O
PROGRESSO DA DECADÊNCIA
Arnaldo Jabor (*)
“O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há
princípio que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Já
não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se
progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os
serviços públicos abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias
aumenta a cada dia. A agiotagem explora o juro. A ignorância pesa sobre o povo
como um nevoeiro. O número das escolas é dramático. A intriga política alastra-se
por sobre a sonolência enfastiada do País. Não é uma existência; é uma
expiação. Diz-se por toda a parte: “O País está perdido!” (…) Por isso, aqui
começamos a apontar o que podemos chamar de “o progresso da decadência”.”
Não fui eu quem escreveu isso. Foi
José Maria de Eça de Queirós, em 1871. Esta era a introdução de As Farpas que
lançou com Ramalho Ortigão, ainda em Coimbra. Tinha pouco mais de 20 anos
quando começou a esculachar em panfletos a mediocridade portuguesa no século
19, que nos legou essa herança lamentável. Nada mais parecido conosco.
Esses textos de Eça, reunidos sob o título de Uma Campanha
Alegre, foram justamente os primeiros que me caíram na mão. Fiquei deslumbrado
com a crítica social e de costumes. Não sabia que isso existia – eu era um
menino. Creio que minha vida de jornalista de TV, rádio e jornal foi
remotamente influenciada por ele. E revendo sua vida na internet, lembrei que
Eça de Queirós nasceu em 25 de novembro de 1845 – daqui a uma semana. Assim,
resolvi escrever de novo sobre ele.
Esse homem foi a maior paixão de minha vida. Com ele
aprendi tudo: minha pobre escritura, o ritmo de seu texto, a importância do
humor, do sarcasmo, e muito sobre a nossa ridícula loucura ibérica. Depois,
descobri um livro roído de traças na casa de meu avô: O Primo Basílio, que
minha avó tentou proibir (“Isso não é para criança!…”). Li-o, claro, e minha
vida mudou. Era como se toda a névoa confusa da infância, minha família difícil
de entender, vagas tias, vultos, rezas, tristes salas de jantar, secos padres
jesuítas, tivesse subitamente se dissipado. O mundo ficou claro, através das
personagens de Eça. Ali estavam explicados os arrepios de horror diante do
teatrinho pequeno-burguês do Rio. O primo Basílio chegava com sua vaidade
brutal e encarnava os cafajestes brasileiros, o padre Amaro me decifrava a
tristeza sexual das clausuras do Colégio Jesuíta, o Conselheiro Acácio era a
burrice solene de professores e políticos, Damaso Salcêde espelhava centenas de
mediocridades gorduchas, Gonçalo Ramirez era o frágil caráter de hesitantes
como eu. E vinha Thomaz de Alencar com sua literatice melancólica, vinha o
banqueiro Cohen, esperto e corno, flutuava no ar o cheiro enjoado da Titi
Patrocínio da Relíquia e, claro, as coxas de Adélia, sem falar no supremo
frisson do famoso “minette” do primo Basílio na “Bovary” Luiza (razão básica da
proibição alarmada de minha avó). E não só o desfile dos medíocres, mas as
fileiras dos heróis ecianos: Carlos da Maia, João da Ega, Jacintho de Tormes,
Fradique Mendes – cultos, elegantes, ricos, irônicos e corrosivos. Eça me dava
a alma viva do século 19, atacando a estupidez endêmica, os sebastianistas de
secretaria, os burocratas pulhas, os melancólicos de charutaria, os políticos
demagogos, a burrice épica de um Pacheco ou do Conde de Abranhos – que fartura!
Era uma sociologia ficcional de nosso destino de fracassados.
Eu o amava tanto que – acreditem – me postava na porta do
colégio na hora da saída, para ver passar um homenzinho da vizinhança ali de
Botafogo que era um sósia de Eça. Quem seria? Um bancário, um contador, quem?
Tinha o rosto enfezado por um fígado ruim (como o Eça) que lhe franzia a boca
num escárnio risonho. Tinha a mesma pastinha de cabelo sobre a testa curta, o
olho rútilo, o mesmo bigode, o gogozinho de pássaro, os braços de cegonha, a
palidez biliosa. Só lhe faltava o monóculo cravado no olho irônico. Vê-lo
passar me encantava como diante de um ressuscitado. Em vez de correr atrás de
meninas, eu fazia isso. Pode?
Até hoje, quando vejo a TV Câmara ou TV Senado, aquelas
ricas jazidas de imbecilidades, vendo as caras, frases e gravatas, eu ainda
penso: “Será que esses caras aí nunca leram Eça de Queirós?” Não. Nada. Eles
navegam intocados em sua vaidade estúpida, em sua impávida ratonice.
Entre Machado de Assis e Eça de Queiroz sempre preferi o
português ao nosso grande mulato. “Ah… porque o Machado é bem mais sutil!…” –
diz-se, comparando-se, por exemplo, Capitu à Luiza do Primo Basílio (que o
próprio Machado, ciumento, acusou de plágio da Eugenie Grandet). “Ahhh!… porque
o Machado tem mais níveis de significação, mais complexidade psicológica, etc.
e tal…” É verdade. Também acho. O grande Machado atingiu subtons que Eça nem
tentou, por escolha. Machado é mais inglês; Eça é saído das costelas de Flaubert,
Balzac e Zola e funda uma literatura caricatural contra as perdidas ilusões
ibéricas, com um riso deslavado, com uma proposital “falta de sutileza” que
resulta depois finíssima. Eça cria um realismo quase carnavalizado, sem anseios
de transcendência. Machado é mais “nauseado”. Deixa-se envolver por um
pessimismo que o claro riso de Eça recusa. É verdade que as personagens de Eça
não são tão “livres” quanto em Machado. O “tipo” eciano não tem grande
“complexidade”; mas isso talvez seja o que nossa mediocridade social merece.
Ele não cria personagens com uma psicologia sofisticada. Para ele, somos mesmo
“tipos”. Como em seu neto Nelson Rodrigues, há nele uma superficialidade
“profunda”, muito atual neste tempo em que os valores idealizados caíram no
chão. Eça é um escritor político. Ele nos exibe o ridículo das figuras que se
consideram nossos “timoneiros” do alto de sua gravidade falsa, com seus
interesses mesquinhos no bolso dos jaquetões.
(*) Cineasta, articulista do Estadão,
comentarista do sistema globo de rádio e televisão – intérprete da indignação
popular.
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