quarta-feira, 9 de junho de 2010

SITUAÇÃO DOS ÍNDIOS DO JAVARÍ E O DESCOMPASSO DA FUNAI


André Chapiama Wadick (*)

Somos num total de 4.900 indígenas (contados) das etnias Marubo, Mayoruna Matis, Kanamari e Kulina, habitamos na segunda maior reserva indígena do país: o Vale do Javarí, que tem 8,5 milhões de hectares e está localizado no extremo ocidental do Estado do Amazonas, numa faixa de fronteira com o Peru de aproximadamente 345 km (seguindo as margens do Rio Javari).

O Povo Marubo habita as regiões do médio e alto Rio Curuçá e alto rio Ituí, considerado um dos que já mantém intensos contatos com a sociedade envolvente, porém, ainda preserva à cultura e a tradição que o caracteriza. O Povo Mayoruna habita as calhas do Afluente Rio Pardo (médio rio Curuçá, médio rio Javari) e Alto Rio Jaquirana, e são (conforme sua história) considerados, nesta região, como um dos mais aguerridos dentre os demais. O Povo Matis vive no médio Rio Ituí, é considerado de pouco contato com a sociedade envolvente (ocorrido em 1976) e ainda mantém seu modo tradicional de viver.

O povo Kanamari vive nas calhas do médio Rio Javarí e Alto Rio Itaquaí, é originário da região do Baixo Rio Juruá e migrou para esta região nos períodos áureos da borracha, onde serviam como escravos nas mãos dos patrões da época. Atualmente vivem livres e nas regiões onde escolheram para habitar, conforme seus usos e costumes tradicionais. O povo Kulina, do tronco linguístico pano, são originários das regiões do médio Rio Curuçá; contactados na década 70 por madeireiros na calha do afluente Igarapé Todos os Santos e hoje vive na foz do Igarapé Pedro Lopes no Médio Rio Curuçá.

É importante ressaltar que o Vale do Javari é a única reserva que abriga o maior número de grupos indígenas que vivem em isolamento voluntário (isolados do Igarapé Maia, isolados do arrojo, isolados do igarapé Arara, isolados do rio Negro, Korubo do rio Coari, flecheiros do Jandiatuba, etc...). Desses, só se tem algumas informações dispersas entre os próprios índios contatados, salvo exceção algumas fotografias registradas pelas equipes da Fundação Nacional do Índio, que têm de monitorá-los através de sobrevôos. Contudo, de vez em quando, é comum o aparecimento de algum desses nas aldeias dos Marubo nas regiões mais isoladas da Terra Indígena. Esses fatores tornam esta região ímpar em relação a outras áreas: nela habitam indígenas com diferentes graus de contato, assim como os que preferem o isolamento com o meio externo.

A sua localização numa região longínqua, em relação aos grandes centros, como também as inúmeras dificuldades de acesso, contribuem para uma relativa preservação ambiental e cultural no interior da Terra Indígena Vale do Javari. Todavia, mantêm-nos “invisíveis” ao Estado e onde as providências só são tomadas quando as situações já se tornam “difíceis de serem acobertadas”.

Genocídio

Desde 2003 estamos denunciando ao Poder Judiciário, em suas instâncias (6ª Câmara do MPF, Justiça Federal, MPF/Manaus e MPF em Tabatinga), o genocídio de centenas de família indígenas no interior desta reserva, que vêm sendo acometidas por uma interminável e fulminante epidemia de hepatites virais. O resultado, contudo, pode ser resumido em uma única frase: NADA FOI FEITO ATÉ HOJE!

Na ocasião do último Fórum Social Mundial, ocorrido em Belém, as lideranças indígenas do Vale do Javarí ouviram aquilo que mais temiam, e vindo da chefe dos Procuradores do Ministério Público Federal, Dra. Débora Duprat, a seguinte afirmativa: eu não sei mais o que fazer, já fiz o que podia por vocês..! Imaginem, aquém mais podemos recorrer neste país? É ridículo e até vergonhoso saber que existem inúmeros documentos assinados e indícios visíveis de irregularidades (Termos de Ajustamentos de Condutas, improbidades administrativas, corrupção com recursos da saúde indígena, etc...) e a chefe do MPF só tem a afirmar isto.

A educação no Vale do Javarí apresenta um dos piores índices registrados no país, dentre esses a falta de capacitação aos professores indígenas. As aberrações administrativas com recursos provenientes do MEC contribuem para um quadro de puro descaso. Tal contexto situacional da educação indígena vem causando um dos maiores êxodos de jovens para as cidades vizinhas à Terra Indígena (Tabatinga, Benjamin Constant, Cruzeiro do Sul e Atalaia do Norte). Essa movimentação sem controle vem piorando a situação dos indígenas urbanos desta região de fronteira, com o inchaço de cidades que já abrigam milhares de desempregados e outros excluídos sem as mínimas estruturas. Adiciona-se aí, o caos relacionado a esses indicadores sociais: prostituição, alcoolismo, dependentes químicos, criminalidade, narcotráfico, etc...

É muito difícil presenciar, quase todos os meses, dezenas de famílias num êxodo sem volta para as cidades, à procura de estudos ou para se “protegerem” da hepatite. A maioria dessas famílias não sabe se comunicar o mínimo no idioma oficial, vivendo, muitas vezes, em situações subumana, morando a beira do rio com suas embarcações improvisadas. E o que é triste, indígenas como os Matis, que há dois anos não tinham contatos intensos com as cidades, estão seguindo esse caminho sem retorno, de forma traumática, sobretudo, aos idosos que vêm tendo de se adaptarem, forçadamente, à vida urbana.

Narcotráfico

A região de fronteira na qual o Vale do Javarí está localizado é considerada mundialmente como uma das principais rotas internacionais do narcotráfico, proveniente das regiões peruanas e colombianas. Dados divulgados pelas polícias Civil e Federal no amazonas revelam que já foram detectados plantios de plantas que contêm a matéria-prima para a cocaína no interior da área indígena. Em 2000 a Polícia Federal executou uma das maiores operações contra narcotraficantes no interior do Vale do Javarí, que atuavam dentro do igarapé Todos os Santos (Médio rio Curuçá), e já haviam indícios da participação de indígenas.

Devido à falta de ações sistemáticas de controle e fiscalização nas regiões do Médio Rio Javarí, Médio Rio Curuçá e Alto Rio Jaquirana, vêm se consolidando, nessas áreas, uma das maiores rotas do contrabando de peixes ornamentais no Javarí (com a atuação de peruanos e colombianos); assim como a caça de animais silvestres, a pesca predatória e a captura de quelônios (parte da produção é transportada para ser comercializada na cidade peruana de Iquitos). Nessas áreas do Vale do Javarí já há escassez de alimentos para as famílias Mayoruna e Kanamari, além dos problemas ambientais que essas práticas criminosas vêm causando ao ecossistema nesses locais.

O Governo peruano vem concessionando grande parte das áreas habitadas por Mayoruna que vivem em território daquele país, destinando-as à extração de petróleo. Essas áreas vêm sendo entregues para grandes multinacionais petrolíferas do Canadá, EUA e Europa. A tendência é que com a pressão que vêm sofrendo naquele país, parte desse contingente de indígenas Mayoruna migre para o Vale do Javarí, além da intensa movimentação de estrangeiros que passará a existir nessas áreas. Vale ressaltar que os Mayoruna peruanos, a maioria deles, são parentes diretos daqueles que habitam no Javarí. Porém, o número de Mayoruna peruano é o triplo dos Mayoruna que habitam do lado brasileiro.

E a FUNAI

Com todos esses fatores, a FUNAI, a única instituição do estado Brasileiro que mantinha o contato direto com as nossas aldeias, vem tendo a “brilhante idéia” de extinguir ou transformar a antiga Administração em uma mera representação (Coordenação Técnica), através do Decreto Presidencial nº. 7056 de 28 de fevereiro de 2010.

Segundo os informes oficiais do Presidente da FUNAI se tratava de “uma reestruturação e consolidação do papel da instituição, no tocante a sua missão de atender, de forma mais eficaz, aos indígenas”. Mas, no atual formato, onde está definida a nova estrutura de atuação da Coordenação Regional do Vale do Javari e Juruá, é um absurdo! Não faz o menor sentido uma chefia que será responsável por áreas tão longínquas quanto terras nos municípios de Tarauacá e Feijó no Acre, isso só para comparar a grande disparidade geográfica, operacional, logística e estrutural. No atual momento há um impasse em relação à localização da sede da Coordenação Regional: ainda não está oficializado se vai ser em Atalaia do Norte ou em Cruzeiro do Sul.

No entanto, não há nenhuma justificativa plausível sobre essas mudanças para essas regiões, mesmo que a sede passe a funcionar em qualquer uma dessas localidades; tendo que cuidar de áreas muito dispersas e distintas, que vão do Acre ao Baixo Rio Juruá no Amazonas. Isso sem mencionar a ausência de qualquer estrutura da FUNAI em todas essas novas áreas que passará a atuar.

As vagas que serão preenchidas pelos novos servidores, através do último concurso, são ínfimas diante de qualquer cenário que se possa imaginar para por em prática essas mudanças. Mesmo que fossem criadas novas Coordenações locais, os recursos humanos e financeiros da FUNAI não seriam suficientes para se consolidar os objetivos almejados.

A Logística da FUNAI

Num cenário hipotético de uma Coordenação Regional em Cruzeiro do Sul seria o caos para atendimento aos indígenas do Vale do Javarí, e do contrário, onde a sede fosse em Atalaia do Norte, o mesmo aconteceria com os indígenas no Acre. Ou seja, o objetivo maior que é o de fortalecer o papel do órgão se tornará apenas uma “boa intenção”.

Para se ter uma idéia das dificuldades logísticas e operacionais ao atendimento dessas áreas de abrangência da atual Coordenação (conforme está oficializado); se por caso o Coordenador Regional pretender visitar algumas das comunidades indígenas em qualquer município no Acre, teria de pegar um avião (linha comercial) em Tabatinga, com conexões em Manaus, Porto Velho, Rio Branco e finalmente Cruzeiro do Sul-AC; ou vice-versa.

Não faz o menor sentido, sobretudo, quando sabemos que Governo nenhum vai triplicar ou quadruplicar o orçamento da FUNAI constantemente nos próximos anos para que a mesma se estruture adequadamente, ou mantenha gastos vultosos com despesas de passagens em todas essas regiões. Para contornar todas essas dificuldades seria necessária, no mínimo, adquirir aviões bimotores ou monomotores (anfíbio e terrestre), barcos de todos os portes, construção e estruturação de dezenas de novas Coordenações locais, contratação de pessoal em número suficiente e aquisição de equipamentos para a execução dos trabalhos em campo. No atual contexto, conforme o decreto 7056 e oficializado pela FUNAI, a Coordenação Regional do Javari e Juruá atenderá aproximadamente 18.000 indígenas, espelhados em regiões dos dois estados.

No início do ano houve uma grande reunião no Município de Atalaia do Norte com a representante da presidência da FUNAI, senhora Irânia Marques, e dezenas de lideranças tradicionais (de cinco etnias distintas), tendo como finalidade a discussão sobre onde iria ser localizada a sede da nova Coordenação. Naquele momento imaginávamos que a jurisdição da Coordenação do Vale do Javarí e Juruá fosse somente Cruzeiro do Sul-AC, Eirunepé-AM e Atalaia do Norte-AM, que são cidades mais ou menos próximas ao Vale do Javarí e aonde uma ínfima parte de Marubo e Kanamari transita (através de varadouros com uma média de 5 a 10 dias de viagem a pé) para resolverem problemas de documentação e a compra de produtos industrializados. Porém, com a oficialização sobre a jurisdição dessa Unidade Gestora, percebemos o quanto essas mudanças serão prejudiciais à própria FUNAI e consequentemente aos nossos filhos e netos. As diferenças são visíveis até mesmo nos mapas das áreas indígenas que são jurisdicionadas a nova Coordenação.

Pela Coordenação do Vale do Javarí

A reestruturação da FUNAI e a contratação de novos servidores para o órgão eram, e ainda é, uma reivindicação de décadas do Movimento Indígena. Tais mudanças são necessárias, contudo, da forma que vêm sendo feita não irá mudar o atual quadro da política indigenista oficial. A FUNAI vai continuar fazendo de conta que cumpre com a sua missão e os índios continuarão esquecidos, mesmo com os “mecanismos de participação” previstos no referido Decreto Presidencial. Não adianta juntar um punhado de terras indígenas em torno de uma Unidade Gestora, sendo que as condições financeiras, geográficas, logísticas e operacionais inviabilizarão a atuação do órgão e ao invés de melhorar (como se pretende) só tende a piorar.

Diante destes argumentos, vimos manifestar a nossa reivindicação sobre a criação de uma Coordenação Regional específica para o Vale do Javarí. Somos a segunda maior Terra Indígena do país e estamos inseridos no contexto descritos neste documento, dentre outros fatores específicos desta região. São condicionantes que exigem uma atuação específica de uma Unidade Gestora nesta área (equivalente ao território de Portugal), com a incumbência de consolidar os princípios almejados pelo Decreto Presidencial 7056 de 28.02.2010.

Pedimos aos nossos parceiros, parentes de outras regiões, Organizações Não-governamentais e Governamentais, ligadas à questão indígena, que nos ajudem a divulgar, discutir e consolidar esta reivindicação, pois este é o único meio de sermos ouvidos. Não temos condições financeiras para levar todas as nossas lideranças tradicionais até Brasília e lermos, em voz alta, este documento às autoridades, que têm o poder de mudar esses erros sobre a FUNAI em nossa área. É muito preocupante e vem criando uma grande insegurança em nossas aldeias. Sabemos que essas mudanças na FUNAI serão as referências que conduzirão a atuação do órgão nos próximos anos, por isso a importância e a urgência para que sejam adequadas a nossa realidade, sobretudo, as nossas especificidade.

(*) É Coordenador Geral do UNIVAJA: União dos Povos Indígenas do Vale do Javarí

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