Governo
contra os índios
Dalmo de Abreu Dallari (*)
Uma vez mais – e agora com a
colaboração ativa de setores do governo federal – está em curso uma tentativa
de negar cumprimento às determinações constitucionais de reconhecimento e
proteção dos direitos das comunidades indígenas sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, para entregar essas terras aos investidores do agronegócio. O dado novo
é que a iniciativa ostensiva da nova investida contra os direitos indígenas vem
da cúpula do governo federal, que é justamente o principal responsável pela
defesa desses direitos, por expressa e muito clara determinação constitucional.
É oportuno lembrar que a última tentativa de retirada da proteção desses
direitos foi feita por meio de uma proposta de emenda constitucional, a PEC
215, de autoria de um deputado do estado de Roraima, que, absurdamente,
pretendia transferir para o Legislativo a tarefa, essencialmente
administrativa, de demarcação das áreas indígenas. Essa tentativa não
prosperou, por sua evidente inconstitucionalidade e pelo reconhecimento da
absoluta impossibilidade prática de incumbir o Legislativo de realizar tarefas
para cuja execução ele não tem qualquer preparo nem as mínimas condições
práticas. A denúncia desse absurdo criou um obstáculo para o avanço
daquela proposta.
Agora a investida dos interesses do
agronegócio sobre as terras indígenas vem, surpreendentemente, da cúpula do
Poder Executivo federal. Quem aparece como propositora de um novo tratamento da
questão da identificação e demarcação das terras indígenas pelo governo federal
é a ministra-chefe da Casa Civil, Gleise Hoffmann, que não tem a mínima
familiaridade com o assunto, jamais tendo participado de qualquer atividade com
ele relacionado. É também oportuno e necessário lembrar que já existe, na
estrutura do governo federal um órgão especializado nas questões indígenas, que
é a Funai (Fundação Nacional do Índio), criada pela Lei federal nº 5.371, de 5
de dezembro de 1967, em substituição ao antigo Serviço de Proteção ao Índio
(SPI), que existia desde 1910. Por seu objetivo específico a Funai vem
acumulando conhecimentos e experiências no trato
das questões indígenas. O que tem sido denunciado há vários anos, sem qualquer
efeito prático, é que, certamente por influência de poderosos interesses
econômicos e, em decorrência, de poderes políticos, a Funai não tem recebido o
apoio necessário para o melhor desempenhode suas tarefas, entre as quais
se inclui a demarcação das áreas indígenas, intensamente cobiçadas por
investidores do setor agrícola.
É pública e notória a interferência
do agronegócio nessa área, já tendo sido objeto de informações pormenorizadas e
de muitos comentários a atuação da senadora Kátia Abreu, cuja família é ocupante de grandes áreas
rurais no estado de Tocantins e que acumula, ilegalmente, o desempenho do
mandato de senadora com o exercício da presidência da Confederação da
Agricultura e Pecuária do Brasil, dando indisfarçável preferência aos
interesses dessa área quando eles se opõem aos interesses de todo o povo
brasileiro, como ficou evidente na discussão da alteração do Código Florestal,
ou a interesses de setores sociais especialmente protegidos pela Constituição,
como é o caso das comunidades indígenas. Inúmeras vezes tem sido alegada a
insuficiência dos meios de que dispõe a Funai para o cumprimento, pelo governo
federal, da obrigação constitucional de demarcação das terras indígenas,
estabelecida no artigo 231 da Constituição de 1988. O que se tem deixado muito
evidente é que há anos não são dados à Funai os recursos de que ela necessita,
ficando muito claro o propósito de utilizar a inoperância da Funai como
pretexto para transferir a outros setores do governo (ou de fora do governo,
como se viu pela PEC 215) a tarefa de reconhecimento e demarcação das áreas
indígenas, com o indisfarçável objetivo de redução substancial da extensão
dessas áreas.
Pela proposta agora encampada pela
ministra-chefe da Casa Civil, no processo de identificação e demarcação das
terras indígenas deverão ser considerados, com especial atenção, dados do
Ministério da Agricultura e do Ministério das Cidades, parecendo haver a
intenção de colocar em plano secundário a Funai, que se limitaria a fornecer
laudos antropológicos. Um ponto que causou estranheza foi o deslocamento do
assunto da área do Ministério da Justiça, ao qual a Funai está vinculada, para
a Casa Civil. Nada impede que outros órgãos do governo federal sejam
consultados e forneçam informações à Funai, mas esta, por sua natureza, por sua
organização e pela experiência acumulada, é que deve ter a principal
responsabilidade no cumprimento do encargo de dar efetividade a essa obrigação
constitucional do governo da República. Espera-se que o ministro da Justiça
tome conhecimento das intenções da Casa Civil e que use sua influência para que
a Funai receba mais recursos e, com a colaboração de outros setores do governo,
acelere o processo de demarcação das áreas indígenas.
(*) É jurista.
- dallari@noos.fr
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