quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

UM CALDEIRÃO DE HISTÓRIAS EM IRANDUBA

Ellza Souza (*)

O dia nem havia clareado ainda, eram 5 horas da manhã quando o despertador avisou que estava na hora de levantar. Mal deu tempo de tomar banho e engolir um café com leite quando o táxi chegou. Ia visitar o Sítio Escola do Caldeirão em Iranduba e como ainda não havia ponte a aventura começou no porto das balsas do bairro de São Raimundo. O Sítio Escola da Universidade do Estado do Amazonas-UEA estava localizado no Campo Experimental da Embrapa no km 12 da estrada Manaus-Manacapuru e mais dez quilômetros no ramal do Caldeirão, zona rural de Iranduba. O combinado por telefone com o Fernando era atravessar de voadeira que custava 5 reais por pessoa e do outro lado, na feira do Cacau, pegar uma carona no carro da Embrapa junto com Orlando Paulino, pesquisador da Embrapa e coordenador do projeto Terra Preta de Índio e outros funcionários como o Fernando e o seu Josias, 55, o “camaleão” que ajuda nas escavações e é conhecido por suas histórias. Faz gosto a travessia só pela esplendorosa visão da manhã chegando com o céu e o sol numa mistura de azul com alaranjado sobre a imensidão do rio Negro batendo levemente nas beiras da cidade.

O Campo Experimental da Embrapa onde funcionou o sítio escola em julho de 2011 é uma área de 208 hectares na região de Caldeirão, onde se encontram áreas de terra preta de índio (TPI) correspondendo a um sítio arqueológico de aproximadamente 23 ha. Quarenta pessoas estavam envolvidas no Projeto Terra Preta de Índio dos quais 18 são alunos de arqueologia da UEA em Iranduba e os outros são profissionais de diversas áreas do conhecimento de outras instituições brasileiras e estrangeiras.

O projeto dura apenas trinta dias mas este estudo se insere em um projeto realizado por pesquisadores de diversas instituições que investigam o desenvolvimento de técnicas para a reprodução da fertilidade dessas terras caracterizadas pelo grande acúmulo de matéria orgânica e nutrientes como cálcio, magnésio, zinco, manganês, fósforo e carbono. O apoio da Embrapa a essa pesquisa dos solos de TPI visa criar um modelo de formação e evolução e reprodução dessas terras focando os estoques e a dinâmica desses minerais.

Eduardo Góes Neves, pesquisador do Museu de Arqueologia da USP que visitou o local, salienta que “a terra preta não perde a fertilidade e descobrir o porquê dessa estabilidade pode ser uma importante contribuição para a agricultura tropical”. O carvão vegetal conhecido como BIOCHAR, por exemplo, é produzido a partir da carbonização de biomassa de resíduos orgânicos e de estudos dessa natureza. Neves, que desenvolve pesquisas arqueológicas e estuda a TPI desde os anos 90 já realizou outros trabalhos em Iranduba e pela sua importância na arqueologia propôs a construção de um centro de pesquisa mas a iniciativa não interessou às autoridades locais.

Especialistas da Embrapa também acreditam que quando for possível a ciência reproduzir essas preciosas terras haverá uma grande revolução verde o que pode acarretar a tão desejada sustentabilidade da agricultura dos trópicos, inviável segundo alguns pela aridez de seus solos. “A perda rápida de nutrientes dos solos nos trópicos se deve a chuva e a evaporação” diz Eduardo Góes em entrevista a um jornal de Manaus. A diferença entre a maioria dos solos amazônicos e a terra preta é que as primeiras têm que ser adubadas o tempo inteiro e a TPI não perde a fertilidade portanto não precisam de adubo e fertilizante. O pesquisador Orlando Paulino, da Embrapa e coordenador do projeto diz que “o solo da Amazônia é rico para sustentar uma floresta como a nossa”. Palavra de especialista e eu acredito mas a riqueza do solo pode ser de outra ordem e precisamos desvendar com estudos esse mistério.

O pesquisador Paulino em sua palestra aos alunos no sítio do Caldeirão explica que “não se sabe ainda para que cultivares serve a TPI e por isso existe a resistência da Embrapa em divulgar os estudos que faz”. Mas o que se conhece é que são as terras mais férteis do mundo e foram solidificadas a partir de material orgânico como restos de animais jogados ou enterrados nos “quintais” por sociedades ou grupos que aqui viveram geralmente localizadas nas proximidades do rio e à beira de barrancos.

O americano Morgan Schmidt, coordenador dos alunos e pesquisador ligado ao Museu Paraense Emilio Goeldi, mostrou cada recanto das trincheiras abertas. Pude observar que é um apaixonado pelo assunto e faz questão de falar de cada detalhe que descobre com seus alunos em volta olhando e aprendendo com as importantes informações que relata. Segundo ele a escavação da urna é um ato raro e precisa de técnica e cuidado para o resgate da peça. Nesse mesmo buraco aparecem também incrustado na parede dois outros tipos de vasos grandes que estão sendo retirados. Morgan nos falou da provável “casa” cujos indícios aparecem na escavação feita no local. O pesquisador nos mostra que existem no solo de uma das trincheiras manchas redondas de terra mais escura como se fossem os esteios de uma grande maloca, separados um do outro pela mesma distância. Nas paredes dessas unidades (cada unidade tem i metro quadrado) dá para observar os caquinhos de cerâmica e carvão deixados pelos nossos ancestrais. É emocionante perceber os vestígios na terra e o trabalho minucioso que está sendo feito no local pelo grupo.

A terra vai sendo retirada de dez em dez centímetros que depois é peneirada para resgatar cada fragmento de cerâmica, carvão e vestígios ósseos. Aí então o material segue para o laboratório da Universidade Federal do Amazonas principalmente, em Manaus, para identificação dos costumes desses povos e possível datação. “A terra preta ficava ao redor das casas” salienta Morgan. Esses costumes são estudados pelos arqueólogos na fase de análise e interpretação dos vestígios (não nesse primeiro momento de transporte de material). “Algumas amostras são enviadas para datação em laboratórios especializados” afirma Gabriela Carneiro que participou do sítio-escola. Com as escavações é possível não apenas retirar amostras mas identificar a espessura das camadas de terra preta. Lígia, 21, formada em História pela USP e participante do grupo de estudos, é instigada pela curiosidade de “descobrir como as pessoas viviam”. Morgan também nos levou à beira do íngreme barranco para mostrar sinais da passagem do homem em direção ao rio mais à frente escondido pela vegetação. O olhar experiente do estudioso vê cada montículo de terra revolvido hà muito tempo e segundo seus alunos ele consegue identificar pelas condições do terreno talvez, o lugar bom para a busca ao tesouro. E aí é só demarcar a unidade e escavar. Além de Iranduba, existe terra preta de índio em Manacapuru, Parintins, Boa Vista do Ramos, Maués e outras regiões da Amazônia. Ainda existem muitos sítios arqueológicos a serem levantados e estudados na região.

No campo da Embrapa tem uma plantação de bambus e acácias cultivadas para serem usadas como lenha mas que formam um bosque que alivia o intenso calor de quem trabalha nas escavações. É gritante a diferença de clima no espaço mais descampado e sem árvores da área com a proteção das árvores próximas umas das outras. “Aqui é mais fresco” disse uma aluna que trabalha numa trincheira por ali. Na terra fértil que existe no local tem plantação de macaxeira e couve sem nada de fertilizante e adubo.

Os jovens estudiosos, entre 19 e 29 anos, que se habilitam a colocar a mão na terra com muita paciência e empenho denotam amor pelo que fazem. Adilon, 22, do curso de arqueologia da UEA se mostra “emocionado e curioso”. Indira, 29 e psicóloga que trabalha no laboratório de arqueologia da UFAM; Sara, 19, do curso de antropologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), apesar da pouca idade já sabe que “é preciso entender como a terra preta foi formada”. O Leandro, 25, mineiro e aluno da UEA, participa da escavação onde se espera encontrar os esteios de sustentação de uma maloca cujos indícios são os montículos de terra preta. A Gabriela, 23, paulista que faz mestrado de arqueologia da pré história em Paris. A jovem está tão entusiasmada com o trabalho que quer morar em Manaus quando acabar seus estudos na Europa. Maicon, 29, acha que “aqui afloram os indícios de nossos antepassados”. André, 21, paraense, estudante de geografia da Universidade Federal do Pará, trabalha no Museu Emilio Goeldi e adora escrever crônicas sobre temas “existenciais” e considera “fantástico” a experiência no Caldeirão. Suzane, Camila, Ana Carol, o Pupunha e Caroline (também do Museu Goeldi) estavam ali cheios de disposição e, apesar do trabalho exaustivo e das mãos calejadas, felizes pelas descobertas.

Um bom começo para despertar a sociedade para o trabalho arqueológico e para o aumento de profissionais nessa área é a “educação e a sensibilização da comunidade” diz Arminda Mendonça, amazonense e fundadora da 1ª. Faculdade de Arqueologia e Museologia Marechal Rondon no Rio de Janeiro que hoje se chama Estácio de Sá.
Esperava encontrar num sítio arqueológico tralhas, tristeza e energias sobrenaturais. Ao contrário encontrei no Caldeirão um lugar cheio de vida, de pessoas alegres com o que fazem, de conhecimento, de respeito com os antepassados e de cuidado com o meio ambiente, além do que é um lugar com muitas histórias a serem descobertas.

A curiosidade dos alunos da Escola Municipal Dona Mieko, a 5 km de Iranduba, em visita ao sítio, demonstra que esse deve ser o caminho da ciência. Ketlen, 6 anos, garante que quer ser arqueóloga. Maria Eduarda de 10, quer saber se “encontraram alguma pegada”. Agora cabe aos professores instigar essa curiosidade nata e apontar os caminhos para a iniciação científica, a procura pelas respostas que tanto oprimem o ser humano. Isso é meio caminho andado para o desenvolvimento de um país com responsabilidade. Como bem disse o Orlando Paulino em sua palestra: “Vamos descobrir o segredo da terra preta”.

DEPOIMENTO DE UM JOVEM PESQUISADOR

O paraense André Heron registrou em uma crônica os últimos momentos do grupo no sítio do Caldeirão. Fique certo meu jovem arqueólogo que você nos deu orgulho com o seu empenho e dedicação. Você e todos do grupo. Abaixo alguns trechos do seu texto:
“Desde o início, o sítio arqueológico do Caldeirão mostrou-se surpreendente. Nos dias que antecederam o final de sua escavação essa afirmação mostrava-se cada vez mais assertiva. Como que por obra de intuição e força de labuta, nos pontos estratégicos da área em estudo, foram descobertas vinte e sete feições, ou seja, marcas de postes de sustentação de casas pré-históricas que gravadas ficaram no solo.

Para maior surpresa, a quinhentos metros desta primeira casa, foram encontradas mais feições alinhadas cujas formas remetiam a outra possível casa pré-histórica. Como se não bastasse tamanha bondade, na última semana, ao lado das três urnas cuidadosamente escavadas, fora achada uma quarta, tão ou mais preservada que as demais. Assim, sabia-se que terminar este sítio não seria uma tarefa fácil. As mãos já pesavam sobre as espátulas, olhos e faces já se viam sobre o peso da responsabilidade e saudade de sua terra mater, sentimento este intermitente durante todo o campo. Como fazer então”?

É uma pergunta difícil de responder pelas condições adversas que a pesquisa sofre no Brasil. Mas os abnegados cientistas não desistem e o André nos dá esperança com suas palavras de otimismo:

“Mais uma vez vê-se um trunfo: a Amazônia insiste em ser conhecida e surpreendida pelos seus próprios mistérios. Alguns, aqueles que ousarem tocar na realidade oculta do conhecimento escondido nas árvores, rios e solos desta soberba floresta, poderão entender que o Caldeirão é apenas um convite e uma amostra de tudo que é apenas parte, fragmento, ponta, do fabuloso espetáculo que é a Amazônia”.

MUIRAQUITÃS – PEQUENOS AMULETOS DE GRANDES SIGNIFICADOS

Os estudos arqueológicos apontam para a interação que existia entre as grandes sociedades da Amazônia com outros países da América do Sul como Colômbia e Peru, talvez América Central e Caribe. Morgan Schmidt explica que o “muiraquitã é encontrado nas proximidades de Santarém, no Caribe, na Nicarágua” o que formava pelo menos uma rede de comunicação entre inúmeras civilizações. E o mais curioso é que esses pequenos objetos em forma de sapos e outros animais na maioria são esculpidos em jade, material só encontrado na Ásia. Isso fez com que o cientista João Barbosa Rodrigues, em 1899, no seu livro “O muyrakitã e os ídolos simbólicos” deixe clara a teoria da migração asiática para explicar os povos indígenas da Amazônia.

Bem mais tarde o professor de história e pesquisador mineiro Antonio de Paiva Moura esclarece que “a arqueologia descobriu que os muiraquitãs foram produzidos pelos pré-colombianos da região dos rios Tapajós e Trombetas, com mineral de ótima plasticidade, como esteatita, ardósia, arenito e serpentina. Representam figuras de animais estilizados em linhas geométricas e harmoniosas. Apresentam orifícios paralelos indicando uma utilização prática. Compreende-se por Sambaquis os depósitos constituídos de montes artificiais de conchas, restos de preparo de alimentos e de esqueletos acumulados por homens pré-históricos em toda a costa brasileira. Enquanto os motivos da escultura tapajó eram animais próprios da hiléia amazônica, os povos dos Sambaquis projetavam os peixes e as aves que eram os complementos de sua alimentação à base de horticultura. O apuro técnico a que chegaram, em alguns exemplares da escultura em pedra, mostram um extraordinário domínio da forma que perseguiram. Era evidente a intenção da delicadeza e da harmonia das linhas quer nas incisões quer nas excisões”.

Enquanto os estudos sobre a Amazônia não se concluem e estão apenas começando, esses amuletos raros saem da região e são muito cobiçados pelos museus do mundo todo. Para muita gente a posse de um significa sorte, riqueza, cura das doenças e fazem parte do imaginário do homem da floresta há muito tempo.

(*) É jornalista, escritora e articulista do NCPAM/UIFAM.

Um comentário:

Anônimo disse...

Interessante a matéria. Parabéns. A propósito, reparou que está difícil navegar na página? Muito difícil usar a barra de rolagem do texto à direita com o amiguinho tipo pop-up insistente que aparece sempre que vamos usá-la... Irritante.