CADEADO
NA ALDEIA
É
a representação real do domínio e da propriedade privada, demarcando limites e
impondo sobre o outro a vontade do mais forte para dominar território e explorar
o trabalho visando riqueza e ostentação.
Ademir Ramos (*)
Há
dias atrás, em entrevista ao tarimbado jornalista Paulo Markun, falávamos das
estruturas das malocas, seus significados, funções e representação no
imaginário dos povos indígenas do Brasil, dando ênfase a estada do repórter na
aldeia dos waimiri-atroari para
documentar o objeto de sua reportagem. Foi aí que me lembrei da cena do cadeado
na aldeia servindo de instrumento de imitação e provocando o estranhamento aos
visitantes.
A
cena foi documentada na aldeia de rio, na microrregião do Município de Nova
Airão, no estado do Amazonas. Nesta bela aldeia, os waimiri-atroari guardavam suas ferramentas de trabalho no cercado
sob a força de um cadeado que só um entre eles tinham a chave, talvez, por
isso, achasse no direito de dar ordem aos seus, assim como os agentes externos
faziam.
O
cadeado é a representação real do domínio e da propriedade privada, demarcando
limites e impondo sobre o outro a vontade do mais forte para dominar território
e explorar o trabalho visando riqueza e ostentação. Mas, na aldeia dos waimiri-atroari, o cadeado estava mais
como um adereço no cenário comunal do que uma força possessiva de domínio e
subordinação... como um braço sem corpo.
Dar
ordem pouco ou nada significa se os seus não obedecem. Isto porque as relações
sociais originam-se de uma forma comunitária assentada no uso e ocupação de um
território regrado por convenções tradicionais que primam por uma ordem regida pelas
relações consanguíneas e solidárias a estabelecer formas e funções de trabalho
diferenciado fundamento no sexo e idade.
Neste
espaço construído a aldeia tradicional organiza-se centrado na roça e na maloca
(termo genérico para falar da moradia comunitária). Nesses dois empreendimentos
o trabalho, socialmente comunitário, está presente. É uma festa compartilhada
por todos. Na roça escuta-se e revelam-se as confidências e amores, semente da
vida. É também um símbolo de prosperidade apresentado aos visitantes como valor,
enaltecendo, sobretudo, o trabalho das mulheres.
Na
construção da maloca, as mulheres também participam, mas o trabalho final é dos
homens que dão a forma terminativa de seu acabamento. A construção desse espaço
é carregada de simbolismo e funcionalidade. A estrutura de sua construção está
quase sempre vinculada as suas representações míticas fundadoras, com ícones
identitários e espaço demarcado por esteios e redes que denunciam confinamentos
de determinadas famílias ou clãs.
Trata-se
de uma estrutura sem paredes divisórias, sem cadeados ou trancas, regradas
pelos usos e costumes de uma tradição secular, que desconhece o roubo, o furto
e muito menos a miséria a reduzir as pessoas em coisas, em trapos humanos,
enquanto um pequeno grupo vive no mundo da fantasia, com arrogância a se
vangloriar das políticas compensatórias instituídas para conter a explosão dos
miseráveis e com isso garantir a integridade da propriedade privada, o status dos dominadores e dos governantes
socialmente injustos e politicamente corruptos.
(*)
É professor, antropólogo, coordenador do projeto Jaraqui e do NCPAM/UFAM.
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