sábado, 20 de abril de 2013


“ONDE NOSSOS DESTINOS SE CRUZARAM”: MÁRCIO SOUZA E  GLAUBER ROCHA


Sobre Glauber Rocha, o escritor e dramaturgo amazonense, Márcio Souza, faz a seguinte declaração em sua Crônica - “A capital do mormaço”-, em a Crítica, de 21 de abril (domingo) de 2013, C6, remontando os tempos da ditadura e o movimento cultural no Amazonas, alumiando as veredas e qualificando os atores na trama perpetrada pelo golpe de 64. Confira agora a narrativa do autor de “Galvez, Imperador do Acre” muito antes de chegar às bancas:

Posso mesmo dizer que onde nossos destinos se cruzaram, tivemos muitos embates intelectuais. No final dos anos 60, um pouco antes de Glauber realizar Barravento, começamos uma troca de correspondência, em que o assunto básico era o cineclubismo, movimento cultural bastante intenso naqueles anos. Eu pertencia ao GEC – Grupo de Estudos Cinematográfico do Amazonas, cineclube liderado pelo saudoso Cosme Alves Neto, e que provocou uma verdadeira revolução cultural em Manaus.

Glauber era da alta direção do cineclube de Salvador, dirigido e animado pelo lendário crítico Walter da Silveira. A vida do movimento cineclubista era intensa, cheia de surpresa, onde as bruxuleantes projeções na bitola de 16mm, as cópias surradas e as inúmeras interrupções na sessão, nãoimpediam a alegria e o prazer de conhecer os clássicos do cinema. E se falava muito de política e realidade brasileira. Não é de surpreender que as cartas de Glauber fossem quase sempre comentários desabusados sobre a realidade política nacional, especialmente em relação ao golpe de 1964. É claro que sobra espaço na nossa correspondência para falar mal do Rubens Biáfora, para acusar Fellini de místico e Bergman de reacionário burguês, restando na nossa admiração às obras de Buñuel, Eisenstein e Kurosawa.

Mas nem sempre concordávamos, para dizer a verdade, quase nunca concordávamos especialmente em questões ideológicas e eu sempre desconfiava que por trás da iconoclastia de Glauber esta um direitista de plantão. Paulo Gil Soares me dizia: - Glauber é um reacionário. Imagina que não deixa a Anecy namorar com ninguém.

Em 1966 estava no governo o professor Arthur César Ferreira Reis, e na Secretaria de Turismo o escritor Luiz de Miranda Correa. Convenci este último a convidar Glauber para fazer um filme no Amazonas. O professor Artur Reis aceita a ideia e manda oficializar o convite, que chega justamente no momento em que Glauber ia preso por ser manifesta, junto com outros intelectuais, contra a reunião da OEA, que se realizava no Hotel Glória, no Rio.  Mal sai da cadeia, ele parte para Manaus, onde fica por cinco semanas e roda um de seus mais famosos documentários, “Amazonas, Amazonas”, em que o seu olhar de nordestinos se mostra perplexo frente à exuberância da natureza e porque quase nada restava de presença material da cultura colonial barroca, como era comum em Salvador. Depois de sua passagem amazônica, não trocamos mais correspondência, mas mantínhamos e Glauber nunca esquecia de me convidar para as suas estreias.

Nossas posições políticas foram cada vez mais se distanciando, mas nunca perdemos o terreno comum do cinema e do amor pelo Brasil. 

Em 1981, estando em Paris, recebi uma ligação de Darcy Ribeiro, convidando-me para jantar com uma pessoa que ele não podia revelar o nome. Darcy também não aceitava uma recusa. É claro que aceitei e lá fomos nós, eu, Darcy e Claudia Zarvos ao encontro desse misterioso convidado. Caminhamos pelo Boulevard Edgar Quinet, até que chegamos a um bistrô onde um tipo vestindo um enorme poncho de lã de vicunha vociferava contra um apavorado garçom, em castiço francês com malemolente  sotaque bahiano: era Glauber.

E o motivo do mistério é que ele cismara que nossas relações estavam cortadas, apenas porque fizera uma ou duas referências críticas a meu respeito em seu alucinado programa de televisão, o Abertura, na extinta TV Tupi. Desfeito o engano, fomos jantar e bater papo no Procope, o café mais antigo do mundo. Mas esta já é outras estórias glauberiana.

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