PASSANDO O BRASIL A LIMPO
Aécio
Neves chama ditadura de “revolução”
A fala ocorreu no 57º Congresso Estadual
de Municípios de São Paulo, em Santos, litoral paulista. O termo “revolução” é
comumente usado por militares e simpatizantes do regime repressivo que comandou
o Brasil por 21 anos, entre 1964-1985.
Os militares negam
que neste período tenha se caracterizado uma ditadura no País. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, ao ser
questionado sobre o uso do termo, Aécio desconversou. “Ditadura, revolução,
como quiserem”. Depois, o senador afirmou que “era um regime autoritário, que
lutamos para que fosse vencido”.
O tucano usou o termo
durante um discurso no qual apresentava breves relatos de episódios históricos,
que, segundo ele, retratam a política centralizadora do governo federal que se
mantém por décadas. “Veio a revolução de 64, novo período de grande
concentração de poder nas mãos da União, apesar de ter sido um período em que
foram criadas políticas compensatórias para determinadas regiões menos
desenvolvidas.”
O que a
falácia da ditabranda revela
Em um dos documentos divulgados no Paraguai, um militar brasileiro
diz a Pinochet para enviar pessoas para se formarem em repressão no Brasil, em
um centro de tortura localizado em Manaus.
Marco Aurélio Weissheimer (*)
Em um editorial publicado no dia 17 de fevereiro de 2009, o jornal Folha de S. Paulo utilizou a expressão “ditabranda” para
se referir à ditadura que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Na opinião do
jornal, que apoiou o golpe militar de 1964 que derrubou o governo
constitucional de João Goulart, a ditadura brasileira teria sido “mais branda”
e “menos violenta” que outros regimes similares na América Latina.
Como já se sabe, a Folha não foi original na escolha do termo. Em
setembro de 1983, o general Augusto Pinochet, em resposta às críticas dirigidas
à ditadura militar chilena, afirmou: “Esta nunca foi uma ditadura, senhores, é
uma dictablanda”. Mas o tema central aqui não diz respeito à originalidade. O
uso do termo pelo jornal envolve uma falácia nada inocente. Uma falácia que
revela muita coisa sobre as causas e consequências do golpe militar de 1964 e
sobre o momento vivido pela América Latina.
É importante lembrar em que contexto o termo foi utilizado pela
Folha. Intitulado “Limites a Chávez”, o editorial criticava o que considerava
ser um “endurecimento do governo de Hugo Chávez na Venezuela”. A escolha da
ditadura brasileira para fazer a comparação com o governo de Chávez revela, por
um lado, a escassa inteligência do editorialista. Para o ponto que ele queria
sustentar, tal comparação não era necessária e muito menos adequada. Tanto é
que pouca gente lembra que o editorial era dirigido contra Chávez, mas todo
mundo lembra da “ditabranda”.
A falta de inteligência, neste caso, parece andar de mãos dadas com uma falsa consciência culpada que tenta esconder e/ou justificar pecados do passado. Para a Folha, a ditadura brasileira foi uma “ditabranda” porque teria preservado “formas controladas de disputa política e acesso à Justiça”, o que não estaria ocorrendo na Venezuela. Mas essa falta de inteligência talvez seja apenas uma cortina de fumaça.
O editorial não menciona quais seriam as “formas controladas de disputa política e acesso à Justiça” da ditadura militar brasileira, mas considera-as mais democráticas que o governo Chávez que, em uma década, realizou 15 eleições no país, incluindo aí um referendo revogatório que poderia ter custado o mandato ao presidente venezuelano. Ao fazer essa comparação e a escolha pela ditadura brasileira, a Folha está apenas atualizando as razões pelas quais apoiou, junto com a imensa maioria da imprensa brasileira, o golpe militar contra o governo constitucional de João Goulart.
Está dizendo, entre outras coisas, que, caso um determinado governo implementar um certo tipo de políticas, justifica-se interromper a democracia e adotar “formas controladas de disputa política e acesso à Justiça”. A escolha do termo “ditabranda”, portanto, não é acidental e tampouco um descuido. Trata-se de uma profissão de fé ideológica.
Há uma cortina de véus que tentam esconder o caráter intencional dessa escolha. Um desses véus apresenta-se sob a forma de uma falácia, a que afirma que a nossa ditadura não teria sido tão violenta quanto outras na América Latina. O núcleo duro dessa falácia consiste em dissociar a ditadura brasileira das ditaduras em outros países do continente e do contexto histórico da época, como se elas não mantivessem relação entre si, como se não integrassem um mesmo golpe desferido contra a democracia em toda a região.
O golpe militar de 1964 e a ditadura militar brasileira alimentaram política e materialmente uma série de outras ditaduras na América Latina. As democracias chilena e uruguaia caíram em 1973. A argentina em 1976. Os golpes foram se sucedendo na região, com o apoio político e logístico dos EUA e do Brasil. Documentos sobre a Operação Condor fornecem vastas evidências dessa relação.
Recordando. A Operação Condor é o nome dado à ação coordenada dos serviços de inteligência das ditaduras militares na América do Sul, iniciada em 1975, com o objetivo de prender, torturar e matar militantes de esquerda no Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia.
O pretexto era o argumento clássico da Guerra Fria: "deter o avanço do comunismo internacional". Auxiliados técnica, política e financeiramente por oficiais do Exército dos Estados Unidos, os militares sul-americanos passaram a agir de forma integrada, trocando informações sobre opositores considerados perigosos e executando ações de prisão e/ou extermínio. A operação deixou cerca de 30 mil mortos e desaparecidos na Argentina, entre 3 mil e 7 mil no Chile e mais de 200 no Uruguai, além de outros milhares de prisioneiros e torturados em todo o continente.
Na contabilidade macabra de mortos e desaparecidos, o Brasil registrou um número menor de vítimas durante a ditadura militar, comparado com o que aconteceu nos outros países da região. No entanto, documento secretos divulgados recentemente no Paraguai e nos EUA mostraram que os militares brasileiros tiveram participação ativa na organização da repressão em outros países, como, por exemplo, na montagem do serviço secreto chileno, a Dina. Esses documentos mostram que oficiais do hoje extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) ministraram cursos de técnicas de interrogatório e tortura para militares chilenos.
Em uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (30/12/2007), o general Agnaldo Del Nero Augusto admitiu que o Exército brasileiro prendeu militantes montoneros e de outras organizações de esquerda latino-americanas e os entregou aos militares argentinos. “A gente não matava. Prendia e entregava. Não há crime nisso”, justificou na época o general. Humildade dele. Além de prender e entregar, os militares brasileiros também torturavam e treinavam oficiais de outros países a torturar. Em um dos documentos divulgados no Paraguai, um militar brasileiro diz a Pinochet para enviar pessoas para se formarem em repressão no Brasil, em um centro de tortura localizado em Manaus.
Durante a ditadura, o Brasil sustentou política e materialmente governos que torturaram e assassinaram milhares de pessoas. Esconder essa conexão é fundamental para a Folha afirmar a suposta existência de uma “ditabranda” no Brasil. A ditadura brasileira não teve nada de branda. Ao contrário, ela foi um elemento articulador, política e logisticamente, de outros regimes autoritários alinhados com os EUA durante a guerra fria. O editorial da Folha faz eco às palavras do general Del Nero: “a gente só apoiava e financiava a ditadura; não há crime nisso”.
Não é coincidência, pois, que o mesmo jornal faça oposição ferrenha aos governos latino-americanos que, a partir do início dos anos 2000, levaram o continente para outros rumos. Governos eleitos no Brasil, na Venezuela, na Bolívia, na Argentina, no Paraguai e no Uruguai passam a ser alvos de uma sistemática oposição midiática que, muitas vezes, substitui a própria oposição partidária.
A Folha acha a ditadura branda porque, no fundo, subordina a continuidade e o avanço da democracia a seus interesses particulares e a uma agenda ideológica particular, a saber, a da sacralização do lucro e do mercado privado. Uma grande parcela do empresariado brasileiro achou o mesmo em 64 e apoiou o golpe. Querer diminuir ou relativizar a crueldade e o caráter criminoso do que aconteceu no Brasil naquele período tem um duplo objetivo: esconder e mascarar a responsabilidade pelas escolhas feitas, e lembrar que a lógica que embalou o golpe segue viva na sociedade, com um discurso remodelado, mas pronto entrar em ação, caso a democracia torne-se demasiadamente democrática.
(*) Articulista da Carta Maioir.
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