QUE AMOR É ESSE?
Ellza Souza (*)
O bairro de São Raimundo que fica numa colina tão cheia de
vida e de glórias e naturalmente bela, cercada pelo aveludado rio Negro está
sofrendo brusca intervenção em nome do progresso. Toda sua orla que um dia foi
praia limpa e serviu para o lazer dos manauaras passa por uma profunda
transformação. As ruas de cima (Coração de Jesus e 5 de Setembro – “goela”), as
ruas de baixo (Beira Mar, Boa Vista, da Sede, Sul América), as ruas do meio
(Cachoeira, Rego Barros, Normando) viraram ou vão virar um monte de escombros
onde máquinas impiedosas trituram tudo deixando o terreno limpo para projetos
mirabolantes. Não escapa nada à sanha desenvolvimentista. Nem mesmo os olhos
dágua que tentaram aflorar na terra castigada pelo lixo durante tanto tempo. E
muito menos o choro das famílias que se instalaram precariamente em áreas de
risco à beira dos igarapés por serem pobres. Fazer casa em beira de igarapé
considero um crime contra a vida mas as autoridades permitiram a invasão
criando uma situação calamitosa durante muitos anos e que agora acaba em
lágrimas e destroça as histórias de uma comunidade.
“É esquisito tirar as
pessoas sem pedir licença, sem dar alternativas. É uma maneira bruta demais”,
lamentou um morador da rua 5 de Setembro. Segundo esse morador não precisava
mexer com toda a população. “Nós compramos da Diocese o nosso chão e fizemos
com sacrifício as nossas casas”. Um dia, conta, chegaram à sua casa construída
em 1956 e ofereceram um kit de madeira para que ele fosse construir a casa em
outro lugar. E olha que ele mora bem no alto da colina longe dos igarapés.
“Estou ficando velho, não estou ficando burro”, alegou para o representante da
autoridade. Inicialmente a sua casa foi marcada para sair mas parece que houve
mudança de rota. Como também mudou a rota demolidora que previa colocar abaixo
até a igreja de São Raimundo Nonato onde originou-se a comunidade. Segundo
relatos o padre Zenildo na época e os moradores se mobilizaram para impedir o
fim total de um dos bairros mais antigos da cidade que não se originou de
invasões apesar de que mais tarde muita gente vinda do interior em busca
trabalho fez suas moradias nos pequenos rios transformando as águas límpidas em
lama e podridão, soterrando as preciosas cacimbas e originando as favelas sobre
palafitas que se espalharam em todos os cursos dágua da bacia do São Raimundo.
Que país é este que deixa sua população viver em condições tão precárias e não
lhe fornece o mínimo que seja em dignidade, educação, moradia. “Se é pra tirar
as pessoas da lama, apoio”, disse uma velha moradora. Sem a contrapartida do
governo, essa população vai invadir em outro lugar continuando a gerar
filho, violência e lixo.
A insegurança bate à porta
de todos no bairro. Ninguém sabe na verdade quem vai sair e quem vai continuar
por ali. Com a desculpa de tirar as casas do igarapé poluído, estão acabando
com toda uma comunidade que construiu uma história e fomentou valores na
sociedade. O lugar já teve uma área bem extensa. Tão extensa que foi separada em
três comunidades: São Raimundo, Glória e Santo Antonio. O São Raimundo dos
bucheiros cuja história começou com a doação do terreno à arquidiocese em 1849
já aí ficou reduzido à pequena colina banhada por belas águas negras, “isolado”
da cidade, sem água encanada, sem luz elétrica, sem transporte além das
catraias Mas vida social, cultural, educacional tinha até demais graças à
abnegação dos padres e freiras que plantaram ali um jeito bom e próprio de ir
levando a vida em comunidade.
Parece que chegamos ao fim
de um lugar naturalmente belo onde vivem pessoas felizes e pacatas. Sempre me
orgulhei de ter nascido nessa colina, à beira de um barranco, subindo ladeiras
e cercada por tão grandioso rio. Ali, entre quintais e igarapés (muito pequenos
mas preciosos), cacimbas pra todo lado, praia e cultura, muitas gerações
cresceram e aprenderam a amar o seu chão. Ali, aprendemos a rezar, aprendemos a
ser gente, aprendemos a política da boa vizinhança. Num espaço tão pequeno
ainda resiste a igreja no “alto”, as praças da Igreja e a do Sul América,
o cine Ideal (somente o prédio e as lembranças), o festival folclórico que
ficou famoso sob o comando do professor Nogueira, 3 escolas (Olavo Bilac,
Marquez de Santa Cruz e Pedro Silvestre), dois clubes, o Tufão e o Sulão, este
segundo dizem com os dias contados. Os jovens das décadas de 50, 60 e 70
tiveram teatro, pastorinhas, se reuniam em grupos para discutir suas idéias, no
papo ou no sopapo. Alguém pode falar mas isso já havia acabado antes das atuais
modificações. É certo que as drogas, com a travessia fácil e as pontes,
encontrou ali, entre pessoas de bem, um abrigo para os algozes da juventude
local. O fim se avizinhava. Ouvindo os moradores da rua 5 de Setembro que
atravessa de cima a baixo o pequeno mas velho bairro, as opiniões alcançam dois
pólos. Alguns acham adequadas as medidas tomadas em face da “retirada das
pessoas da lama”. Outros consideram que estão arrancando de suas vidas parte
importante de suas trajetórias. A dona de um mercadinho lamenta: “Os fregueses
estão indo embora”.
Grande parte dos que estão
“marcados” para sair se sentem injustiçados. Fora os moradores das palafitas e
das invasões dos igarapés que chegaram e se instalaram sem pagar nada por isso,
o resto da população reclama. Essa população dos igarapés deixaram uma marca,
com a conivência de governos incompetentes, irreversível para a humanidade e
sem pagar nada por isso. Ao contrário a briga é feia para receberem indenização
pelo mal feito. O problema não é pagar. O problema é dar moradia decente aos
cidadãos e dotar as comunidades de um mínimo de infraestrutura. É tão caótica a
situação que tem gente que pega o dinheiro de sua “casa” e distribui em
dízimos, roupas, carro velho e se sobrar pensa em nova moradia. Acha que ficou
rico. Aí o círculo vicioso se completa. O dinheiro acaba e o jeito é procurar
outra beira de rio para fazer sua palafita e criar seus filhos, com o lixo e os
ratos como vizinhos e contando apenas com as sacolas governamentais que premia
a ignorância e a falta de cuidado consigo mesmo e com a natureza da qual faz
parte. Estudar que é bom pra que? Produzir seu alimento por que? Cuidar dos
rios e igarapés não precisa. Os esgotos e o lixo caem abertamente no rio Negro
“que leva tudo”. Viver bem seu curto tempo de vida na terra? Pra que se em meio
a tanta confusão religiosa no mundo não sabemos mais a quem recorrer. Será que
o melhor para viver eternamente é o inferno terreno ou o planetinha do Exupéry
no Pequeno Príncipe lá longe no céu estrelado. Cheio de dúvidas continuamos
deitados em berço esplendido. Sem um governo decente que dê uma chacoalhada no
povo. E olha que só falam em povo e para o povo. E nós cada vez mais dengosos
patinhos.
Vejo que de repente
apareceu um súbito amor das autoridades para com a orla da cidade. É Ponta
Negra mal aterrada, é igarapé sendo “revitalizado”, é mudança de cemitério para
fazer um porto “menor” para os nossos belos barcos de recreio “desocupando” o
Rodway do centro para transatlânticos. É pólo naval desalojando comunidades
tradicionais sem ouvir os moradores. Nem o Encontro das Águas escapou
onde tentam fazer um portinho para grandes navios.
Como os doentes do
Hospital Eduardo Ribeiro que espalharam sabe-se lá por onde. Não importa. O que
importa é que foram tirados de vista. Na cidade não temos doidos, não temos
pobres, não temos moradores de rua. É o melhor dos mundos. Para que? Será que
por uma copa, uns joguinhos de futebol onde ganham muitos e perdem quase todos,
vale a pena “jogar” vidas ao vento? Tá esquisito isso.
(*) É escritora,
jornalista e articulista do NCPAM/UFAM.
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