domingo, 7 de abril de 2013


CADEADO NA ALDEIA

É a representação real do domínio e da propriedade privada, demarcando limites e impondo sobre o outro a vontade do mais forte para dominar território e explorar o trabalho visando riqueza e ostentação.

Ademir Ramos (*)

Há dias atrás, em entrevista ao tarimbado jornalista Paulo Markun, falávamos das estruturas das malocas, seus significados, funções e representação no imaginário dos povos indígenas do Brasil, dando ênfase a estada do repórter na aldeia dos waimiri-atroari para documentar o objeto de sua reportagem. Foi aí que me lembrei da cena do cadeado na aldeia servindo de instrumento de imitação e provocando o estranhamento aos visitantes.

A cena foi documentada na aldeia de rio, na microrregião do Município de Nova Airão, no estado do Amazonas. Nesta bela aldeia, os waimiri-atroari guardavam suas ferramentas de trabalho no cercado sob a força de um cadeado que só um entre eles tinham a chave, talvez, por isso, achasse no direito de dar ordem aos seus, assim como os agentes externos faziam.

O cadeado é a representação real do domínio e da propriedade privada, demarcando limites e impondo sobre o outro a vontade do mais forte para dominar território e explorar o trabalho visando riqueza e ostentação. Mas, na aldeia dos waimiri-atroari, o cadeado estava mais como um adereço no cenário comunal do que uma força possessiva de domínio e subordinação... como um braço sem corpo.       

Dar ordem pouco ou nada significa se os seus não obedecem. Isto porque as relações sociais originam-se de uma forma comunitária assentada no uso e ocupação de um território regrado por convenções tradicionais que primam por uma ordem regida pelas relações consanguíneas e solidárias a estabelecer formas e funções de trabalho diferenciado fundamento no sexo e idade.

Neste espaço construído a aldeia tradicional organiza-se centrado na roça e na maloca (termo genérico para falar da moradia comunitária). Nesses dois empreendimentos o trabalho, socialmente comunitário, está presente. É uma festa compartilhada por todos. Na roça escuta-se e revelam-se as confidências e amores, semente da vida. É também um símbolo de prosperidade apresentado aos visitantes como valor, enaltecendo, sobretudo, o trabalho das mulheres.  

Na construção da maloca, as mulheres também participam, mas o trabalho final é dos homens que dão a forma terminativa de seu acabamento. A construção desse espaço é carregada de simbolismo e funcionalidade. A estrutura de sua construção está quase sempre vinculada as suas representações míticas fundadoras, com ícones identitários e espaço demarcado por esteios e redes que denunciam confinamentos de determinadas famílias ou clãs.

Trata-se de uma estrutura sem paredes divisórias, sem cadeados ou trancas, regradas pelos usos e costumes de uma tradição secular, que desconhece o roubo, o furto e muito menos a miséria a reduzir as pessoas em coisas, em trapos humanos, enquanto um pequeno grupo vive no mundo da fantasia, com arrogância a se vangloriar das políticas compensatórias instituídas para conter a explosão dos miseráveis e com isso garantir a integridade da propriedade privada, o status dos dominadores e dos governantes socialmente injustos e politicamente corruptos.   

(*) É professor, antropólogo, coordenador do projeto Jaraqui e do NCPAM/UFAM. 

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