“ONDE
NOSSOS DESTINOS SE CRUZARAM”: MÁRCIO SOUZA E
GLAUBER ROCHA
Sobre
Glauber Rocha, o escritor e dramaturgo amazonense, Márcio Souza, faz a seguinte
declaração em sua Crônica - “A capital do mormaço”-, em a Crítica, de 21 de
abril (domingo) de 2013, C6, remontando os tempos da ditadura e o movimento
cultural no Amazonas, alumiando as veredas e qualificando os atores na trama
perpetrada pelo golpe de 64. Confira agora a narrativa do autor de “Galvez,
Imperador do Acre” muito antes de chegar às bancas:
Posso
mesmo dizer que onde nossos destinos se cruzaram, tivemos muitos embates
intelectuais. No final dos anos 60, um pouco antes de Glauber realizar
Barravento, começamos uma troca de correspondência, em que o assunto básico era
o cineclubismo, movimento cultural bastante intenso naqueles anos. Eu pertencia
ao GEC – Grupo de Estudos Cinematográfico do Amazonas, cineclube liderado pelo
saudoso Cosme Alves Neto, e que provocou uma verdadeira revolução cultural em
Manaus.
Glauber era da alta direção do
cineclube de Salvador, dirigido e animado pelo lendário crítico Walter da
Silveira. A vida do movimento cineclubista era intensa, cheia de surpresa, onde
as bruxuleantes projeções na bitola de 16mm, as cópias surradas e as inúmeras
interrupções na sessão, nãoimpediam a alegria e o prazer de conhecer os
clássicos do cinema. E se falava muito de política e realidade brasileira. Não
é de surpreender que as cartas de Glauber fossem quase sempre comentários
desabusados sobre a realidade política nacional, especialmente em relação ao
golpe de 1964. É claro que sobra espaço na nossa correspondência para falar mal
do Rubens Biáfora, para acusar Fellini de místico e Bergman de reacionário
burguês, restando na nossa admiração às obras de Buñuel, Eisenstein e Kurosawa.
Mas nem sempre concordávamos, para
dizer a verdade, quase nunca concordávamos especialmente em questões
ideológicas e eu sempre desconfiava que por trás da iconoclastia de Glauber esta
um direitista de plantão. Paulo Gil Soares me dizia: - Glauber é um
reacionário. Imagina que não deixa a Anecy namorar com ninguém.
Em 1966 estava no governo o
professor Arthur César Ferreira Reis, e na Secretaria de Turismo o escritor
Luiz de Miranda Correa. Convenci este último a convidar Glauber para fazer um
filme no Amazonas. O professor Artur Reis aceita a ideia e manda oficializar o
convite, que chega justamente no momento em que Glauber ia preso por ser
manifesta, junto com outros intelectuais, contra a reunião da OEA, que se
realizava no Hotel Glória, no Rio. Mal
sai da cadeia, ele parte para Manaus, onde fica por cinco semanas e roda um de
seus mais famosos documentários, “Amazonas, Amazonas”, em que o seu olhar de
nordestinos se mostra perplexo frente à exuberância da natureza e porque quase
nada restava de presença material da cultura colonial barroca, como era comum
em Salvador. Depois de sua passagem amazônica, não trocamos mais correspondência,
mas mantínhamos e Glauber nunca esquecia de me convidar para as suas estreias.
Nossas posições políticas foram
cada vez mais se distanciando, mas nunca perdemos o terreno comum do cinema e do
amor pelo Brasil.
Em 1981, estando em Paris,
recebi uma ligação de Darcy Ribeiro, convidando-me para jantar com uma pessoa
que ele não podia revelar o nome. Darcy também não aceitava uma recusa. É claro
que aceitei e lá fomos nós, eu, Darcy e Claudia Zarvos ao encontro desse misterioso
convidado. Caminhamos pelo Boulevard Edgar Quinet, até que chegamos a um bistrô
onde um tipo vestindo um enorme poncho de lã de vicunha vociferava contra um
apavorado garçom, em castiço francês com malemolente sotaque bahiano: era Glauber.
E o motivo do mistério é que
ele cismara que nossas relações estavam cortadas, apenas porque fizera uma ou
duas referências críticas a meu respeito em seu alucinado programa de
televisão, o Abertura, na extinta TV Tupi. Desfeito o engano, fomos jantar e
bater papo no Procope, o café mais
antigo do mundo. Mas esta já é outras estórias glauberiana.
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