão de Roraima ao território nacional,as pessoas tem que começar a respeitar os índios como primeiros brasileiros! O STF não pode voltar atrás na homologação da terra não só pelo ato já realizado mas também pelo que a homologação representa como ato jurídico que oficializa o reconhecimento do estado e da nação sobre as terras indígenas. Os povos indígenas são parte essencial da nação brasileira, as terras indígenas integram um Brasil único!
Enquanto as pessoas não entenderem isso vamos continuar tendo conflitos.
Muito grave é a situação em Dourados, Mato Grosso do Sul, com a morte de crianças indígenas por desnutrição e por suicídio e a essência do problema também gira em torno da terra. É crítica a situação dos indígenas em Dourados, vivem confinados em diminutas proporções de terra. É inadmissível uma criança de 11 anos se suicidar, ato drástico, mas que nem assim chama a atenção do Estado.
Temos que nos mobilizar para evitar este descalabro. Existem algumas ONGs sérias, outras entretanto que só fazem reverter os benefícios que recebem.
Me sinto muito sozinha nesta luta, outra questão gravíssima e que ninguém se preocupa é a venda de terras pela internet, há videos até no you tube, americanos estão vendendo hectares de terras brasileiras pela internet, como conseguem esses registros?