Movido
a ventos contrários
As
determinações que valem para a produção em geral devem ser precisamente
separadas, a fim de que não se esqueça a diferença essencial por causa da
unidade, a qual decorre já do fato de que o sujeito – a humanidade – e o objeto
– a natureza –são os mesmos.
Introdução à Crítica da Economia Política.
Marx
Mario
Sergio Conti (*)
Marx tiveram um crescimento vigoroso.
Como se procurava nos seus escritos o cerne crítico e revolucionário –
apreender o mundo para superá-lo –, tais estudos atualizaram o marxismo.
Psicanálise, estética, filosofia, história e, é claro, política – não houve
disciplina que não fosse subvertida pelo materialismo dialético (expressão,
aliás, que o próprio Marx nunca escreveu). Do
outro lado, do lado daqueles para quem o mundo e a vida não deveriam ser
transformados, Marx significava subversão. Logo, o que ele fora, pensara e
fizera devia ser negado. O Capital? Obra ideológica, com nenhum
rigor científico dos verdadeiros economistas. O Manifesto Comunista?
Receita direta para os horrores do stalinismo. Em 1989, a situação mudou. Mais com
festa que com lamúria, o comunismo tombou com a queda do Muro de Berlim. Dois
anos depois, a desagregação da União Soviética marcou o fim das disputas entre
os dois lados. O mundo de Marx estava morto. Inclusive no seu aspecto
materialista mais comezinho: o Instituto de Marxismo–Leninismo, com sedes em
Moscou e Berlim Oriental, encarregado de publicar a edição crítica das suas
obras completas, deixou de existir. Nem por isso jogou-se a pá de cal
sobre o cadáver do comunista. Com o impulso do chanceler alemão Helmut Kohl,
conservador insuspeito mas historiador de formação, a edição das obras
completas prosseguiu. Ela é conduzida por um comitê de acadêmicos de várias
nacionalidades. É um trabalho de vulto e meritório que, no entanto, bota as
ideias de Marx no seu devido lugar: num museu de coisas muito mortas. Lançada
há pouco nos Estados Unidos, uma biografia feita pelo americano Jonathan
Sperber é produto desse contexto histórico. Seu subtítulo diz tudo: Uma
Vida do Século XIX. Não se trata de encarar Marx como personagem do mundo
contemporâneo, mas de vê-lo como um produto da era vitoriana. Assim sendo,
Sperber, que é historiador na Universidade do Missouri, dá maior importância ao
indivíduo Marx que às suas ideias. Karl
Marx é fascinante mesmo assim. A biografia
se beneficia de um sem-número de trabalhos – publicados em teses universitárias
e revistas acadêmicas de circulação irrisória – que orbitam a edição das obras
completas. Não existe neles a pressão subjacente aos livros das correntes
políticas que se apresentavam como depositárias do marxismo, e tampouco a
agressão oportunista dos detratores do filósofo alemão. Aprende-se muita coisa
com a biografia. E, como o próprio Marx disse, saber é sempre superior a não
saber.
Sperber
dirime anacronismos. É absurdo afirmar, ele sustenta, que Marx era
antissemita. A afirmação é feita à luz do extermínio dos judeus na Segunda
Guerra Mundial e da criação de Israel. Quando fala da “extinção” dos judeus, no
entanto, Marx está defendendo sua liberação: que eles tenham os mesmos direitos
republicanos de qualquer cidadão, e acrescenta que eles só serão totalmente
livres quando desaparecer a própria noção de minorias sociais.
O
mesmo vale para o empenho de Marx, pater familias exemplar, em
dar uma educação burguesa às filhas, que aprenderam línguas e piano enquanto
viviam em cortiços londrinos. Considerá-lo um machista que se preocupava com as
roupas e a virgindade das filhas é usar lentes de hoje e turvar o passado. Na
verdade, Marx pelejava pela autonomia das filhas enquanto se havia com dívidas
crônicas, o que não tinha nada de submissão aos costumes vigentes.
É
com nuances, por fim, que Sperber conta como Marx teve um filho ilegítimo com a
empregada da família, Helene Demuth, em 1851. As primeiras evidências do caso
só se tornaram públicas mais de cem anos depois: Marx engravidou a moça e
Engels assumiu a paternidade para evitar que Jenny –née baronesa
Westphalen – se divorciasse de Marx. O menino, Frederick Demuth, foi criado por
pais adotivos, tinha os traços e a tez escura do pai (cujo apelido era “Mouro”)
e sabia de quem era filho. Dos sete filhos de Jenny e Marx, quatro morreram na
infância, outra na idade adulta, e as duas que sobreviveram ao casal vieram a
se suicidar. Só Frederick viveu pacata e anonimamente até a velhice. Morreu em
1929.
Em
2008, no auge da crise financeira que balançou o globo, The Times,
o jornal megaconservador de Londres, publicou uma longa reportagem sobre Marx
cujo título gritava “He’s back!”. Estava de volta aquilo que certa vez o papa
Bento XVI chamou de “a grande habilidade analítica” de Marx.
Já
a biografia de Sperber é mais atual quando investiga dois outros aspectos de
Marx. Primeiro, quando fala da sua atividade jornalística. Além de ter sido
editor de publicações alemãs, Marx durante anos analisou a situação política
europeia para o New York Daily Tribune, o maior jornal americano de
então. Como editor, dinamizou revistas e fez com que tivessem repercussão e
aumentassem a tiragem. Como correspondente, estava sempre em cima dos fatos,
investigando-os a fundo. As publicações não eram suas nem espelhavam o que de
fato pensava. Mas isso importava menos que a possibilidade de dizer algo, mesmo
que truncado e limitado, sobre política, economia e filosofia.
O segundo aspecto, o mais importante,
diz respeito ao que Marx viveu durante as revoluções europeias de 1848 (um
processo com inúmeros pontos de contato com a Primavera Árabe) e a Comuna de
Paris, em 1871. Ao se contemplar o que Marx fez na época, Sperber parece
referir-se diretamente ao presente: a dispersão dos revolucionários, o poder
crescente das forças da ordem e a desorientação geral.
Em meio ao caos econômico e à reação
política, vigiado de perto pela polícia e com imensas dificuldades materiais,
Marx segue o seu caminho, o do estudo engajado. O vento contrário da derrota
movia o moinho do pensamento e da ação. O que fez com que, segundo Sperber,
tivesse “uma vida repleta de emoções apaixonadas, intensas e defendidas com
convicção forte, com enormes aspirações e reveses igualmente grandes, com
adversidade e luta”.
(*) É jornalista da Revista Piaui.
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