sexta-feira, 1 de março de 2013


QUE AMOR É ESSE?

Ellza Souza (*)

O bairro de São Raimundo  que fica numa colina tão cheia de vida e de glórias e naturalmente bela, cercada pelo aveludado rio Negro está sofrendo brusca intervenção em nome do progresso. Toda sua orla que um dia foi praia limpa e serviu para o lazer dos manauaras passa por uma profunda transformação. As ruas de cima (Coração de Jesus e 5 de Setembro – “goela”), as ruas de baixo (Beira Mar, Boa Vista, da Sede, Sul América), as ruas do meio (Cachoeira, Rego Barros, Normando) viraram ou vão virar um monte de escombros onde máquinas impiedosas trituram tudo deixando o terreno limpo para projetos mirabolantes. Não escapa nada à sanha desenvolvimentista. Nem mesmo os olhos dágua que tentaram aflorar na terra castigada pelo lixo durante tanto tempo. E muito menos o choro das famílias que se instalaram precariamente em áreas de risco à beira dos igarapés por serem pobres. Fazer casa em beira de igarapé considero um crime contra a vida mas as autoridades permitiram a invasão criando uma situação calamitosa durante muitos anos e que agora acaba em lágrimas e destroça as histórias de uma comunidade.
 
“É esquisito tirar as pessoas sem pedir licença, sem dar alternativas. É uma maneira bruta demais”, lamentou um morador da rua 5 de Setembro. Segundo esse morador não precisava mexer com toda a população. “Nós compramos da Diocese o nosso chão e fizemos com sacrifício as nossas casas”. Um dia, conta, chegaram à sua casa construída em 1956 e ofereceram um kit de madeira para que ele fosse construir a casa em outro lugar. E olha que ele mora bem no alto da colina longe dos igarapés. “Estou ficando velho, não estou ficando burro”, alegou para o representante da autoridade. Inicialmente a sua casa foi marcada para sair mas parece que houve mudança de rota. Como também mudou a rota demolidora que previa colocar abaixo até a igreja de São Raimundo Nonato onde originou-se a comunidade. Segundo relatos o padre Zenildo na época e os moradores se mobilizaram para impedir o fim total de um dos bairros mais antigos da cidade que não se originou de invasões apesar de que mais tarde muita gente vinda do interior em busca trabalho fez suas moradias nos pequenos rios transformando as águas límpidas em lama e podridão, soterrando as preciosas cacimbas e originando as favelas sobre palafitas que se espalharam em todos os cursos dágua da bacia do São Raimundo. Que país é este que deixa sua população viver em condições tão precárias e não lhe fornece o mínimo que seja em dignidade, educação, moradia. “Se é pra tirar as pessoas da lama, apoio”, disse uma velha moradora. Sem a contrapartida do governo, essa população vai invadir em outro lugar  continuando a gerar filho, violência e lixo.
 
A insegurança bate à porta de todos no bairro. Ninguém sabe na verdade quem vai sair e quem vai continuar por ali. Com a desculpa de tirar as casas do igarapé poluído, estão acabando com toda uma comunidade que construiu uma história e fomentou valores na sociedade. O lugar já teve uma área bem extensa. Tão extensa que foi separada em três comunidades: São Raimundo, Glória e Santo Antonio. O São Raimundo dos bucheiros cuja história começou com a doação do terreno à arquidiocese em 1849 já aí ficou reduzido à pequena colina banhada por belas águas negras, “isolado” da cidade, sem água encanada, sem luz elétrica, sem transporte além das catraias Mas vida social, cultural, educacional tinha até demais graças à abnegação dos padres e freiras que plantaram ali um jeito bom e próprio de ir levando a vida em comunidade.

Parece que chegamos ao fim de um lugar naturalmente belo onde vivem pessoas felizes e pacatas. Sempre me orgulhei de ter nascido nessa colina, à beira de um barranco, subindo ladeiras e cercada por tão grandioso rio. Ali, entre quintais e igarapés (muito pequenos mas preciosos), cacimbas pra todo lado, praia e cultura, muitas gerações cresceram e aprenderam a amar o seu chão. Ali, aprendemos a rezar, aprendemos a ser gente, aprendemos a política da boa vizinhança. Num espaço tão pequeno ainda resiste a igreja no “alto”, as praças da Igreja e a do Sul América,  o cine Ideal (somente o prédio e as lembranças), o festival folclórico que ficou famoso sob o comando do professor Nogueira, 3 escolas (Olavo Bilac, Marquez de Santa Cruz e Pedro Silvestre), dois clubes, o Tufão e o Sulão, este segundo dizem com os dias contados. Os jovens das décadas de 50, 60 e 70 tiveram teatro, pastorinhas, se reuniam em grupos para discutir suas idéias, no papo ou no sopapo. Alguém pode falar mas isso já havia acabado antes das atuais modificações. É certo que as drogas, com a travessia fácil e as pontes, encontrou ali, entre pessoas de bem, um abrigo para os algozes da juventude local. O fim se avizinhava. Ouvindo os moradores da rua 5 de Setembro que atravessa de cima a baixo o pequeno mas velho bairro, as opiniões alcançam dois pólos. Alguns acham adequadas as medidas tomadas em face da “retirada das pessoas da lama”. Outros consideram que estão arrancando de suas vidas parte importante de suas trajetórias. A dona de um mercadinho lamenta: “Os fregueses estão indo embora”.

Grande parte dos que estão “marcados” para sair se sentem injustiçados. Fora os moradores das palafitas e das invasões dos igarapés que chegaram e se instalaram sem pagar nada por isso, o resto da população reclama. Essa população dos igarapés deixaram uma marca, com a conivência de governos incompetentes, irreversível para a humanidade e sem pagar nada por isso. Ao contrário a briga é feia para receberem indenização pelo mal feito. O problema não é pagar. O problema é dar moradia decente aos cidadãos e dotar as comunidades de um mínimo de infraestrutura. É tão caótica a situação que tem gente que pega o dinheiro de sua “casa” e distribui em dízimos, roupas, carro velho e se sobrar pensa em nova moradia. Acha que ficou rico. Aí o círculo vicioso se completa. O dinheiro acaba e o jeito é procurar outra beira de rio para fazer sua palafita e criar seus filhos, com o lixo e os ratos como vizinhos e contando apenas com as sacolas governamentais que premia a ignorância e a falta de cuidado consigo mesmo e com a natureza da qual faz parte. Estudar que é bom pra que? Produzir seu alimento por que? Cuidar dos rios e igarapés não precisa. Os esgotos e o lixo caem abertamente no rio Negro “que leva tudo”. Viver bem seu curto tempo de vida na terra? Pra que se em meio a tanta confusão religiosa no mundo não sabemos mais a quem recorrer. Será que o melhor para viver eternamente é o inferno terreno ou o planetinha do Exupéry no Pequeno Príncipe lá longe no céu estrelado. Cheio de dúvidas continuamos deitados em berço esplendido. Sem um governo decente que dê uma chacoalhada no povo. E olha que só falam em povo e para o povo. E nós cada vez mais dengosos patinhos.

Vejo que de repente apareceu um súbito amor das autoridades para com a orla da cidade. É Ponta Negra mal aterrada, é igarapé sendo “revitalizado”, é mudança de cemitério para fazer um porto “menor” para os nossos belos barcos de recreio “desocupando” o Rodway do centro para transatlânticos. É pólo naval desalojando comunidades tradicionais sem ouvir os moradores. Nem o Encontro das Águas escapou onde tentam fazer um portinho para grandes navios.

Como os doentes do Hospital Eduardo Ribeiro que espalharam sabe-se lá por onde. Não importa. O que importa é que foram tirados de vista. Na cidade não temos doidos, não temos pobres, não temos moradores de rua. É o melhor dos mundos. Para que? Será que por uma copa, uns joguinhos de futebol onde ganham muitos e perdem quase todos, vale a pena “jogar” vidas ao vento? Tá esquisito isso.

(*) É escritora, jornalista e articulista do NCPAM/UFAM.

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