terça-feira, 23 de agosto de 2011

A COLONIZAÇÃO DOS POVOS RIONEGRINOS

Aquiles Pinheiro (*)

A história de invasão, ocupação e colonização dos povos rionegrinos é amplamente referida na literatura, como uma das mais antigas no Brasil e na região Amazônica como um todo. Consta que o rio Negro foi um dos primeiros rios a serem navegados inteiramente pelos portugueses. Com efeito, as primeiras expedições coloniais organizadas com o objetivo de capturar indígenas para servir de mão-de-obra na procura pelas “drogas do sertão” datam de 1550 e 1650 (LEONARDI, 1999, p. 25; OLIVEIRA, 1983, p. 161).

A colonização se fortalece com a instalação de um forte na foz do rio Negro em 1669, construído para garantir a segurança dos colonos nos primeiros núcleos de povoamento permanentes no rio Negro. O primeiro povoado de que se tem notícia, é o de Santo Elias do Jaú, fundado em 1694, por religiosos da ordem dos Carmelitas, responsáveis pelo aldeamento de indígenas do povo Tarumã, à margem direita do rio Negro (LEONARDI, 1999).

Após o século 18, essa infraestrutura militar permitiu a entrada das principais frentes de colonização responsáveis pela consolidação dos interesses da coroa portuguesa na região: militares e missionários. Os militares forneciam a força bélica para a aquisição da força de trabalho para a colônia, enquanto os missionários estabeleciam as bases ideológicas da conquista. Estes foram, portanto, os segmentos que mais contribuíram para as alterações na organização social e nas culturas dos povos da região do rio Negro (OLIVEIRA, 1983, p. 181 e 182).

No final do século 18 e início do século 19, ocorrem as grandes transformações na região, em resultado da “política de descimento”, ou seja, a prática de se deslocar populações indígenas inteiras para serem aldeadas em núcleos de povoamento localizados nas proximidades de fortes e sob a coordenação de religiosos. Dessa maneira, além de garantir maior controle sobre os indígenas, essa prática liberava as terras para serem ocupadas e controladas pelos representantes da coroa portuguesa (CUNHA, 1992, p. 134, 141 - 44).

Outra instituição importante no processo de controle territorial sobre o rio Negro foram as “guerras justas”, como eram chamadas as expedições armadas organizadas com o pretexto de combater os indígenas que resistiam à dominação. Na verdade, eram verdadeiras expedições de caça aos indígenas para transformá-los em mão-de-obra escrava. Desde o início da colonização até meados de 1750, as expedições de busca e apresamento de indígenas na região do rio Negro tiveram como pólo de difusão colonial, pequenas povoações controladas por missionários e com grande presença indígena (SANTOS, 2002, p. 24-5).

A comunidade aldeada inicialmente ocupava áreas estratégicas do ponto de vista da ocupação colonial, como as áreas dos Tarumã, Manao, Baré, Baniwa e Tukano e se configuravam como pólos de controle territorial, populacional e econômico, já que forneciam a força de trabalho indígena tanto aos missionários como aos núcleos coloniais que iam se estabelecendo na região, os quais eram dirigidos pelos missionários Carmelitas, com o apoio de chefes indígenas aliados aos portugueses (SANTOS, 2002, p. 36).

No baixo rio Negro, os povos indígenas mais aguerridos e que resistiam as tentativas de aldeamentos, atacando as regiões dos descimentos eram os Mura, os Manao e os Waimiri-Atroari. No ano de 1723, Ajuricaba, líder dos Manao foi capturado juntamente com dois mil indígenas. No lugar da aldeia dos Manao foi criada a aldeia de Mariuá, elevada à categoria de vila trinta anos depois, com o nome de Barcelos (SANTOS, 2002, p. 30 - 1; OLIVEIRA, 1983, p. 201 - 2).

Ao longo da década de 1744, aproximadamente vinte mil indígenas foram escravizados, “descidos” e batizados, passando a compor o cenário interétnico colonial instalado pelos portugueses. Mesmo com a derrota de Ajuricaba, alguns grupos Manao continuaram resistindo à colonização a partir de regiões próximas de povoados onde hoje se encontram as cidades de Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro.

A instalação do Diretório dos Índios em 1757[1] inaugura um período extremamente violento para os indígenas rionegrinos, intensificado pela militarização da região do alto rio Negro em razão da disputas territoriais entre Portugal e Espanha. O Diretório dos Índios[2] fazia parte de um plano laico e não-religioso estabelecido para o controle absoluto da região dos povos indígenas que tradicionalmente ocupavam essa área (OLIVEIRA, 1983, p. 205).

A política do Diretório dos Índios era incompatível com a presença de missionários, que foram expulsos em 1759, por ordem de Sebastião José de Carvalho e Melo (o Marquês de Pombal). A expulsão dos religiosos gerou sentimentos de revolta em diversos indígenas aldeados. Um exemplo emblemático desse período é a revolta de Lamalonga, um dos movimentos de resistência indígena armada mais intenso na região do rio Negro, ocorrido no mesmo ano em que o diretório dos índios foi implantado.

Em 1755, os principais povoados coloniais no rio Negro eram o Forte da Barra, Carvoeiro, Moura, Barcelos, Tomar (antiga aldeia Bararoa). Poiares (antiga aldeia Cumarú), Moreira (antiga aldeia Cabuquena) e Lamalonga (antiga aldeia Dari). Dentre esses povoados, Barcelos e Tomar eram os que tinham a maior presença de brancos, dispondo inclusive de milicianos para punir os indígenas revoltados contra o regime colonial português que se instalara na região.

Ao final do século 18, o rio Negro estava visivelmente despovoado, com sua economia estagnada e com o foco de interesse colonial na foz, no Forte da Barra. Com a definição das fronteiras no noroeste do Brasil, Barcelos perde sua força política e econômica. No começo do século 19, a capital da província muda de Barcelos para Manaus, o que contribui para agravar ainda mais a crise econômica e social no rio Negro.

Entre 1800 e 1830, o rio Negro é bem menos visado do ponto de vista econômico e dos interesses coloniais, permitindo a reorganização de muitos grupos indígenas. Mas esse movimento de reorganização étnica e social foi interrompido em 1835 pelo movimento nativista conhecido por Cabanagem. Iniciando-se em Belém o movimento de resistência organizado pelos cabanos – como eram chamados os revoltosos –, se espalhou por toda a região amazônica, inclusive o rio Negro, resultando na eliminação de onze povoamentos, entre eles Poiares e Lamalonga, além de ter contribuído para a ruína econômica e o consequente abandono de diversas vilas e povoados nessa região (OLIVEIRA, 1983, p. 216).

Na metade do século 19, o rio Negro passa a ser administrado pela Província do Amazonas. Inicia-se a navegação a vapor no rio Negro, dando um novo impulso na economia extrativista na região, principalmente entre os séculos 19 e 20. Já em 1861, o comércio do rio Negro envolvia piaçaba, estopa, breu, peixe seco e salsa, além da produção de lenha para os barcos a vapor. A exploração da borracha e de outras “drogas do sertão” provocou uma nova leva de migrantes para o rio Negro, destacando-se as populações oriundas da região nordeste.

Nessa nova onda de exploração comercial da borracha, os locais principais não são mais as antigas aldeias indígenas (que viravam aldeamentos e, posteriormente, vilas), mas sim os sítios e as colocações nos seringais. A economia da exploração da borracha é responsável por mais uma onda de migração dos povos indígenas da região do alto rio Negro (principalmente dos rios Içana e Uaupés) para os seringais do médio rio Negro.

Ainda que não tenha sido uma região rica em seringais, a demanda mundial por borracha provoca profundas transformações na região amazônica como um todo, e o médio rio Negro foi certamente um ponto central nesse processo. A organização social da exploração da borracha no rio Negro era baseada em um regime conhecido como “aviamento” baseado na relação assimétrica e hierárquica entre sujeição, exploração e “proteção”.

A época do auge da economia extrativista no rio Negro, o chamado “boom da borracha”, que corresponde ao período final do século 19 e as duas décadas do século seguinte, fornece elementos bastante importantes para explicar a configuração étnica da população atual dessa região. Foi exatamente neste período que muitos grupos indígenas do alto rio Negro, bem como trabalhadores oriundos do Nordeste do Brasil foram levados para os seringais do médio rio Negro.

Nos quase cinco séculos de exploração colonial na região do rio Negro, resultou no extermínio de muitos grupos indígenas e na destruição da cultura de muitos outros. Uns poucos grupos conseguiram se reorganizar e assegurar uma relativa autonomia étnica. Ao mesmo tempo, a região serviu de cenário para profundos processos migratórios, com gente vinda de outros países e outras regiões do Brasil, sobretudo a região Nordeste.

Vemos, pois, que desde o início da colonização, os povos indígenas reagiram de diferentes maneiras às primeiras incursões coloniais em suas terras, com estratégias diversas para protegerem sua cultura e organização social. Muitos indígenas Baré migraram para o alto rio Negro e para o sul da Venezuela, enquanto outros povos passaram por um processo de “tukanização” ao entrarem em contato intenso com as populações Tukano do alto rio Negro. A resposta violenta à resistência indígena na região contribuiu para o despovoamento que marcou a região, bem como para a atual configuração multiétnica dessa região, que será tratada com maiores detalhes no próximo tópico.

(*) É mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas e colaborador do NCPAM/UFAM.

[1] Note-se que neste mesmo ano, foi criada a Capitania de São José do Rio Negro, tendo Barcelos como a sua primeira capital, sendo transferida para a Barra do Rio Negro (hoje Manaus) em 1791, retornando a Barcelos em 1799, e fixando-se definitivamente em Manaus no ano de 1804 (WALLACE, 2004, p. 254).

[2] A política de descimentos era executada pelos representantes da Coroa denominados ‘diretores de índios’ que para isso contavam com a ajuda de lideranças indígenas, os chamados ‘principais, que em troca de títulos e mercadorias cumpriam o papel de agenciadores da mão-de-obra indígena para o trabalho agrícola e extrativo.

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